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Ilegalidade na cobrança da assinatura de linhas telefônicas

Agenda 27/12/2004 às 00:00

Resumo: No Estado de Direito, existe o sério compromisso em consagrar a supremacia constitucional, em afirmar certos valores fundamentais da pessoa humana, bem como em exigir o funcionamento do Estado para a proteção daqueles valores. Contudo, a tendência ao abuso do poder acaba por transformá-lo num mero dogma político. A cobrança renitente da assinatura básica do serviço telefônico, definitivamente, incide em flagrante inconstitucionalidade, por afrontar importantes preceitos fundamentais. Trata-se de uma cobrança espoliativa, alardeada pelas grandes empresas particulares, sem qualquer amparo legal.

Palavras-chave: Neoliberalismo. Estado de Direito. Princípio da Legalidade administrativa. Tarifa.


1-Introdução.

Ne sutor ultra crepidam! (Não deve o sapateiro julgar além da sandália), já dizia o pintor grego Apeles, em célebre lamento, traduzindo o sentimento humano de repulsa a todo aquele que se atreve a palpitar sobre assuntos que, definitivamente, desconhecem. Nesse sentido, o presente trabalho buscará tecer algumas considerações jurídicas sobre um polêmico tema, a assinatura mensal de serviço telefônico, desmistificando a posição das empresas de telefonia, que insistem em justificar tal cobrança.

Desde longo tempo, importantes empresas de telefonia, como a Telefônica, Telemar e Brasil Telecom, vêm cobrando de seus usuários, a título de tarifa, a assinatura básica do serviço telefônico fixo comutato (STFC), com base na Portaria nº226/97, expedida pelo Ministério das Comunicações. Ocorre que tal prática, embora despercebida por muitos usuários e defendida pela agência reguladora ANATEL, é inconstitucional e abusiva, por ferir fundamentais preceitos da Constituição.

A partir da década de 90, com o fenômeno da globalização, o Estado brasileiro passou a sofrer transformações estruturais, com a adoção de algumas políticas neoliberais, como a extinção de restrições ao capital estrangeiro, a privatização de bens públicos e, em especial, a flexibilização do monopólio das estatais.

"Globalização é um conceito sem referência a quaisquer valores, imposto ao mundo como estratégia de perpetuação do status quo de dominação pelos grupos econômicos supranacionais" (BONAVIDES, Paulo).

De fato, a Emenda Constitucional nº5/95 permitiu ao Poder Público a delegação da a execução de determinados serviços públicos, como o de telecomunicações, a empresas particulares, mediante o sistema de concessões, permissões ou autorizações, conforme o disposto na nova redação do artigo 21, XI, da Constituição Federal, que assim determina: "Compete a União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais".

Sabe-se que no Brasil, o serviço público de telecomunicações, prestado por empresas particulares, é exercido através do sistema de concessões, em que se verifica uma delegação contratual da prestação de determinado serviço público, feita pelo Poder concedente à empresa particular, mediante licitação na modalidade concorrência pública, dentro de um prazo determinado, para ser realizado por conta e risco do concessionário, assegurando a remuneração por meio de tarifa paga pelo usuário.

"Concessão de serviço público é espécie de contrato administrativo por meio do qual o Poder Público concedente, sempre precedido de licitação, salvo as exceções legais, transfere o exercício de determinados serviços ao concessionário, pessoa jurídica privada, para que os execute em seu nome, por conta e risco" (FIGUEIREDO, Lúcia Valle, p.91).

A Lei 8987/95 regulamenta o regime de concessão de serviço público para empresas particulares e estabelece as normas gerais a serem respeitadas pelos demais entes federativos, tal como exigido pelo artigo 175, caput, da Constituição Federal ("Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos").

Contudo, a organização dos serviços de telecomunicação é disciplinada por uma lei específica, denominada Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº9472/97), que, porém, não faz menção alguma à cobrança da assinatura mensal, acabando por ferir o princípio da legalidade administrativa, conforme abordaremos em seguida.


2-Princípio da Legalidade.

Em verdade, a Portaria nº226/97, expedida pelo Ministério das Comunicações, impôs ao usuário do sistema de telefonia a obrigação de pagar, mensalmente, uma quantia fixa, denominada "assinatura mensal", independente do uso, como condição prévia para o direito de acesso e uso dos serviços telefônicos. Significa dizer que o usuário do sistema de telefonia é compelido a contribuir com um valor fixo, independente da utilização da linha telefônica, ou seja, independente dos pulsos consumidos, em razão do disposto em uma portaria, e não em uma lei.

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Ora, tal cobrança de assinatura mensal, realizada comumente pelas empresas de telefonia, é considerada inconstitucional, por ferir o princípio da legalidade, que prescreve no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, o seguinte: "Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei". Trata-se de importante regra de salvaguarda para os administrados e de limitação ao Poder Público, na medida em que impõem o respeito ao disposto em lei. Afinal, como afirma Seabra Fagundes "administrar é aplicar a lei de ofício".

"O princípio da legalidade é, desse modo, o meio de realizar a subordinação da Administração ao Parlamento e, pois, de proteger os cidadãos contra as iniciativas arbitrárias da Administração" (DEBBASCH, Charles. p.295).

Diz-se "em virtude de lei", justamente para esclarecer que só a lei obriga os administrados a adotar comportamento comissivo ou abstensivo. Portanto, a Administração Publica não pode, através de uma portaria, de decreto, de regulamento ou outro ato normativo, obrigar seus administrados a realizar a assinatura mensal do serviço público de telefonia, pois portaria, definitivamente, não é lei!

Dentro do sistema escalonado de Hans Kelsen, a Constituição encontra-se no ápice da pirâmide e todas as normas inferiores devem buscar o fundamento de validade nas normas superiores e todas elas, na Constituição. Assim, se uma portaria contrariar um dispositivo constitucional estará fora da pirâmide e ninguém será obrigado a cumpri-la. Isso ocorre porque a nossa Carta Magna não representa mero repositório de recomendações a serem atendidas ou não, mas o conjunto de normas supremas que devem ser incondicionalmente observadas e rigorosamente atendidas.

Norberto Bobbio confessa aceitar a teoria da construção escalonada do ordenamento jurídico de Hans Kelsen, assim:

"Há normas superiores e normas inferiores. As inferiores dependem das superiores. Subindo das normas inferiores àquelas que se encontram mais acima, chegamos a uma norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior, e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento. Essa norma suprema é a norma fundamental, a Constituição".

No Direito Administrativo brasileiro, o princípio da legalidade apresenta-se de forma mais rigorosa e especial, pois há uma completa e irrestrita submissão ao disposto na lei. Como é sabido, a Administração Pública deve, tão-somente, cumprir, pôr em prática, executar, reverenciar as disposições gerais fixadas pelo Poder Legislativo. Em outras palavras, só pode fazer o que a lei expressamente autoriza ou determina, inexistindo incidência de sua vontade subjetiva. Toda imposição de comportamento ao administrado poderá ser feita se estiver respaldado em lei, jamais em portaria ou outro ato normativo.


3-Natureza jurídica da assinatura mensal.

Não deve prosperar o argumento de que a assinatura mensal do serviço público de telefonia, cobrada dos usuários, é considerada taxa. Dentre os tributos, a taxa é considerada um tributo vinculado a uma atividade estatal efetiva ou potencial, de acordo com o disposto no artigo 145, inciso II, da Constituição Federal. As taxas, criadas por lei, possuem o caráter de compulsoriedade, o que obriga os usuários a contribuir pelo serviço público utilizado efetivamente ou posto à sua disposição. No entendimento de Roque Carrazza:

"O serviço público que rende ensejo à criação de taxa de serviço não precisa, necessariamente, ser usufruído pelo contribuinte. Não. Basta que exista e seja posto à sua disposição".

Ora, todas empresas concessionárias de serviços públicos são remuneradas por meio de tarifas, conforme o disposto no artigo 175, parágrafo único, inciso III, da Constituição Federal de 88 ("A lei disporá sobre política tarifária"). Inclusive, a Lei nº89872/95 e a Lei nº9472/97, denominada Lei Geral de Telecomunicações, seguem o mesmo entendimento.

Neste sentido, quando a concessionária presta o serviço público de telefonia deve ser remunerada por meio de tarifas a serem cobradas do usuário. As tarifas permitem a justa remuneração do capital investido pelo concessionário, do melhoramento e da expansão do serviço público e, assim, garantem o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão. A tarifa não é espécie tributária, mas o preço público cobrado dos usuários pela utilização de serviços efetivamente prestados, sempre que usufruídos. Surge da relação contratual entre o prestador do serviço público e o usuário.

"Tarifa corresponde à quantia em dinheiro que os usuários são obrigados a pagar á empresa concessionária quando se utilizam do serviço público" (CRETELLA JÚNIOR, José. p. 378).

Como admitir que as empresas de telefonia continuem realizando a cobrança compulsória da assinatura do serviço de telefonia, independente de seus assinantes fazer ou não uso do telefone? O assinante não deve ser compelido a pagamento de serviços que não foram utilizados, pois tarifa somente é cobrada em relação à prestação de serviço efetivo e não potencial. Portanto, as teles podem cobrar tarifas sobre pulsos (e serviços) que, de maneira concreta, são utilizados pelo consumidor, mas não sobre o fato de ter uma linha na residência ou no comércio, pois tal prática é abusiva e sem amparo legal.


4-Conclusão

É grande a dificuldade para ajustar a idéia de Estado de Direito às práticas abusivas realizadas pelas empresas de telefonia com relação à cobrança mensal da assinatura do serviço telefônico fixo comutato (STFC). A tendência ao abuso acaba por transformá-lo num dogma político, bem distante dos preceitos democráticos.

Os usuários dos serviços de telecomunicações devem fazer valer seus direitos fundamentais, sem se intimidar com os inúmeros "sapateiros" da lenda grega, que propalam críticas quase sempre infundadas. Tais usuários somente são obrigados a pagar, mediante tarifa, os serviços contratados e efetivamente prestados, como os de "pulsos", chamadas interurbanas, chamadas para celulares, identificador de chamadas etc.

Para que haja a cobrança mensal da assinatura dos serviços telefônicos torna-se imprescindível a elaboração de uma lei, pois o princípio da legalidade administrativa determina que a Administração Pública só pode fazer o que a lei determina ou autoriza, e não uma portaria. Além disso, na concessão de serviço público, a cobrança de tarifa, que não é um tributo, deve ser realizada em razão do serviço prestado e usufruído pelos usuários, destituído do caráter compulsório das taxas.

Importante notar que tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei 5.476/01, de autoria do deputado Marcelo Teixeira (PMDB-CE), que propõe a extinção do valor cobrado pela assinatura das contas telefônicas. Se o projeto for aprovado, serão cobrados do assinante somente os pulsos efetivamente utilizados. Trata-se de uma iniciativa louvável para o restabelecimento da supremacia da lei e, portanto, salvaguarda do Estado democrático de Direito.


5-Indicações Bibliográficas.

AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 9ªed. São Paulo: Saraiva, 2003.

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 1995.

BATISTA, Paulo Nogueira. O Consenso de Washington. Caderno Dívida Externa nº6.

BOBBIO, Norberto. Giusnaturalismo e Positivismo Giuridico. 3ª ed. Milão: Edizioni di Comunitá, 1977.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

CARRAZA, Roque Antônio. Curso de Direito Tributário Constitucional. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 1997.

CRETELLA JUNIOR, José. Curso de Direito Administrativo. 17ªed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. 4ªed. São Paulo: Saraiva, 2001.

DEBBASCH, Charles. Droit Administratif. 1968.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 13ªed. São Paulo: Atlas, 2000.

MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 5ªed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1998.

Sobre a autora
Ivana Mussi Gabriel

advogada em São José do Rio Preto (SP), professora universitária, especialista em Direito Tributário pelo IBET e mestranda na ITE/Bauru.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GABRIEL, Ivana Mussi. Ilegalidade na cobrança da assinatura de linhas telefônicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 538, 27 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6116. Acesso em: 24 nov. 2024.

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