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UMA NOÇÃO DE JUSTIÇA

Agenda 08/10/2017 às 17:35

Seria a justiça uma força natural de equilíbrio social? A ideia de equilíbrio, de meio termo, de igualdade parece permear as abordagens desse conceito, que no texto é tratado com base em um autor atual, Michael J. Sandel, e em um antigo, Aristóteles.

Michael Sandel, filósofo de Harvard, inicia seu livro “Justiça: o que é fazer a coisa certa?” dando o seguinte exemplo: Há um veículo desgovernado que está prestes a atropelar e matar um grupo de quatro pessoas. A única alternativa do motorista é virar o volante para a direita, o que acarreta, necessariamente, a morte de uma pessoa.

Ao questionar para o auditório o que cada um faria, parece prevalecer a opinião de que é melhor matar apenas uma pessoa do que matar quatro.

Então, ele muda um pouco o exemplo: ainda há um veículo desgovernado indo de encontro a quatro pessoas. Agora, porém, o motorista não tem alternativa. Ocorre que esse veículo está passando por baixo de um viaduto e você (no caso as pessoas do auditório) está em cima desse viaduto ao lado de uma pessoa obesa. Você pode impedir a morte das quatro pessoas se empurrar a pessoa obesa do viaduto e fazê-la cair na frente do veículo, o que acarretará a morte dessa pessoa.

Nesse exemplo, contudo, a conclusão anterior de que é melhor morrer uma pessoa do que quatro começa a ser questionada.

Mais adiante, o autor relata uma situação em que há quatro doentes em um hospital esperando um transplante, sem o qual eles irão falecer. Em uma sala ao lado, há um jovem cochilando, que é saudável e doador compatível. Novamente o autor questiona se seria melhor matar esse jovem para retirar seus órgãos e salvar as quatro pessoas.

Esses exemplos ainda podem ser alterados. No primeiro exemplo, poder-se-ia trazer qualidades para as pessoas, ou seja, descrever que o grupo de quatro pessoas tem determinadas qualidades e o indivíduo sozinho tem outras. Assim, a conclusão poderia mudar, conforme fossem crianças, trabalhadores, criminosos, moribundos etc.

O autor ainda traz uma série de questões sobre cotas, tributação, taxas para furar fila etc. Traz uma questão sobre se seria justo um comerciante aumentar os preços de suas mercadorias após ter ocorrido um desastre na cidade e ter aumentado muito a demanda por seus produtos. Segundo menciona, algumas pessoas diriam que isso seria um abuso da necessidade das pessoas. Outras sustentariam que a alta dos preços faria o abastecimento se restabelecer mais rápido, pois atrairia novos fornecedores.

De acordo com ele, em muitas situações, as decisões sobre o que é justo são tomadas com base em duas perspectivas. Aquela que sustenta que é melhor matar uma do que matar várias pessoas teria um fundamento utilitarista, com base em Bentham, que, de modo geral, se orientaria para buscar o máximo de bem com o mínimo de mal. Já os que não admitem esse raciocínio teriam uma base moralista, baseada em Kant, segundo a qual, se uma coisa é devida, essa regra não pode ser quebrada. Ainda segundo a corrente moralista, se uma conduta é esperada, ela deve ser praticada não pelo medo das consequências, mas pelo simples fato de ser devida.

Para acalmar os ânimos pela dificuldade de encontrar uma solução, o autor lembra que essas questões vêm sendo feitas durante a história da humanidade, ainda que sem resposta. Mas pensar sobre elas nos faz avançar no caminho da virtude. Seria a política o campo mais propício para esse exercício e, por ser exercício, deveria ser uma prática constante.

Curiosamente, o pensador que parece mais influenciar Sandel é Aristóteles, anterior, portanto, aos outros dois filósofos citados.

Aristóteles, em seu “Ética a Nicômaco”, antes de explicar a Justiça, faz referência à virtude, como o objetivo da política.[1]

A virtude seria adquirida pelo hábito, pela prática. A virtude consistiria em uma disposição de caráter voltada para o bem, para o melhor, para o justo, que normalmente se situa em um meio-termo entre dois extremos.[2] Segundo Aristóteles, “a virtude é, então, uma disposição de caráter relacionada com a escolha de ações e paixões, e consistente numa mediana, isto é, a mediana relativa a nós, que é determinada por um princípio racional  próprio do homem dotado de sabedoria prática.” Prossegue o filósofo dizendo que “é um meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta...”[3]

Voltada que é para a busca do justo, Aristóteles então busca definir a justiça, que, para ele, “é uma disposição de caráter que torna as pessoas propensas a fazer o que é justo, que as faz agir justamente e a desejar o que é justo...”[4]

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A justiça é a virtude completa, considerada a maior das virtudes, a estrela D’Alva.[5] A referência a essa estrela se deve ao fato de muitas vezes ela ser a única avistada no céu, assim como a justiça, que se basta a si própria.

Ao explicar no que consiste a Justiça, Aristóteles esclarece que existem duas espécies de justiça, a distributiva e a corretiva. A primeira estaria ligada a distribuição de ônus e bônus. A segunda, a reparação de danos.[6] Finalmente ele traz a ideia de equidade, que, para ele, seria uma correção ou adaptação da regra geral ao caso concreto.[7]

Um exemplo de justiça distributiva, segundo Sandel, citando Aristóteles, estaria em entregar as melhores flautas para os melhores flautistas, pois poderiam produzir melhor som. Obviamente essa solução decorre do critério previamente estabelecido, que foi o de ter a melhor música. Quando trata das cotas em Universidades, por exemplo, Sandel lembra que, se o objetivo da Universidade for formar os melhores profissionais em termos técnicos, talvez fosse adequado selecionar os mais talentosos e capazes, mas se o objetivo for trazer uma formação plural, estimular a convivência de várias visões, então estaria plenamente justificada a política de cotas. A questão estaria em definir o critério a ser adotado.

A justiça corretiva estaria presente no exemplo acima relativo ao preço justo das mercadorias. Para Tomás de Aquino, a propósito, preço justo é o que se aceita pagar quando se está plenamente informado.[8]

Convém lembrar que justiça não se confunde necessariamente com a lei. Tanto é que o nazismo foi praticado com base legal.[9]

Finalmente, voltando ao aspecto conceitual, há quem diga que justiça é “dar a cada um o que é seu”. Mas, rigorosamente, isso é justo, mas não o conceito de justiça.

Uma proposta conceitual, para reflexão, seria considerar justiça como uma força natural, assim como a força da gravidade. A justiça seria a força que moveria as pessoas em suas relações para um estado de equilíbrio.[10]

Assim, a construção da justiça seria algo dialogado e aperfeiçoado segundo os tempos, os lugares e as pessoas envolvidas.


Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003.

KISHTAINY, Niall et alli. O livro da economia. Tradução Carlos S. Mendes. São Paulo: Globo, 2013, p. 23

ROSS, Alf. Direito e justiça. [trad. Edson Bini] Bauru, SP: EDIPRO, 2003.

SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Tradução Heloísa Matias e Maria Alice Máximo, 5.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

SARAI, Leandro. Esboço de uma teoria de justiça. Jan. 2011. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/47519/esboco-de-uma-teoria-de-justica>  acesso em: 16 maio 2016.


Notas

[1] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003, p.21

[2] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 46-49.

[3] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 49.

[4] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 103.

[5] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 105.

[6] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 108-112.

[7] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 124-125.

[8] KISHTAINY, Niall et alli. O livro da economia. Tradução Carlos S. Mendes. São Paulo: Globo, 2013, p. 23.

[9] ROSS, Alf. Direito e justiça. [trad. Edson Bini] Bauru, SP: EDIPRO, 2003, p .296-297.

[10] SARAI, Leandro. Esboço de uma teoria de justiça. Jan. 2011. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/47519/esboco-de-uma-teoria-de-justica>  acesso em: 16 maio 2016.

Sobre o autor
Leandro Sarai

Doutor e Mestre em Direito Político e Econômico e Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado Público.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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