Impressionados com a realidade vislumbrada em estudo acerca do instituto da fiança, em especial da exoneração em contratos por prazo indeterminado, empreendemos a presente análise, que expomos na intenção de provocar uma reflexão sobre o tema.
"FIDEJUSSORES PERPETUO TENENTUR"
A locução latina acima evidencia o que era para o Direito Romano a fiança assumida.
A linha de raciocínio era a de que uma vez obrigados os fiadores, seu compromisso era perpétuo.
Remetendo-nos ao ordenamento jurídico pátrio, temos o Código Civil, Lei n. 3.071 - 1o. de janeiro de 1916, que, em seu capítulo XVI, do Titulo V, Livro III, a define e disciplina.
Num salto cronológico, em 18 de outubro de 1991, veio-nos a Lei n. 8.245, diploma legal vigente regulamentador das locações de imóveis urbanos - Lei do Inquilinato, objeto de nossa análise.
Referida lei, em seus artigos 37 usque 42, dispõe sobre as garantias locatícias, quais sejam: caução, fiança e seguro de fiança locatícia (artigo 37, I, II e III).
O artigo 39, exige especial atenção, porquanto é o delimitador das garantias contratualmente constituídas; critério temporal a ser observado é o da extensão de qualquer das modalidades de garantia, " até a efetiva devolução do imóvel ", salvo disposição convencional em contrário.
Ocorre que, a razão desta análise - exoneração do fiador -, não reside na parte própria da mencionada lei, havendo, tão-somente, direito potestativo conferido ao locador de exigir do locatário, novo fiador ou substituição da modalidade de garantia, em casos expressos, a notar os incisos IV e V do artigo 40.
É de observar-se que, em desobedecendo o locatário a determinação legal do artigo 40 da Lei 8.245/91, fica autorizado o locador a pedir seu despejo, fundado em infração legal ( artigo 9o., inciso II do mesmo diploma).
Assim, temos nos artigos do supracitado Capítulo XVI, a disposição a ser obedecida, também, nas relações ex locato.
O artigo 1.500 do Código Civil, diz que:
" O fiador poderá exonerar-se da fiança, que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando, porém, obrigado por todos os efeitos da fiança, anteriores ao ato amigável ou à sentença que o exonerar. "
O mestre J. M. Carvalho Santos, in Código Civil Brasileiro Interpretado, Direito das Obrigações, volume XIX, 6a. Edição, Livraria Freitas Bastos, página 433, assim explica a obrigação assumida pelo fiador :
" A fiança é um contrato de favor não em relação ao credor, que apenas recebe o que lhe é devido, mas em relação ao devedor afiançado que, a não ser excepcionalmente, nenhuma compensação dá ao fiador por êsse serviço "
O grande jurista Clovis Bevilaqua, em sua obra CÓDIGO CIVIL dos ESTADOS UNIDOS DO BRASIL COMMENTADO, oitava edição actualizada por Achilles Bevilaqua - Volume V - Editora Paulo de Azevedo Ltda. - 1952, com muita propriedade, em comentário ao artigo 1500, leciona que:
(transcrição parcial)
2. - Póde a fiança não ter limitação de tempo e adherir a uma obrigação, que tambem o não tenha. A fiança, acto benefico, desinteressado, não póde ser uma tunica de Nessus. Assim como o fiador, livremente, a tomou sobre si, livremente, lhe sacode o jugo, quando lhe convier, pois, não tendo promettido conserval-a por tempo certo, contra sua vontade, não poderá permanecer indefinidamente obrigado."
É tão intuitiva esta regra de direito que os Codigos Civis a suppõem contida no conceito de fiança, e se abstêm de mencional-a . Alguem afiança o pagamento do aluguel de um predio. A locação é por tempo indeterminado; a fiança não tem prazo; o fiador exonera-se, no momento, em que não lhe convier mais responder pelo obrigação do locador. É tambem evidente que até o momento, em que se exonera da fiança, fica obrigado pelos effeitos, della, isto é, no exemplo dado, pela dívida do locador.
Poderá acontecer que o credor não queira lhe reconhecer esse direito, e não lhe restitua a carta de fiança. Recorrerá, então. ao poder judiciário, que o libertará por sentença. Até a decisão definitiva do juiz, durarão os effeitos da fiança, diz o nosso artigo. Não é justo. Se o juiz reconhece que o fiador tinha o direito de exonerar-se da fiança, não devia o Codigo sujeital-o ás consequencias do capricho do credor. Desde o momento em que este tivesse sido notificado da resolução do fiador de eximir-se aos onus da fiança, deviam cessar os effeitos da fiança de tempo indeterminado, quer se conformasse o credor com a nova situação, quer, sem fundamento juridico, pretendesse permanencia da anterior. " Grifamos
Em que pese o autor do Projeto do atual Código Civil ter emitido tal opinião, inclusive dizendo ter sido o artigo original alterado (percebe-se), nossos tribunais vêm adotando posicionamento associado à lei e à doutrina existente, vale dizer, s. m .j., dissociado do ônus que tal posição acarreta ao fiador, mormente por visualizar-se redução em sua liberdade de autodeterminar-se, em função da relação intuitu personae que celebra.
A título de ilustração, colhemos ementa do v. acórdão do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, recurso APC, número 193034931, de 22/04/1993, Quarta Câmara Cível, in JUIS - Jurisprudência Informatizada Saraiva n. 11:
" Fiança - Exoneração por simples notificação do fiador - inviabilidade - Aluguéis: atualização não exonera o fiador se já prevista em contrato - Não é admissível a exoneração do fiador mediante simples notificação ao locador. Exigência de acordo amigável ou sentença judicial. Exegese do art. 1500 do Código Civil. Prevista no contrato a responsabilidade como principal pagador dos aluguéis, reajustes e atualizações firmadas pelo locatário, não pode e fiador recusar responsabilidade pelo valor atualizado do aluguel decorrente da revisão na forma da Lei do Inquilinato, vigorando a locação por tempo indeterminado por disposição legal. Sentença confirmada. "
E, ainda, do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, Processo: 35940024686, de 06/02/1996, in JUIS - Jurisprudência Informatizada Saraiva n. 10:
" Embargos à execução - Locação - Fiança - Ineficácia de notificação comunicando a exoneração do fiador. A exoneração do fiador somente pode ocorrer por ato amigável ou por sentença, não tendo nenhuma eficácia a notificação extrajudicial comunicando a exclusão da responsabilidade."
Pode parecer, num primeiro momento, que toda a exposição acima, não passa de mera vontade nossa de ver modificada situação respaldada em lei .
Seria deveras inútil argumentarmos no sentido de vê-la reconhecida, contrariamente ao que determina a lei civil.
Estamos, isto sim, atentando para o fato de que, quiçá em função da realidade contemporânea, o atual Projeto do Código Civil, datado do ano de 1984, em tramitação no Congresso Nacional, tem em seu Livro I, Título VI, Capítulo XVIII - Da Fiança, no artigo 835 a seguinte redação :
" O fiador poderá exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando, porém, obrigado a todos os efeitos da fiança, durante sessenta dias após a notificação do credor. " Grifamos
Importante salientar, que a nova redação do Código Civil somente alterou a parte que diz respeito à submissão do fiador ao livre arbítrio do credor-locador ou à proposição de demanda declaratória para ver-se desonerado, importando, o segundo, em acúmulo de feitos levados, desnecessariamente, à apreciação do Judiciário.
Cabe destacar, ainda, que a redação do artigo 835 não sofreu emenda, desvencilhando-se do que ocorrera com seu " quase " antecessor - artigo 1.500.
Em razão da alertada modificação, à guisa de sugestão, ante a realidade de uma inversão da situação atual, transferindo ao credor-locador o ônus de ver-se sem garantia pela simples notificação do fiador - ainda que possível a desalijatória em caso de desobediência ao disposto no artigo 40, IV e V da Lei do Inquilinato, há que se propugnar por modificação no texto da lei, visando minorar os efeitos da exoneração, impondo ao locatário, caso não ofereça quaisquer das modalidades de garantia previstas (hipótese do artigo 42 afastada), a desocupação do imóvel.
Aludida desocupação, traria ao locador um minus na problemática da situação, conferindo-lhe, por norma cogente aplicável ao caso da exoneração, a possibilidade de auferir novo locativo, no decorrer da cobrança dos alugueres pela locação finda.
Por outro lado, a notificação de que trata o " futuro " artigo 835, deverá ser judicial ou extrajudicial, respectivamente com base nos artigos 867 e seguintes do CPC e na utilização de Cartório de Títulos de Documentos, obtendo-se ciência inequívoca e induvidosa do credor.
Desejamos fique clara nossa posição de, no dizer do saudoso Clovis, evitar esteja o fiador sujeito ao capricho do credor ou necessite demandar para ver seu direito declarado; contudo, certos de que perpétua, esta sim, é a busca de uma igualdade entre as partes, esteja, também, o credor-locador amparado na ausência de garantia essencial à realização de seu crédito (direito).
Esperamos sejam ponderados os argumentos aqui esposados e ofertados outros, fomentando a dinâmica do nosso Direito.