PALAVRAS-CHAVE: Política criminal atuarial. Banco de dados de perfis genéticos. Investigação criminal no Brasil. Genética forense. Persecução criminal. Direito penal. Direitos fundamentais.
1 INTRODUÇÃO
O pensamento acerca da penalização dos indivíduos se moldou em diversas teorias e discursos. Dentre elas, a teoria que defende a pena como uma forma de retribuição à conduta ilícita (doutrina abolicionista ou retributiva); a teoria relativa, que defende que as penas têm por objetivo a prevenção de novos delitos, e a doutrina unificadora, que acredita que a pena além de ser uma retribuição ao condenado pela sua conduta, é uma forma de prevenir a realização de outros delitos.
Diante dessas diversas teorias acerca da penalização, surge no neoliberalismo, período marcado pela racionalização, a temática da política criminal atuarial. Pautada na lógica econômica, a política criminal atuarial parte de números e estatísticas a fim de obter objetivos quantitativos para tomada de decisão totalmente racional. Logo, há o desvio do modelo clássico, em que o crime era visto como uma desautorização do soberano e do modelo social, em que o crime era concebido como fruto de um determinismo social. Nesta senda, o presente deixa de ser o tempo de referência, cedendo lugar ao futuro, mas um futuro antecipado e planejado nas suas mais negras possibilidades (GARAPON, 2010).
A Política Criminal Atuarial envolve, portanto, diferentes discursos e técnicas em função de um só objetivo: apropriar-se de técnica de coleta de dados genéticos para aprimorar a persecução penal. Porém, perante a obrigatoriedade da coleta de material genético aos condenados por crime hediondo e os dolosamente praticados com emprego de violência grave, há de se questionar se isto fere o princípio da Dignidade da Pessoa Humana em nome da suposta eficiência da prova genética, sendo autorizável que o corpo do acusado/condenado seja passível prova contra ele próprio.
2 HISTÓRICO DA GENÉTICA FORENSE
Segundo Barros e Piscino (2008), a aceitabilidade do DNA como prova no âmbito penal se deu em 1986, a partir de um caso, conhecido no cenário internacional como “Caso Leicester”, ocorrido no ano de 1985 na Inglaterra. O geneticista britânico Alec Jeffreys fez a coleta e análise do sêmen encontrado em duas vítimas de estupro e assassinato e chegou à conclusão que o material encontrado nelas pertencia a um mesmo agressor, que posteriormente foi identificado e preso através de uma campanha de doação de sangue simulada pelas autoridades do país.
No Brasil, a genética forense evoluiu uns anos mais tarde, a partir de 1992. Foi introduzida por meio da Polícia Técnica da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), que desejava utilizar pesquisas com o DNA e implantar um laboratório próprio para auxiliar nas perícias criminais. O primeiro caso prático, que chegou aos tribunais, foi em 1994, quando dois peritos criminais da Polícia Civil do Distrito Federal viajaram aos Estados Unidos para analisar um material genético relacionado a dois crimes ocorridos em Brasília. No mesmo ano, a Câmara Legislativa do Distrito Federal criou a Divisão de Pesquisa de DNA Forense (DP/DNA), no âmbito da Polícia Civil do Distrito Federal. Hoje em dia, o Instituto Nacional de Criminalística (INC), sediado em Brasília e subordinado ao Departamento de Polícia Federal e ao Ministério da Justiça, é o órgão mais experiente no que diz respeito à utilização do DNA para fins de investigação criminal.
O uso do DNA na esfera forense brasileira ainda é restringido, e sua eficácia é mais conhecida em casos de investigação de paternidade, na identificação de cadáveres, para encontrar pessoas desaparecidas e no crime de estupro (com a coleta do material genético do agressor a partir de fluidos trocados com a vítima).
3 POLÍTICA CRIMINAL ATUARIAL E BANCO DE DADOS DE PERFIS GENÉTICOS
Com o atual avanço da tecnologia, fica cada vez mais comum as descobertas feitas sobre o DNA, dentre as quais é possível citar a predisposição a doenças, parentesco e a relação dos genes com a tendência a cometer tipos de crimes. No cenário criminal, os bancos de dados genéticos servem para armazenar os perfis genéticos das pessoas que são acusadas de cometerem crimes e surgem com relevância prometendo gerir, administrativa e eficientemente, a criminalidade. Com a finalidade de identificar os autores de fatos delitivos, os bancos de dados genéticos estão sendo criados em diferentes países.
A política atuarial criminal se baseia no cálculo atuarial que é feito através de amostras que são analisadas para criar uma estatística, que mostre a probabilidade de acontecer determinados eventos com grupos de pessoas que compartilham os mesmos tipos de genes. Essa política pode ser útil para controlar a criminalidade, criando meios de prevenção e de se chegar mais rápido aos agentes dos crimes, evitando assim que eles fiquem impunes ou que pratiquem mais crimes ente o lapso temporal do crime anterior até serem descobertos. Deste modo, pode ser discutida a possibilidade da utilização dos dados provenientes dos bancos de perfis genéticos (Decreto nº 7.950, de 12 de março de 2013) a fim de dar andamento à política criminal atuarial.
Num contexto criminológico, a relevância do método é a construção de perfis criminosos, identificando e classificando como indivíduos perigosos ou de “alto risco”, para haver a sua neutralização. De acordo com o estudo realizado por Dieter (2013, p. 139) acerca do tema, o prognóstico atuarial [...] fundamenta-se na vinculação de um sujeito a um grupo de risco pelas características que compartilham, apostando-se na provável reprodução dos padrões de comportamento dessa coletividade com a qual foi associado em função da regularidade geral do comportamento humano, quantitativamente demonstrada: em vez de sintomas, os atuários procuram fatores salientes que determinam estatisticamente o maior risco de um comportamento.
4 INVESTIGAÇÃO CRIMINAL NO BRASIL E A VIABILIZAÇÃO DA IDENTIFICAÇÃO GENÉTICA COM A LEI N.° 12.654/2012
A identificação criminal pode ser feita através da fotografia, da dactiloscopia (impressões digitais) e, em 29 de maio de 2012, o Brasil viabilizou por meio da Lei n.º 12.654/2012, uma nova espécie de identificação criminal, a partir da coleta de material genético. Essa lei, que alterou tanto a Lei n.°12.037/09 (Lei de Identificação Criminal) quanto a Lei n.° 7.210/84 (Lei de Execuções Penais), prevê a criação de banco de dados de perfis genéticos com o material coletado dos investigados e condenados. Em infrações penais não transeuntes, será possível a comparação dos vestígios deixados com as informações constantes desse banco de dados, facilitando a identificação do autor do crime. No crime sexual de estupro, a exemplo, pode ser analisado o sêmen presente na vítima para se chegar ao agente do delito.
Há duas hipóteses em que a Lei n.º 12.654/2012 permite a coleta do DNA para obtenção do perfil genético. A primeira, é durante as investigações, onde a autoridade judiciária só deverá determinar a coleta do material caso essa prova seja essencial às investigações policiais, com o objetivo de elucidar o crime investigado. A segunda, é após a condenação do réu, sendo a coleta obrigatória por força de lei para o condenado por crime hediondo ou por crimes praticados de forma dolosa com grave violência, pois objetiva armazenar a identificação do perfil genético do condenado em um banco de dados sigiloso.
Durante as investigações, a coleta é feita através de decisão judicial fundamentada, proferida de ofício, ou mediante representação da autoridade policial, do MP ou da defesa, e após a condenação não necessita de autorização judicial, já que é feita como providência automática.
A partir do exposto, é possível perceber que na investigação criminal brasileira a identificação através do perfil genético possui dupla finalidade: a de atuar como prova em processo posterior e a de servir como meio de identificação criminal.
5 PERSECUÇÃO CRIMINAL NO COMBATE AOS CRIMES SEXUAIS
Vale ser analisado qual é a real eficácia na persecução criminal no combate aos crimes sexuais, tendo em vista a recuperação do acusado e do outro lado a segurança da sociedade. Resta claro que no sistema punitivo brasileiro, na prática, muito pouco é feito em relação à ressocialização do apenado, aplicando-se apenas a medida punitiva, através do encarceramento.
No que tange a esse viés punitivo e coercitivo, a persecução criminal começa com a investigação criminal, através do inquérito policial, que é o meio de coleta de informações, de competência da polícia judiciária, que apura os fatos do delito e busca sua autoria, servindo de base à ação penal. A palavra da vítima é meio de prova eficaz para os delitos sexuais, visto que parte destes crimes são transeuntes, quer dizer, não deixam vestígios, desta forma o exame de corpo de delito pode não ser eficaz nessas situações.
A fase processual se inicia com o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público. Daí em diante a Ação Penal se desdobra, findando-se com a absolvição ou condenação do réu.
É interessante apontarmos que antes do advento da Lei 12.015/09, as ações nos casos de crimes sexuais eram, em regra, privadas. A legislação anterior entendia que delitos deste tipo afetavam a esfera íntima da vítima, por isso era respeitada a vontade do ofendido, evitando que a persecução criminal se tornasse algo sofrível, pela exposição. Esse pensamento evoluiu, pois os doutrinadores entendiam, de modo geral, que diante da extrema gravidade de alguns crimes, a punibilidade do agente é de interesse público, o que deve autorizar o Estado, por meio do Ministério Público, a deflagrar a ação penal.
Após o advento da lei 12.015/09, nos crimes contra a dignidade sexual a regra agora é a ação penal pública mediante representação, que ocorre da seguinte forma: o ofendido ou seu representante legal deve acionar o Ministério Público, mediante queixa na delegacia, para autorizar que o MP ofereça a denúncia em favor do ofendido, tomando a frente das investigações, apurações e representação em juízo. As exceções em que a ação penal pública é incondicionada, ou seja, independe da vontade do ofendido, são: quando a vítima for menor de 18 anos ou quando a vítima for pessoa vulnerável. O conceito de vulnerável no Código Penal engloba: os menores de 14 anos; aqueles que por enfermidade ou deficiência mental não têm o necessário discernimento para a prática do ato sexual e a queles que, por qualquer outra causa (diversa da etária ou mental), não podem oferecer resistência.
Existem, ainda, dois outros casos de ação penal pública incondicionada que assim o são independentemente da idade ou condição de “vulnerável” da vítima. São os casos de estupros qualificados por lesões graves ou morte. A legislação anterior entendia que crimes sexuais afetavam a esfera íntima da vítima, por isso, em regra geral, antes do advento da lei 12.015/09, a ação era penal privada, respeitando a vontade do ofendido e evitando que o processo se tornasse algo sofrível, pela exposição. Esse pensamento evoluiu, pois os doutrinadores entendiam, de modo geral, que diante da extrema gravidade de alguns crimes, a punibilidade do agente é de interesse público, o que deve autorizar o Estado (Ministério Público) a deflagrar a ação penal.
Neste ponto, hoje o processo criminal no combate aos crimes sexuais é mais efetivo, pois há a presença da "mão pesada" do Estado no polo ativo da lide, dando maior segurança e confiança às vítimas. Agora, em regra, a ação é condicionada à representação, ou seja, o Ministério Público toma a frente das investigações, apurações e representação contra o réu em juízo. Isso quando o ofendido ou seu representante legal tem o interesse de prestar a queixa contra o ofensor.
6 GARANTIAS FUNDAMENTAIS DO ACUSADO
Os direitos fundamentais são uma derivação dos direitos humanos, ocorre que aqueles são positivados, elencados, no caso do Brasil, na nossa Constituição Federal de 1988. Nesta, estão sistematizados, de forma geral, os princípios que devem reger todo o ordenamento jurídico brasileiro, sendo o principal deles, o princípio da dignidade humana. Buscando conceituar, Brega Filho (2002, p. 66) diz que “direitos fundamentais, seriam os interesses jurídicos previstos na Constituição que o Estado deve respeitar e proporcionar a todas as pessoas”. “É o mínimo necessário para a existência da vida humana”
Tomando como partida tal princípio, deve-se assegurar os diversos direitos estabelecidos em matérias distintas, que vão da área cível à criminal. O direito penal tutela os bens mais importantes e necessários à vida em sociedade, porém só deve intervir, de acordo com o princípio da intervenção mínima, quando os demais ramos forem insuficientes ao os tutelarem.
Logo, o direito penal encontra-se na última etapa de proteção de tais bens por ser o instrumento normativo de regulação social mais violento, já que se utiliza de meios como as penas privativas de liberdade, que retiram um dos direitos fundamentais que é o direito de ir e vir.
O processo penal deve ser considerado pelo aspecto constitucional, sendo aplicado à luz dos princípios e regras constitucionais. No artigo 5° da CF/88 é possível encontrar dispositivos com estrita relação ao direito processual penal, como a inviolabilidade do domicílio, e correspondência, e de comunicações telefônicas, a anterioridade da lei penal, a intranscendência da pena, a individualização da pena, dentre outros.
Em contrapartida, o direito penal vem sendo utilizado, na prática, como um instrumento constante às finalidades de política criminal, principalmente no que diz respeito à persecução criminal, relativizando as garantias fundamentais para que se veja concretizado o atendimento ao direito à segurança de grande parcela da sociedade e para suprir a carência do aparato do Estado no combate à criminalidade.
Um dos direitos fundamentais elencados na Constituição Federal de 1988 é o do direito ao silêncio (artigo 5°, LXIII), que diz que o preso será informado de seus direitos, entre os quais de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e do advogado. Desta forma também rege o artigo 8.2 “g” da Convenção Americana dos Direitos Humanos, que toda pessoa tem direito a não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada. Sendo assim, pontua Aury Lopes, que “o acusado não pode ser compelido a declarar ou mesmo a participar de qualquer atividade que possa incrimina-lo ou prejudicar sua defesa.” (LOPES JR., 2008, p. 588).
Ao tornar obrigatória a coleta de material genético que possa a vir ser utilizado como prova contra o próprio acusado, há a quebra deste princípio acima citado, além de outros como o princípio da privacidade, intimidade e integridade.
O questionamento que se faz necessário é se, através dos bancos de perfis genéticos, não se estaria relativizando os direitos fundamentais do acusado, levando em consideração que a extração dos materiais genéticos é obrigatória; se não estaria o acusado tendo o seu direito ao silêncio violado, ao produzir possível prova contra si mesmo.
Por outro lado, tendo em vista que a segurança geral da população se faz mais importante que os direitos individuais de uma só pessoa, e que tal pessoa possivelmente não seja culpada, se torna complexa a reflexão do que seria a decisão mais acertada a respeito dos bancos de perfis genéticos.