I. INTRODUÇÃO
Há semanas atrás, o Excelso SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL indeferiu medida liminar na ADI nº 2325, ajuizada pela CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA - CNI, na parte em que se buscava a suspensão de dispositivos da Lei Complementar nº 87/96 (Lei Kandir), especialmente daqueles modificados pela Lei Complementar nº 102/2000, que alterou a sistemática de utilização de créditos de ICMS, decorrentes de entradas de mercadorias destinadas ao ativo permanente do contribuinte, cuja apropriação passou a ter de ser feita de forma diferida, conforme se explicitará mais a frente.
No presente estudo, não focaremos os argumentos utilizados pela CNI neste processo, que tocam uma eventual ofensa ao "princípio constitucional da não-cumulatividade" que rege este imposto, portanto não discutiremos a constitucionalidade dessas alterações, a qual, a rigor, parece que será confirmada pelo STF.
Assim, nos concentraremos na interpretação a ser conferida a tais dispositivos, pois acreditamos que os mesmos possuem expressões às quais podem ser atribuídos significados diversos, tanto pelo Fisco, quanto pelos contribuintes.
Inicialmente, para facilitar a visualização da matéria, transcrevemos os dispositivos que se mostram relevantes para o presente estudo:
"Art. 20. Para a compensação a que se refere o artigo anterior, é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso e consumo ou ao ativo permanente, ou o recebimento de serviços de transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação.
Parágrafo 1º. Não dão direito a crédito as entradas de mercadorias ou utilização de serviços resultantes de operações ou prestações isentas ou não tributadas, ou que se refiram a mercadorias ou serviços alheios à atividade do estabelecimento.
(...)
Parágrafo 5º. Para efeito do disposto no caput deste artigo, relativamente aos créditos decorrentes de entrada de mercadorias no estabelecimento destinadas ao ativo permanente, deverá ser observado:
I – a apropriação será feita à razão de 1/48 (um quarenta e oito avos) por mês, devendo a primeira fração ser apropriada no mês em que ocorrer a entrada no estabelecimento;
II – em cada período de apuração do imposto, não será admitido o creditamento de que trata o inciso I, em relação à proporção das operações de saídas ou prestações isentas ou não tributadas sobre o total das operações de saídas ou prestações efetuadas no mesmo período;
III – para aplicação do disposto nos incisos I e II, o montante do crédito a ser apropriado será o obtido multiplicando-se o valor total do respectivo crédito pelo fato igual a 1/48 (um quarenta e oito avos) da relação entre o valor das operações de saídas e prestações tributadas e o total das operações saídas e prestações do período, equiparando-se às tributadas, para fins deste inciso, as saídas e prestações com destino ao exterior;
(...)"
Tendo em mente os dispositivos legais acima elencados, passamos, então, a estudá-los.
II. DO DIREITO AO CRÉDITO DO ICMS
O ICMS é regido, dentre outros, pelo "princípio da não-cumulatividade" (artigo 155, parágrafo 2º, incisos I, da Constituição Federal de 1988, e artigo 19, da Lei Kandir), que determina que o imposto que for devido em cada operação será compensado com o montante cobrado nas operações anteriores, gerando, assim, uma seqüência de acontecimentos interligados, relacionados com a cadeia produtiva/mercantil dos contribuintes.
O artigo 20, da Lei Kandir, disciplina o sistema de utilização de créditos do ICMS, decorrente do citado princípio da não-cumulatividade, sendo que o caput de tal artigo estabelece uma primeira regra básica de que toda mercadoria entrada no estabelecimento do sujeito passivo, seja referente a insumos, bens de seu uso ou consumo ou bens destinados ao seu ativo fixo, dá direito ao crédito do imposto.
Já o parágrafo 1º, deste artigo, estabelece uma regra especial, que, no ponto que interessa a este estudo, determina que as entradas que se refiram a mercadorias ou serviços alheios à atividade do estabelecimento não dão direito ao crédito do imposto.
Tal parágrafo visa, a nosso ver, gerar um certo equilíbrio na sistemática de créditos e débitos do ICMS.
Isto porque, como dito, o ICMS é um imposto de natureza mercantil, vale dizer, deve incidir apenas sobre operações que possuam esta natureza, o que faz com que as saídas eventuais, ou seja, aquelas referentes a operações não habituais ou sem intuito comercial realizadas pela empresa, mais precisamente aquelas não ligadas a sua atividade, não estejam sujeitas à incidência do ICMS, conforme se depreende do próprio conceito de contribuinte inserido no artigo 4º, da Lei Kandir.
Pelo mesmo motivo, não há razão para as entradas também não vinculadas a esta atividade, diga-se, que não possuem um caráter mercantil/comercial para o adquirente, gerarem créditos do imposto. Em outras palavras, as aquisições nas quais o adquirente funcionar como destinatário final não têm o condão de gerar tal direito a crédito, salvo quando tais operações se referirem a mercadorias vinculadas à atividade comercial desempenhada pelo contribuinte.
Tal regra especial, na nossa opinião, deve ser aplicada às entradas referentes a todos os tipos de mercadorias, notadamente aquelas destinadas ao uso ou consumo e ao ativo permanente do contribuinte, uma vez que aquelas que se referem a insumos, por lógica, não se submetem a este comando legal, pois pressupõem uma vinculação com a cadeia produtiva do contribuinte.
Assim, especialmente com relação às entradas de mercadorias destinadas ao ativo permanente do contribuinte, que são o objeto fundamental do presente estudo, somente aquelas tocantes a bens vinculados à cadeia produtiva do contribuinte geram direito ao crédito do imposto.
Reconhecemos a possibilidade de se conferir interpretação divergente da nossa para estes dispositivos, especialmente pelos contribuintes, que poderiam alegar que a previsão no parágrafo 1º não se aplicaria às entradas de mercadorias destinadas ao seu ativo permanente, uma vez que estas entradas são disciplinadas por dispositivo diverso (parágrafo 5º), de modo que mesmo as mercadorias destinadas ao ativo permanente não vinculadas à atividade da empresa gerassem crédito de ICMS.
No entanto, esclarecemos que esta nossa visão tem o objetivo, justamente, de manter uma coerência no regime de créditos do ICMS, como será melhor explicado adiante, o que, a princípio, acreditamos não acontecer caso se dê interpretação diversa aos comandos legais em espécie.
III. DO SISTEMA DE CRÉDITOS NAS ENTRADAS DE MERCADORIAS DESTINADAS AO ATIVO PERMANENTE DO CONTRIBUINTE
Ressalte-se, uma vez mais, que o ICMS é um imposto de natureza mercantil, incidente sobre "operações relativas à circulação de mercadorias", e não de bens. Objetivando estabelecer o real significado da expressão "mercadorias", destaca-se o ensinamento do eminente doutrinador Hugo de Brito Machado, em sua festejada obra "Curso de Direito Tributário", Editora Malheiros, São Paulo:
"O que caracteriza uma coisa como mercadoria é a destinação. Mercadorias são aquelas coisas móveis destinadas ao comércio. São coisas adquiridas pelos empresários para revenda, no estado em que as adquiriu, ou transformadas, e ainda aquelas produzidas para venda".
Diante da definição acima, plenamente aceita por maciça maioria doutrinária e jurisprudencial, fica claro que disciplina de utilização de créditos de ICMS deve ficar adstrita ao âmbito do processo produtivo dos contribuintes, vale dizer, no ambiente da cadeia de acontecimentos que envolvem suas finalidades comerciais, as mercadorias por eles comercializadas.
Os artigos transcritos acima explicitam um regime diferenciado de apuração e utilização dos créditos de ICMS decorrentes de entradas de mercadorias destinadas ao ativo permanente do sujeito passivo, que pode ser resumidamente explicado na forma abaixo:
- A utilização de tal crédito, que antes era imediata no momento da entrada, passou a ser diferida em 48 "parcelas mensais", de acordo com as alterações introduzidas na Lei Kandir pela Lei Complementar nº 102/2000;
- Para a apuração do valor de cada uma dessas parcelas mensais, o contribuinte deverá: a) calcular o valor correspondente a 1/48 (um quarenta e oito avos) do montante total do respectivo crédito; b) apurar a relação proporcional entre as saídas tributadas (nelas incluídas as saídas por exportação) e as saídas totais; e c) aplicar este percentual sobre o valor calculado conforme a letra "a", que gerará o valor do crédito que poderá ser apropriado naquele mês;
- Ademais, não é permitido o creditamento do valor referente à proporção entre as operações de saídas isentas ou não tributadas e o total das operações de saídas, o que, na realidade, já é conseguido com a utilização da sistemática referida no parágrafo anterior.
Assim, podemos estabelecer o seguinte exemplo:
1 |
2 |
3 |
4 |
Entrada de mercadoria destinada ao Ativo Permanente, em determinado mês: |
Aplicação da letra "a" acima: |
Proporção entre saídas tributadas (exportação inclusive) e saídas totais: |
Crédito possível de ser utilizado no mês: |
Créditos de mercadorias vinculadas à atividade do contribuinte = 480 "Créditos" de mercadorias não vinculadas à atividade do contribuinte = 100 (não geradoras de créditos de ICMS) |
1/48 do valor total do crédito: 480 x 1/48 = 10 |
Saídas tributadas + exportação = 1000 Saídas totais = 2000 Proporção: 50% |
Aplicação da Proporção sobre 1/48 do total do Crédito = 5 |
Conforme vimos no tópico II, nosso entendimento é no sentido de que apenas a entrada de mercadorias destinadas ao ativo permanente, que possuam vinculação com a cadeia produtiva do contribuinte, geram direito ao crédito do ICMS, conforme coluna 1.
Não obstante, é necessário se fixar os conceitos constantes nas demais colunas, especialmente na coluna 3, que trata da proporcionalidade que será aplicada sobre o valor correspondente a 1/48 (um quarenta e oito avos) do valor total do crédito.
Tal proporção se dá entre "o valor das operações de saídas e prestações tributadas e o total das operações de saídas e prestações do período".
Quanto à primeira parte, não há qualquer dificuldade em se estabelecer o respectivo conceito, pois, por um lado, como já visto, apenas as saídas decorrentes da atividade habitual e comercial do contribuinte sofrem incidência do ICMS e, por outro, a parte final do inciso III, do parágrafo 5º, do artigo 20, da Lei Kandir, é expressa no sentido de que as saídas para o exterior devem ser equiparadas, para esta finalidade, às saídas tributadas.
Já quanto à segunda parte, que tange ao total de operações realizadas em um período, podem surgir algumas interpretações distintas.
Na nossa opinião, se apenas as entradas de mercadorias vinculadas à atividade do contribuinte geram crédito de ICMS e se somente as saídas de mercadorias que constituam atividade habitual do contribuinte sujeitam-se à incidência do imposto, é razoável se entender que a proporção referida na coluna 3, da tabela acima, deve se restringir ao âmbito de "atuação" do ICMS, ou seja, apenas levando em consideração, para o cálculo do "valor total das operações de saídas", aquelas operações tributadas, de exportação, isentas ou não tributadas que se vinculem à atividade comercial habitual do contribuinte, não devendo ser computadas, para este fim, aquelas que não guardem relação com a atividade comercial da empresa, por estarem fora do campo de incidência do ICMS no que tange aquele contribuinte.
Mais especificamente, se acreditamos que a entrada de mercadorias destinadas ao ativo permanente do contribuinte, não vinculadas à sua atividade, não faz nascer o direito ao crédito de ICMS, não podemos admitir que a saída desses bens (não vinculados a tal atividade) seja levada em consideração na fixação da proporcionalidade supra referida, pois isto romperia o raciocínio sistemático aplicável ao regime.
A despeito deste nosso entendimento, registramos que alguns entes fiscais vêm entendendo que na expressão "valor total das operações de saídas" estariam incluídas aquelas quantias relativas a saídas não relacionadas com a atividade do contribuinte, mas acreditamos que esta interpretação será devidamente refutada pelo Poder Judiciário.
IV. CONCLUSÃO
Diante de tudo o que foi acima exposto, cremos ter restado esclarecido o nosso pensamento a respeito da interpretação dos dispositivos legais em tela, especialmente que:
a)não se mostra razoável que as entradas de mercadorias (com qualquer destinação) não vinculadas à atividade do contribuinte gere direito a crédito de ICMS, uma vez que as saídas não vinculadas a tal atividade não gera débito do imposto;
b)com relação aos créditos decorrentes da entrada de mercadorias destinadas ao ativo permanente do contribuinte, também não se mostra razoável o raciocínio inverso, vale dizer, de que as entradas de mercadorias não vinculadas à atividade do contribuinte não gerariam direito ao crédito, mas as saídas não vinculadas integrariam o "valor total de saídas", para fins de fixação da proporcionalidade em que tais créditos serão utilizados; e
c)o mais razoável é que, de um lado, apenas as entradas de mercadorias destinadas ao ativo permanente do contribuinte, vinculadas à sua atividade, gerem direito a crédito do ICMS, e, de outro, somente as saídas de mercadorias vinculadas à atividade do contribuinte integrem o "valor total de saídas", para fins de fixação da dita proporcionalidade.
O intuito do presente estudo é, unicamente, instigar uma discussão sobre a interpretação a ser atribuída a tal dispositivo, de forma que novos argumentos e linhas de raciocínio surjam, o que, certamente, somente enriquecerá o debate sobre o tema.