I. Fundamentos
É importante observar primeiramente como se deu a transformação das relações entre homem e natureza na modernidade, para em seguida examinar a discussão sobre o conceito “antropoceno”. É necessário também dedicar atenção ao discurso da sociedade de risco. Este discurso da modernidade – dentre outros diversos discursos que buscam explicar as transformações sociais – ganhou notoriedade sobretudo por meio da obra Sociedade de Risco (1986), de Beck. De acordo com este discurso, a sociedade passa a ser regida por uma lógica de exceção e não de normalidade, visto que o risco é a face inversa de uma situação de normalidade social.
1. Antropoceno
É possível dizer com segurança que nos séculos XX e XXI o homem se transformou em uma verdadeira força geológica transformadora no planeta.1 A associação entre conhecimento científico e técnica permitiram à espécie humana não somente modelar e manipular a natureza como também se tornar parte irremediável deste processo de transformação.2 O homem utiliza seu conhecimento para “domesticar” a natureza e transformá-la de acordo com seus interesses e necessidades. Ao fazê-lo, ele termina por transformar a si próprio, tal como se estivesse em um laboratório, e fosse ao mesmo tempo condutor e cobaia de seus próprios experimentos. Não é à toa que muito se discute sobre a possibilidade de se denominar a presente era geológica “antropoceno” (anthropo-, homem e -ceno, era).3 Essa foi a propósito a recomendação feita pela União Internacional das Ciências Geológicas (UICG) no 35° Congresso Geológico Internacional ocorrido de 27 de agosto a 4 de setembro de 2016 na Cidade do Cabo, África do Sul.4
Desde o seu surgimento no início dos anos dois mil,5 o termo antropoceno tem tido muita aceitação tanto no meio acadêmico como junto ao grande público.6 O termo tem a vantagem de permitir enfoques diversos e multidisciplinares dos principais desafios físicos, culturais e sociais relativos a questões ambientais contemporâneas.7 No antropoceno, trata-se de observar as relações entre homem e natureza a partir de um ponto vista diferente daquele predominante até o século XIX. Isto é, até então, a compreensão das relações entre homem e natureza eram regidas essencialmente pelo processo de produção capitalista que percebia homem e natureza como pólos excludentes.8 A natureza aparecia nessa relação como mero objeto e fonte inesgotável de recursos a serem explorados.9 Com a conformação do antropoceno, as fronteiras entre os dois pólos deixam de existir.10 Fala-se mesmo em um período no qual se estaria além da natureza e da cultura.11
Pode-se dividir o antropoceno até o presente momento em três períodos ou fases históricas: o primeiro deles coincidiria com a Primeira Revolução Industrial e se estenderia de 1800 a 1945; o segundo, por sua vez, teria início após a Segunda Guerra Mundial e seria caracterizado, sobretudo, pelo desenvolvimento tecnológico acelerado, pelo aumento da população mundial, pelo colapso dos ecossistemas, pelo desaparecimento de recursos naturais e pelo problema do aquecimento global; o terceiro período teria início nos dias atuais e se caracterizaria, sobretudo, pelo despertar para os problemas do impacto humano no meio ambiente e o surgimento das primeiras iniciativas no sentido de se remediar ou mitigar os efeitos nocivos da ação humana no planeta.12 As fases históricas do antropoceno, especialmente a segunda e a terceira, correspondem, além disso, ao período em que a sociedade passou a se auto-observar criticamente como uma sociedade de risco ou como uma sociedade mundial de risco.13
2. Sociedade de risco
Na década de 80 do século XX ganha força nas ciências sociais o debate sobre modernidade.14 Paradoxalmente é o debate sobre a crise da modernidade, levantado pelos autores pós-modernos, que desencadeia o novo interesse pelo tema.15 O que dizem os pós-modernos é que a racionalidade moderna estaria irremediavelmente associada com aspectos de poder e que por essa razão ela não poderia aspirar à universalidade.16 De fato, a racionalidade moderna é construída em um período em que as estruturas sociais se conformam “em torno dos núcleos organizadores da empresa capitalista e do aparelho burocrático do Estado” e não deixa de ser afetada e limitada por eles.17 À parte a crítica pertinente proveniente da filosofia, deve-se considerar também os argumentos da sociologia que sugerem justamente o oposto. Os argumentos sociológicos contradizem os filósofos pós-modernos quando defendem que não se haveria de falar ainda sobre pós-modernidade, mas sobre um período de radicalização das consequências da modernidade.18 É nesse sentido que Beck confere a sua obra mais célebre, Risikogesellschaft, o subtítulo Auf dem Weg in eine andere Moderne, isto é, “a caminho de uma outra modernidade”.19 Portanto, o que se estaria vivenciando seria um período em que as consequências da própria modernidade e dos processos de modernização seriam experimentadas de forma exacerbada.
A obra “Sociedade de risco” de 1986 é sem dúvidas uma das obras de maior ressonância a surgir nas ciências sociais nas últimas décadas. O mérito do autor, até então relativamente desconhecido, foi produzir um diagnóstico bastante preciso sobre as principais tendências na sociedade industrial de então.20 Como se não bastasse tais argumentos seriam confirmados posteriormente pela catástrofe nuclear ocorrida em Tschernobyl no mesmo ano de 1986.21 Um dos argumento principais utilizados por Beck em sua obra é de que a sociedade não seria mais uma sociedade de classes e sim uma sociedade de risco na medida em que na modernidade a produção de riquezas seria acompanhada sistematicamente pela produção de riscos.22 Segundo o autor essa mudança de uma “lógica de divisão de riquezas” para uma “lógica de divisão de riscos” teria razões históricas e estaria relacionada a pelo menos duas condições.23 A primeira das condições seria decorrente da humanidade haver alcançado um nível tecnológico de produção inédito, no qual se daria a diminuição objetiva da miséria material em razão sobretudo do desenvolvimento das regras e garantias do Estado social.24 A segunda condição decorreria do avanço social e tecnológico que possibilitaria crescente aumento de produtividade e o surgimento de riscos e ameaças até então não experimentados pela sociedade.25 Portanto, conforme a tese principal de Beck, na modernidade as principais questões não estariam relacionadas apenas a utilização da natureza pelo homem ou da libertação do homem de formas tradicionais de opressão, mas dos problemas decorrentes do desenvolvimento técnico e econômico.26 É nesse sentido que Beck afirma que neste período o processo de modernização se torna reflexivo.27 Com isso ele quer dizer que o processo de modernização é ao mesmo tempo tema e problema a ser observado.28
II. O direito na sociedade de risco
As transformações decorrentes dos processos de modernização se fizeram sentir intensamente na sociedade. O direito público alemão, de tradição estatal, tomou para si tal discussão. Ele incorporou o discurso do risco como objeto de estudo e ao fazê-lo procurou também fortalecer sua posição em um cenário no qual a identidade do direito público é duramente colocada a prova por fenômenos como a globalização e o esfacelamento da ideia de Estado nação.29
A incorporação do paradigma do risco ao campo de seus estudos fica especialmente evidente a partir da década de 70 do século XX com o a consolidação do direito ambiental na Alemanha.30 O paradigma do risco complementaria uma tradição relacionada ao paradigma do perigo norteador não somente do direito policial alemão, de tradição prussiana, como também do direito atômico e do direito técnico desenvolvidos durante todo o século passado no País.31 Com o passar das décadas é possível perceber no direito alemão uma clara mudança paradigmática. Isto é, o paradigma do risco passa a dominar gradualmente. A mudança vivenciada pode ser observada também na mudança da compreensão do paradigma jurídico-político do Estado de direito que ao longo de sua história experimenta diversos momentos: estado de direito liberal, estado de direito social e estado de direito de prevenção (de riscos).32 Neste último, experimenta-se em virtude do advento da sociedade de risco, uma “renovação da fé” na capacidade do Estado de reduzir riscos e produzir dessa forma segurança aos indivíduos. No Estado de prevenção de riscos o conceito de segurança é, portanto, mais amplo que aquele de sentido clássico que se refere apenas a segurança interna e externa decorrentes do monopólio da força.33 Nele a segurança diz respeito ao futuro por meio da manutenção do bem estar dos indivíduos.34 Daí falar-se no dilema do Estado de prevenção de riscos que se encontra responsável em lidar com os riscos para os quais não possui as competências e instrumentos necessários.35
1. Desafios do direito
O direito tem a função básica de regramento social. Na sociedade de risco sua função torna-se, no entanto, bem mais complexa. A razão é que não se trata apenas de regulamentar a conduta humana, mas de regulamentar o produto dessa conduta materializado nos avanços decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico. Tais avanços trouxeram para o campo do direito a necessidade de lidar com riscos que por sua própria essência são incertos. A complexa relação entre direito e regulamentação de riscos fica evidente nos exemplos em que se passa a exigir do direito a regulamentação da energia nuclear, da genética e da nanotecnologia.36 Em todos os casos os avanços são acompanhados por perigos e riscos que devem ser regulamentados juridicamente, de forma que se afira se os fins obtidos a partir de uma determinada técnica justificam os riscos dela decorrentes. Em outras palavras, trata-se de uma relação na qual estão envolvidos perdas e ganhos.
Nesse sentido, o primeiro desafio é basicamente o de avaliação dos riscos. Assim, é importante conhecer os fatos e circunstâncias ensejadores do risco e os possíveis efeitos da sua concretização.37 Isso implica uma caracterização do risco que forneça informações relativas a sua natureza e magnitude, assim como da probabilidade de sua ocorrência ou concretização, mas, sobretudo, de outras incertezas a ele associadas.38 Essa fase de avaliação e caracterização do risco é regida sobretudo pelos conhecimentos técnicos. É a partir de seus resultados que será possível traçar estratégias de ação sensíveis às consequências da eventual concretização do risco para os bens jurídicos a serem protegidos.39 Essa avaliação norteará ademais a determinação de medidas autorizadoras ou proibitivas para o uso e exploração de determinadas tecnologias.40 É o que se denomina de “Risikomanagement”.41 Nessa tarefa de controle e administração dos riscos dois fatores importantes devem ser levados em consideração: incerteza e tempo.
a) Incerteza
O que se deve entender por incerteza é tão complicado como o que se deve entender por risco. Ainda que adentrar nesta discussão acerca de nomenclaturas e classificações não seja o principal objetivo aqui, é necessário alguns esclarecimentos sobre o tema. O risco é uma espécie de incerteza. Porém não é possível dizer que toda incerteza seja um risco.42 Trata-se de uma incerteza que somente faz sentido dentro de um contexto antropológico, uma vez que entre seres não possuidores de razão não se há de falar da noção de risco e incerteza.43 Ao entrar em contato com o termo “incerteza” em alemão (Ungewissheit) percebe-se que ele está relacionado tanto ao termo “risco” (Risiko) como ao termo insegurança (Unsicherheit). A expressão utilizada em inglês para designar “incerteza” é apenas uma: “uncertainty”. “Uncertainty” engloba tanto a ideia de “Ungewissheit” como a de “Unsicherheit”.
Para melhor compreender o significado de cada uma é interessante a alegoria de um contínuo utilizada por Nida-Rümelin, Rath e Schulenburg. Para os autores a ação humana pode ser dividida em dois campos: de um lado, um campo de atuação em que as ações são realizadas com segurança (Sicherheit) e dentro do qual uma determinada consequência pode ser esperada; de outro lado, tem-se um campo de atuação em que as ações são realizadas com insegurança (Unsicherheit), no qual no momento da decisão por uma determinada ação não se tenha certeza (Gewissheit) quanto as consequências que dela poderão advir.44 A figura do contínuo utilizada pelos autores serve para relacionar os termos “Risiko” e “Unsicherheit”. O referido contínuo descreve o agir dentro do espectro da insegurança sobretudo no que diz respeito às consequências decorrentes da ação. Um extremo do contínuo é definido pela situação em que as ações nele tomadas se dão dentro de um contexto em que já estão determinadas tanto a probabilidade da ocorrência de uma da consequência, como a sua qualidade e dimensão.45 No outro extremo do contínuo de insegurança, tem-se a situação em que não é possível prever a probabilidade, a qualidade ou a dimensão das consequências de um determinado agir.46 A figura do contínuo também serve para relacionar os termos “Unsicherheit”, “Ungewissheit” e “Risiko”. Para efetuar tal relação deve-se, no entanto, passar-se de um contínuo de situações de insegurança para um contínuo referente à situações em que decisões devem ser tomadas em condições de insegurança.47 De um lado do contínuo tem-se um campo em que as decisões são tomadas em condições de puro risco e de outro em que as decisões são tomadas em situação de plena incerteza.48
É importante ademais determinar o momento específico do surgimento da incerteza (Ungewissheit), pois a partir dela é que surgem as situações de risco e eventuais consequências jurídicas. Ao observar situações de perigo e risco do ponto de vista jurídico são relevantes os diversos horizontes de conhecimento que surgem a partir do surgimento da incerteza.49 Na análise de uma situação de perigo ou risco de relevância jurídica deve-se analisar a ação do agente administrativo. Afinal, pesam sobre este expectativas com relação ao seu agir em face de uma dada situação de risco ou perigo.
III. Conclusão
O direito público alemão produziu na tentativa de regulamentar o desenvolvimento tecnológico na sociedade de risco o que se convencionou designar dogmática do risco. A dogmática do risco trabalha com conceitos tais como o de risco e perigo. O domínio do conceitual teórico é importante na solução de casos complexos envolvendo tecnologias como o direito atômico entre outros. Dentro do contexto de uma verdadeira era de incertezas em que se vive há um claro predomínio do conceito de risco em relação ao de perigo. Isso é perceptível, sobretudo, em razão de no primeiro conferir-se favorecimento à ideia de prevenção em detrimento de uma ação paliativa contida no conceito de perigo.