1. Razão do estudo e seus limites.
Os operadores do Direito têm a obrigação de salvaguardar bens cujos valores são de fundamental valia dentro e fora da ordem jurídica. Cumprindo esta função, tem-se que a vida deve ser protegida em sua totalidade não importando sua forma manifesta. Isso em conta, o Direito deve cuidar de tutelar, prioritariamente, a vida humana mesmo que em sua forma rudimentar e frágil, mas, digna da mesma proteção dispensada ao ser humano nascido: o embrião.
Tal preocupação existe porque tem-se incrementado, cada vez mais, as manipulações sobre esse pequeno ser humano, como fosse ele simples objeto de estudo, seja para satisfação da ciência ou pessoal, neste caso, através dos já vulgares métodos de procriação artificial. Tentar-se-á demonstrar que a proteção da pessoa na forma embrionária já está garantida através da tutela de direitos fundamentais emanados da Constituição e de leis de conteúdo materialmente fundamental.
O presente trabalho limitar-se-á, desta forma, em demonstrar que os embriões humanos já são protegidos pelos princípios constitucionais do direito à vida e dignidade da pessoa humana, sem mencionar a proteção de seus direitos da personalidade através da identidade pessoal e genética.
Deixaremos de abordar, por deficiência de conhecimento, pontos mais profundos ligados às ciências médicas, embora o tema se curve às questões biotecnológicas.
Os aspectos morais e filosóficos, que são de fundamental importância, não serão estudados aqui em grande profundidade.
2. A vida intra-uterina e o embrião de laboratório (embrião pré-implantatório). Aspectos gerais.
Devemos distinguir, para facilitar a leitura deste trabalho, duas situações dignas de proteção em que podemos enquadrar os embriões humanos: aqueles que já se encontram no útero e os que estão congelados em laboratório aguardando que seus destinos sejam traçados pelos seus "donos".
Como vida intra-uterina designamos os embriões e fetos já em fase gestacional, credores, portanto, de cuidados inerentes à conservação de suas vidas, direitos imanentes da personalidade e alguns de caráter patrimonial.
Já para os embriões que ainda se encontram fora do útero, como é o caso, por exemplo dos chamados embriões excedentários e extranumerários, usamos a expressão vida extra-uterina, embriões pré-implantatórios ou concepturos.
Como expressão de tutela jurídica para os embriões já abrigados no útero, podemos mencionar alguns poucos artigos dos Código Civil Português e Brasileiro que salvaguardam os interesses patrimoniais do nascituro e, no âmbito criminal, a proibição, agora não mais absoluta, do aborto.
Em relação à vida extra-uterina, podemos destacar esforços nacionais (Brasil ) e internacionais (Europa e Estados Unidos mais nomeadamente) que de forma gradual e ainda pouco uniforme, no que se refere ao conceito de embrião e início da vida humana, tentam disciplinar as técnicas de procriação assistida e pesquisa científica em embriões humanos.
Com relação à criação de embriões com a finalidade exclusiva de servirem à ciência – aproveitamento de células-mãe ou clonagem -, somos da opinião de que tal atividade deve ser totalmente coibida por contrária a moral e princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
2.1. Natureza Jurídica do Embrião Humano.
Embora indubitável a natureza de pessoa humana do ser (humano) embrionário, sua defesa se faz necessária.
Importante frisar que se deixará de lado qualquer crença ou opinião meramente filosófica acerca do início da vida humana. Valerá aqui a palavra da ciência.
Os cientistas afirmam que desde o exato encontro da célula sexual feminina com a masculina, que se dá no momento da fecundação, aquele ser novo estará totalmente individualizado em termos genéticos ou seja seu DNA já será único e irrepetível.
A partir dessa junção, o ser humano embrionário tratará, somente, de se desenvolver, calmamente, até que sua estrutura corporal esteja completa e capaz de continuar vivendo sem o esteio do útero materno.
Isto não quer dizer, porém, que o embrião seja parte ou membro do corpo de quem o abriga, mas ele se utiliza daquele habitat como os recém-nascidos fazem com o seio materno para sobreviverem. A embriologia nos mostra que o embrião e o adulto são o mesmo ser, basta para isso lembrar que, desde o momento da fecundação, o desenvolvimento que se dá até a vida adulta é contínuo mas muito pouco qualitativo. Assim, o corpo do homem é humano desde o momento da fecundação.
Por isso pode-se afirmar que o embrião humano é expressão do futuro da geração humana, independentemente dos termos científicos que se desejam a ele dar e o ordenamento jurídico deve servir ao homem, independentemente de seu estágio de evolução.
As evoluções da ciência têm colocado o homem, principalmente na sua forma embrionária, como objeto de estudo, invertendo, por essa razão, valores naturalísticos de alçada constitucional.
Ao se permitir a coisificação desenfreada do embrião pelo ordenamento jurídico, por ser ele um ser indefeso que não pode expressar, de forma que possamos entender, sua linguagem, estar-se-á permitindo que a ordem jurídica decida, contra o direito natural, que tipo de ser humano é ou não titular de direitos e isto, em outras palavras, equivale a conceder ao Estado poderes de Deus (ou outra ordem maior), tal como fez Hitler na Alemanha nazista.
Por essa razão, é de fundamental importância determinar se o embrião é pessoa jurídica (pessoa natural para o direito brasileiro), se é verdadeiro sujeito de direito pois, caso contrário, parece "irremediável ter de remetê-lo para a categoria das res, a não ser que se descubra como saída algum tertium genus". E, remetendo-o à categoria das res, estar-se-á não só vulnerando-se a própria vida do ser humano quanto sua identidade e integridade em gestação.
Abandonando o campo da biologia, essa problemática chama para si indagações filosóficas que tentam explicar a finalidade da ciência do direito e dentro dela o papel do homem.
Mas para chegar-se a conclusão se o embrião é ou não um indivíduo, mister se faz definir o próprio conceito de indivíduo. Na concepção clássica da palavra seria indivíduo o ser organizado, diferente de qualquer outro. Ainda com a biologia, seria um exemplar vivo de uma determinada espécie.
Já aí encontramos o primeiro empeço, pois o embrião durante as primeiras horas de sua vida, embora esteja completamente individualizado e diferenciado, é formado, na sua totalidade, por células totipotentes que são capazes de gerar outro ser embrionário composto das mesmas características genéticas da célula original. Há quem sustente, com o apoio de alguns documentos internacionais, que devido a essa faculdade de se dividir o embrião não poderá, ainda nesta fase, que se encerra após o 14° dia de vida, ser considerado indivíduo.
Parece-nos que os adeptos dessa corrente estão confundindo indivíduo com indivisível. E o fato de o embrião poder dividir-se não lhe retira a qualidade de indivíduo. Tanto é assim que, para os biólogos, mesmos aqueles seres que só se reproduzem por divisão são considerados indivíduos da natureza.
Um embrião tem existência própria. Mesmo quando se fala da fecundação in vitro pode-se demonstrar que a fecundação tem êxito fora do corpo materno. Sua existência própria, individualidade, organização faz com que ele seja um indivíduo da espécie humana.
E quanto a sua natureza racional? Podemos admiti-lo um ente dotado de racionalidade?
Voltando ao debate quanto ao início de sua formação, muitos autores pretendem retardar o início da personalidade do embrião humano sob argumentos variados, mas todos ligados a um critério cronológico da formação do ser. Alguns dizem que até o décimo-quarto dia de vida o sistema nervoso não estaria completo, outros prolongam esse período até o oitavo e não falta quem delimite esse termo inicial no vigésimo dia. As razões são apoiadas na teoria do brain life que subordina existência da vida humana ao funcionamento cerebral. Esses critérios devem ser abolidos pois o conceito de pessoa escapa à biologia e jamais deverá ser permitido que tal avaliação seja construída arbitrariamente por estes ou aqueles seguidores de correntes diversas, mesmo que científicas.
Sem dúvida que o embrião humano é dotado de natureza racional, da mesma forma que são os bebês recém-nascidos ou os velhos despidos de autodeterminação. A falta de comunicação, por si só, não aniquila a qualidade de pessoa, interessa, apenas, que o indivíduo pertença a uma espécie de natureza racional.
Pode-se afirmar, sem dúvida, que o ser humano, desde a concepção, é uma verdadeira pessoa humana, com todos os requisitos biológicos e ontológicos.
2.2. Teorias que estudam o início da personalidade jurídica.
Tradicionalmente, no Direito Brasileiro, entende-se por pessoa natural o homem como ente jurídico sujeito de direitos. Tal expressão, que foi duramente rebatida por Teixeira de Freitas, para quem tal designação importava na idéia de que se poderiam existir pessoas "não naturais", deveria refletir o ser humano em toda sua amplitude, assegurando-lhe, assim, posição jurídica de destaque no ordenamento positivo. Contudo, na visão do artigo do Código Brasileiro que trata da personalidade civil pode-se extrair concepções equivocadas, dado que nele se estatui que "a personalidade civil da pessoa (no antigo Código de 1916 se usava o vocábulo homem) começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". Em uma primeira leitura pode parecer que o nascituro, na verdade, não é digno de direitos, mas, por uma benevolência da lei alguns direitos lhe ficarão assegurados. Diante dessa impropriedade terminológica, que não é atribuída exclusivamente ao Brasil, utiliza-se algumas teorias para redefinir a real situação do nascituro no direito brasileiro.
2.2.1.Teoria Natalista, Doutrina da Personalidade Condicional (impropriamente chamada doutrina concepcionista) e Doutrina Verdadeiramente Concepcionista.
Para a Teoria Natalista, o nascituro não é considerado pessoa, embora receba proteção legal e a sua personalidade é "subordinada ao nascimento com vida, a aquisição de direitos surgidos desde a concepção subordina-se ao evento futuro e certo do nascimento com vida".
A corrente da personalidade condicional, também chamada de teoria concepcionista, "sustenta o início da personalidade do nascituro a partir da concepção, com a condição de nascer com vida.", caracterizando-se então uma condição resolutiva.
Para a doutrina verdadeiramente concepcionista, a personalidade começa desde o momento da concepção, quando, então, o nascituro é considerado pessoa.
2.2.2.Visão moderna dos direitos dos nascituros no Código Civil Brasileiro.
Um dos autores da Parte Geral do chamado Novo Código Civil, já em vigor, Ministro José Carlos Moreira Alves, assim definiu, na exposição de motivos, a nova estrutura do artigo do Código Civil, então em fase de projeto, que trata da personalidade civil: " Do art. 3° (atual 2° ), suprimiram-se as palavras desde a concepção, para atender-se à objeção de que esta restrição entra em choque com os artigos 2.007,I e 2.008 (atuais 1.987,I e 1.988) do Anteprojeto, os quais – como sucede no Código vigente (art. 1.718) admitem à sucessão os filhos ainda não concebidos."
De bom grado foi mantida no corpo do texto Código promulgado a expressão desde a concepção, do contrário, estar-se-ia equiparando nascituro à prole eventual (quando menciona os artigos do Livro das Sucessões), o que por si só demonstra, no mínimo, uma impropriedade terminológica.
Contra a original redação do projeto contamos com a doutrina de Pierangelo Catalano, citado na obra de Silmara Juny de Abreu Chinelato e Almeida que elogia a redação atual do Novo Código.
Importa ressaltar que a dita nova redação em nada inovou mas, ao menos, se manteve. Isto dá margem a interpretações favoráveis aos embriões, mais notadamente, aos de laboratório, pois se em 1916 o "antigo" Código já protegia alguns direitos dos nascituros e nem se cogitava das técnicas de procriação assistida, não seria justo que o novo sistema deixasse de abarcar os avanços da biotecnologia e proteger também os direitos dos nascituros pré-implantatórios. De se resguardar que tal conclusão se dará através de uma interpretação histórica, sistemática e teleológica do referido diploma.
Portanto, através de uma re-leitura do artigo 2° do Novo Código Civil (antigo art. 4° do Código de 1916), podemos afirmar que tanto os nascituros quanto os embriões pré-implantatórios são considerados pessoa dignas de direitos mesmo que, utilizando-se do conceito de Teixeira de Freitas, sejam pessoas por nascer. Contudo, não pactuamos da opinião de Jussara Juny no sentido de que trata-se de aquisição de direito sob condição resolutiva
3. Proteção Constitucional do embrião.
Embora tenhamos criado duas "categorias" de embriões humanos – os implantados e os pré-implantatórios, ambos merecem tutela constitucional dos direitos fundamentais. Àqueles que aguardam seus destinos em laboratório deve-se procurar enfatizar o princípio da dignidade da pessoa humana, no caso de eles jamais serem implantados. Aliás, deve-se deixar claro, partimos da premissa de que não se deve estimular o aparecimento de embriões excedentários. Somos da opinião de que o homem jamais deve ser, como fim último de sua existência, objeto de pesquisa. Se os métodos de procriação assistida provocam a fecundação de embriões para além do que se deseja dar à luz, cabe ao Estado e órgãos profissionais limitar coercitivamente a forma como é feito o tratamento, ainda que, para isso, aumentem-se o custo e o sofrimento da mulher. É bom lembrar que o direito que deve prevalecer, nesse caso, é o da dignidade da pessoa do embrião.
Por outro lado, não devemos ignorar a realidade fática. Já existem alguns milhares de embriões estocados. Seus destinos não podem ser desprezados pelo ordenamento jurídico. Alguns ainda poderão ser implantados, devendo a estes, então, o respeito ao direito à vida em primeiro lugar. Para os demais, condenados que são aos experimentos científicos, resta a proteção a sua dignidade, pelo que tais experimentos não devem ter outra finalidade que o aprimoramento de tratamento de doenças relativas aos próprios embriões ou de doenças em seres humanos que necessitem emergencialmente deste tipo de tecido. Qualquer outro tipo de especulação cientifica, como clonagem ou aproveitamento de tecidos, deverá, em princípio, ser abolida.
3.1. Direito à vida
Podemos considerar, em vista disso, todos os embriões humanos titulares do direito à vida que é o mais importante de todos os direitos fundamentais que o direito positivo tem o dever de reconhecer.
A expressão direito à vida tem suscitado incertezas perante alguns juristas. Seria a vida humana propriamente um direito? Existiria um direito à vida ou direito de vida? Somos da opinião de que, sob o ponto de vista realista, o direito à vida é um bem, estatuto, que é devido e respeitado, como título de justiça. Sob esse aspecto, incluem-se nesse estatuto todos os direitos naturais inerentes ao homem, como seus direitos de personalidade.
A necessidade de se proteger a vida humana é tão evidente que não necessita expressar-se como direito, seria o mesmo que falar, v. g. em direito a respirar.
Embora, no concernente ao direito à vida, estejam presentes na mesma pessoa sujeito e objeto do direito, não significa isso dizer que enquanto objeto possa o homem ser diminuído em sua vida ou dignidade. Aliás, é sabido que existem inúmeros direitos que exercem, também, uma função, de alguma forma, limitativa desse direito origem. É o caso do pátrio poder, em que a função paternal autoriza certa limitação da autonomia filial mas jamais permite que a dignidade do filho ou sua própria vida seja retirada em nome desse poder. Deve-se ter em mente que esses poderes funções serão sempre exercidos em favor de alguém, em seu benefício.
No caso do direito à vida, o beneficiário será o próprio sujeito do direito. O ser humano é, ao mesmo tempo, sujeito do direito à vida e objeto desse mesmo direito. Portanto, o homem não é direito de outro.
A Constituição Federal da República Brasileira e a Constituição Portuguesa consagram a inviolabilidade do direito à vida, como corolário do respectivo Direito Natural. A principal garantia aí empregada está na proteção contra a violência dos mais fortes, já que a igualdade de todos os seres humanos coloca-se à luz de suas desigualdades. Lembra-nos Ives Gandra Martins que "O direito `a vida, talvez, mais do que qualquer outro, impõe o reconhecimento do Estado para que seja protegido e, principalmente, o direito à vida do insuficiente. Como os pais protegem a vida de seus filhos após o nascimento, os quais não teriam condições de viver sem tal proteção a sua fraqueza, e assim agem por imperativo natural, o Estado deve proteger a vida do mais fraco a partir da teoria do suprimento. Por esta razão, o aborto e a eutanásia são violações ao direito natural à vida, principalmente porque exercidos contra insuficientes. No primeiro caso, sem que o insuficiente possa se defender..." E arremata o professor paulista que o direito à vida é o principal direito do ser humano, cabendo ao Estado preservá-lo desde a concepção e preservá-lo tanto mais quanto mais insuficiente for o tutelado.
Para Canotilho e Vital Moreira, a Constituição da República Portuguesa erigiu o direito à vida à categoria de direito absoluto, não admitindo, por conseguinte, qualquer exceção a sua proteção. Para os autores, esse direito traduz-se, antes de tudo, em direito de não ser morto. É de salientar que a Constituição protege a vida humana de forma igualitária independente de seus titulares.
Atribuindo-se aos embriões humanos a categoria de pessoa humana, portanto entes dotados de personalidade e sujeitos de direitos, não há como lhes tirar a tutela absoluta do direito à vida. Ainda que os autores supra mencionados sejam da opinião de que a proteção da vida intra uterina não tem que ser idêntica em todas as fases de seu desenvolvimento. Mas é importante consignar que há uma grande diferença entre regime de proteção da vida humana e direito à vida. No primeiro caso, o regime de proteção deve ser absoluto independentemente da capacidade de seu titular. No segundo caso, aí sim, pode haver formas de prevalência de direitos pois o direito à vida de uma mulher de 30 anos se relativiza por causa de um possível conflito do direito à vida de um embrião. E isto vale para os embriões implantados no útero como os pré-implantatórios (excedentários ou supra-numerários). Aos primeiros, o resguardo da vida há de ser feito, primordialmente, durante uma gestação sadia. Sua existência também é garantida pelo crime de aborto, mesmo sob o eco dos adeptos da sua plena legalização.
A vida dos embriões também deve ser garantida de forma a impedir sua criação para pesquisas e clonagem. Ainda não há um consenso quanto a este aspecto, tendo alguns países preferência pelo critério cronológico para impedir as manipulações em embriões com mais de quatorze dias de vida. Aparentemente, tal medida parece ter como escopo a proteção à vida e respeito à dignidade dos embriões, contudo, somos da opinião de que há um interesse maior: aproveitar as células embrionárias totipotentes que se encontram em demasia nos primeiros quatorze dias de vida do pequeno ser.
A natureza absoluta da proteção do direito à vida dá-se em razão de sua proteção constitucional impor-se mesmo em caso de sítio ou emergência, significando dizer que, em critérios de proporcionalidade não há valores, ainda que fundamentais, que possam superá-lo. Contudo, como já frisamos, na valoração do direito à vida haverá hipóteses em que a vida ganhará contornos diferentes.
3.2. Dignidade da Pessoa Humana
Esse princípio, que também deve nortear os fundamentos de um ordenamento jurídico moderno, é aproveitado no presente estudo como forma de proteção dos embriões humanos e do ser humano já evoluído. A proteção da dignidade do ser humano nesses casos dá-se como forma de amparo à própria espécie humana que deve ter resguardada sua dignidade desde os seus primeiros momentos de existência. A sociedade que permitir a manipulação desenfreada em embriões humanos está autorizando uma diminuição da dignidade da sua própria espécie.
Neste raciocínio, temos como inconstitucionais quaisquer técnicas relacionadas à engenharia genética que façam dos embriões humanos meros objetos de estudos científicos. Da mesma forma, ter-se-á como inconstitucional as normas médicas que autorizarem a fecundação de embriões humanos em demasia com a finalidade de lograr-se êxito nos métodos de reprodução assistida. Essas técnicas, aliás, devem limitar-se a promover uma fecundação por vez, ainda que isto traga um aumento no custo do tratamento e sofrimento aos interessados.
Quanto aos embriões já estocados, os chamados excedentes ou excedentários, deve-se também respeitar sua dignidade através de duas formas: tentativa esgotada de se procurar uma forma de implantá-lo em algum útero – direito à implantação em útero, que, subseqüentemente, lhe garantiria um direito à vida -, isso pode dar-se já através da adoção de embriões in vitro, ou, no caso de esgotada a viabilidade de um direito à ser gerado, deve ser autorizada, em caráter restritivo, sua manipulação, para o avanço da medicina, naqueles estudos que trouxerem benefícios diretos aos próprios embriões ( como doenças a eles relacionadas) e pesquisas favoráveis à raça humana que dependam exclusivamente das técnicas utilizadas nesses seres humanos em estágio inicial. De qualquer sorte, é bom lembrar, nesses dois casos autorizadores de estudos em embriões só não incidirá um ato inconstitucional por se tratar de embriões já existentes. Jamais deverá o ordenamento jurídico permitir a criação de embriões com a exclusiva finalidade de estudos científicos.
A dignidade da pessoa humana deve ser vista como a necessidade de se respeitar o homem como pessoa, independentemente de raça, religião, condição social, sexo, idade etc... Significa, como ressaltou Jussara Meirelles, "reconhecer na pessoa humana o seu valor intrínseco e sui generis, que não pode ser avaliado segundo critério de ordem econômica."
Para Carlos Maria Romeo Casabona, a dignidade é colocada, às vezes, adiante da própria vida, como no caso da proximidade da morte, quando se faz referencia a uma morte digna.
É interessante colocar, por outro lado, que este princípio é válido mesmo que não se entenda o embrião como pessoa, opinião que descordamos, pois o que se está em proteção, no caso, é a própria existência da raça e a necessidade de se respeitar em igualdade os embriões e as pessoas já nascidas, que, um dia, foram embriões. E, conseqüentemente, nossos descendentes que estão por nascer.
3.3 Historicidade pessoal e identidade genética
A Constituição da República Portuguesa consagrou, em seu artigo 26, n. 3., a garantia da dignidade pessoal e genética do ser humano. In verbis:
"A lei garantirá a dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano, nomeadamente na criação, desenvolvimento e utilização das tecnologias e na experimentação cientifica."
Com isso, consagrou-se, em termos fundamentais, a individualidade do ser humano, como bem investigou Paulo Otero, em duas dimensões: uma absoluta e outra relativa, porém, ambas relacionadas à identidade pessoal.
Em um primeiro aspecto, deve ser digno de respeito a unicidade e irrepetibilidade do ser humano no sentido de que lhe deve ser garantida a sua exclusiva personalidade física e psíquica. Como define o professor supra citado "Neste sentido, a identidade pessoal traduz o direito natural à diferença de cada ser humano que, sendo igual a todos em direitos e deveres, é, todavia, na sua complexa humanidade diferente de todos os demais seres humanos: `em cada homem e em cada mulher estão presentes as faculdades da humanidade`, compreendendo-se, por isso mesmo, que `todo e qualquer homem, toda e qualquer mulher é irredutível e insubstituível` e, em consequência, ninguém deverá ser objeto de discriminação fundada nas suas características genéticas(...)
Ou, visto de outro ângulo, é na singularidade de cada pessoa humana que reside, por um lado, a exigência de se tratar de um ser ` infinitamente digna de respeito e, por outro, o principal elemento da sua própria identidade: todos os demais direitos pessoais decorrem do caráter único, indivisível e irrepetível de cada pessoa humana concreta.
Da infungibilidade, indivisibilidade e irrepetibilidade da pessoa humana, garantidas pela Constituição através do reconhecimento do direito fundamental à identidade pessoal na sua dimensão absoluta, resulta uma principal consequência: a total e absoluta proibição de clonagem humana, enquanto processo mediante o qual se consegue a criação de seres humanos rigorosamente iguais, verdadeiro mecanismo de produção em fotocópia de um mesmo ser."
A identidade pessoal, em seu aspecto relativo é retratada no âmbito da historicidade pessoal da pessoa e, nesse particular, são afetados de imediato os embriões que serão objeto de manipulações genéticas e estudos de reprodução assistida.
Ainda para o dr. Paulo Otero, um dos poucos que se aprofundou no tema, o direito à historicidade pessoal envolve "o direito de cada ser humano conhecer a forma como foi gerado ou, mais amplamente, o direito a conhecer o patrimônio genético(...) e o concreto direito de cada ser humano a conhecer a identidade dos seus progenitores(...)"
Com base nesses entendimentos, deverão ser vedados todos e quaisquer métodos de procriação artificial que visem criar uma pessoa privada de estrutura familiar, bem como deverão ser abolidas, por inconstitucionais, normas que proíbam ou que destruam registros parentais dos embriões, tornando-os futuros nascentes sem passado. É o chamado direito da "biparentabilidade biológica", que dá ao futuro ser o direito de ter acesso a seus parentes biológicos, a fim de que se tome conhecimento, dentre outras importâncias, de seus componentes genéticos e biológicos, traçando, assim, um mapa que lhe permitirá, se necessário, descobrir curas ou prevenção de doenças de cunho genético.
Como proteção do embrião que se encontra destinado à formas de reprodução artificial, também deve ser ilícita a geração de embriões após a morte de seus progenitores como ato de última vontade destes. É um atentado ao direito fundamental a sua identidade pessoal já que todos têm direito de ser gerados de forma similar à realidade. Ninguém poderá ser condenado a nascer órfão. "Deve considerar-se nula, por conseguinte, enquanto violação da cláusula dos bons costumes e, simultaneamente, da ordem axiológica da Constituição, qualquer manifestação de vontade testamentária no sentido de se proceder a uma inseminação artificial post mortem."
Esclareça-se que o cerne da questão gira em torno de se proporcionar ao embrião e, futuramente, ao recém nascido, uma forma de vida o mais assemelhada possível com a realidade humana, por isso somos do entendimento que essa restrição constitucional não atingiria as procriações assistidas solicitadas por casais homossexuais ou, ainda, por pessoas que vivem só, já que, como na vida real, é possível que esses fatos ocorram através do antigo processo de adoção. Além disso, é de se aceitar que vem sendo cada vez mais comum a incidência de casais homossexuais que tiveram seus filhos de forma natural. O que não pode, repetimos, é privar o embrião de ter conhecimento de seus ancestrais biológicos e acesso a uma estrutura familiar que lhe dê apoio.