Resumo: O presente artigo tem como escopo promover uma breve reflexão sobre as discussões envolvendo a pena de morte, notadamente enfatizando a problemática de sua aplicabilidade no sistema penal brasileiro, considerando aspectos históricos, jurídicos e analógicos sem deixar de lado o amparo dos Direitos Humanos. A pena de morte é a mais antiga modalidade punitiva que se tem registro e, com a evolução cultural dos povos, sua execução passou a ser vista por muitos como absurda e arcaica; outros, entretanto, ainda a sustentam como o mais eficiente meio de controle social. Embora pareça defasado, este assunto jamais foi posto totalmente de lado; sempre que a sociedade se depara com algum acontecimento atípico que abala a ordem preestabelecida, algo que atente contra a vida, a moral e os costumes que a sustentam, que a choque, o primeiro pensamento “justiceiro” que desponta deseja a morte do dito meliante. Aparentemente, a mesma sociedade que chora a morte do agredido se alegra com a de seu agressor e esta dicotomia será outra peça fundamental no costurar deste projeto. Ainda, versaremos sobre a obra cinematográfica americana “A Vida de David Gale” que contempla as discussões inerentes ao tema em tela e questiona a eficácia da consecução da pena de morte, comum no sistema jurídico Norte-Americano e as diferentes formas de como essa sociedade caracterizada pelo seu jeito livre de se auto organizar e pensar reage quando posta diante de um caso controverso como o retratado no filme.
Palavras-chave:Pena de morte; Eficiência; Justiça; Direito a vida; A vida de David Gale.
1 Introdução
A discussão sobre a pena de morte (ou pena capital) é tão emblemática quanto a sua presença na história da humanidade. Desde os primórdios do Direito, já nas primeiras sociedades juridicamente constituídas, seu espectro se mostrou a forma mais eficiente e, porque não, natural de se solucionar algum conflito que pusesse em risco a vida, o patrimônio, os costumes ou a moral de uma civilização. O Código de Hamurabi além de ser a legislação mais antiga que se tem conhecimento, traz, no seu famoso trecho conhecido como Lei de Talião, situações em que a pena de morte é imposta, algo que ficou conhecido como “olho por olho, dente por dente”[1].
Na tradição Judaico-Cristã, a pena de morte vem como uma espécie de “vingança divina” contra aqueles que desobedeciam aos mandamentos do Senhor, fato esse que legitimava a prática também pelo seu povo. Desta forma, traremos informações a este trabalho provenientes de historiadores e das Sagradas Escrituras para acrescer conhecimento e fundamentar as demais opiniões que aqui serão tatuadas[2].
No entanto, de início, é imprescindível apresentar o conceito de pena. A sua origem vem do latim poena que basicamente significa castigo, dor, pesar, punição. Logo, é possível afirmar que o termo pena se refere à correção exercida pelo Estado ante qualquer ato que viole de a ordem social[3]. Nas palavras de Guilherme de Souza Nucci[4], “é a sanção imposta pelo Estado, valendo-se do devido processo legal, ao autor de infração penal, como retribuição ao delito perpetrado e prevenção de novos crimes”.
A pena de morte, então, é o castigo máximo exercido pelo Poder Público que tira do indivíduo o direito à vida, assegurado pelo artigo 3º, da Declaração Universal dos Direitos Humanos[5], tão grave que foi considerado seu delito.
No mundo, enquanto uns defendem a aplicação da pena capital como um antídoto a latente criminalidade que brota das ações humanas, impondo medo e coagindo àqueles que cogitavam investir contra o meio social de alguma forma a desistirem do seu intento, outros acreditam ser este apenas o jeito mais fácil de encobrir feridas do sistema político no que tange a tutela dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana[6].
Indispensável salientar que, mais do que uma discussão jurídica, a pena de morte é um tema vivo e pulsante nas sociedades do mundo, especialmente no Brasil onde as instituições penais parecem não atender àquilo que se propõem, ou seja, recolher o cidadão infrator visando sua reeducação e ressocialização. Miguel Reale[7] pondera ao expor que: “Pune-se para prevenir novos crimes, ou para castigo do delinquente? Tem a pena por fim recuperar o criminoso, para devolvê-lo ao convívio social, ou o que deve prevalecer são os objetivos de prevenção social?”.
É nesse sentido que buscaremos compreender o objetivo da pena de morte como um anseio social consciente ou um grito impensado de indignação proveniente da escancarada ineficácia do sistema dito ressocializador. Um contraponto com outras realidades onde tal instituto é aplicado também será colocado. Para tanto, faremos uma breve análise do filme “A Vida de David Gale”, numa crítica ao funcionamento e aplicabilidade da pena de morte nos Estados Unidos da América.
Por se tratar de um tema polêmico e controverso, devemos sopesar antes de nos posicionarmos.
Muitos países aboliram recentemente a pena de morte de seus ordenamentos jurídicos tais quais República do Congo, Fiji, Madagascar, Mongólia, Nauru e Suriname que desde 2015/2016 não mais a executam; outros ainda legislam sobre a questão, como exemplo Burkina Faso, Comores, Guiné, Quênia e Coreia do Sul[8]; outros a permitem em casos muito específicos como o Brasil onde tal penalidade consta na Constituição Federal[9], alínea “a”, inciso XLVII, do artigo 5º, que, embora proíba expressamente a pena de morte, abre uma exceção em caso de guerra declarada nos termos do inciso XIX, do artigo 84, do mesmo diploma, in verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XLVII - não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
(...)
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(...)
XIX - declarar guerra, no caso de agressão estrangeira, autorizado pelo Congresso Nacional ou referendado por ele, quando ocorrida no intervalo das sessões legislativas, e, nas mesmas condições, decretar, total ou parcialmente, a mobilização nacional;
Desta maneira, iremos citar critérios éticos, religiosos, jurídicos e sociais para melhor auxiliar no deslinde da discussão. No mais, como nosso posicionamento não pode ser irresponsável, é necessário que nos desnudemos de critérios morais e nos afastemos de casos concretos para analisar cruamente a possibilidade ou não da aplicação de tal castigo. Também não podemos utilizar as religiões, notadamente a cristã, como motivo para ir contra o tema, visto que este trabalho é de abrangência universal em todos os seus aspectos.
Feita esta breve colocação, passaremos a abordar os aspectos históricos, a legislação nos Estados estrangeiros, as espécies, bem assim as discussões contrárias e favoráveis à prática da pena de morte e se esta funciona como ferramenta de controle e redução da criminalidade ou não. Iniciaremos pela história da pena de morte.
2 A pena de morte na história
Neste tópico apresentaremos de forma sucinta a pena de morte nas idades antiga, medieval, moderna e contemporânea da história humana.
2.1 Idade Antiga
A pena de morte era amplamente utilizada no mundo antigo. O Tribunal (quando havia) era constituído por reis, sacerdotes, juízes e cidadãos, dependendo do período e da civilização. Raramente a aplicação da pena capital se regia por um código jurídico ou estava apoiada no flagrante do delito, causando, obviamente, inúmeras execuções de inocentes[10].
Na Grécia Clássica, por exemplo, os julgamentos eram realizados na Ágora, uma praça onde se instalava o mercado e por vezes servia de espaço para as assembleias públicas, e as penas variavam desde uma simples multa até a morte[11].
No Egito Antigo as leis eram promulgadas pelos faraós e pelos sacerdotes que também agiam como juízes. A pena de morte era aplicada quando o acusado mentia ao tribunal, esse perjúrio poderia custar não só a vida do acusado, mas também de toda a sua família[12].
A Lei das XII Tábuas, aprovada no ano de 452 a.C., foi de vital importância para o povo romano, resultado de uma longa luta da plebe, sendo uma das primeiras leis a eliminar a diferença de classes, dando origem ao Direito Civil. Os romanos tinham muito apreço pela forma física e como consequência a Tábua Quarta dispunha o seguinte: 1. “É permitido ao pai matar o filho que nasce disforme, mediante o julgamento de cinco vizinhos”. Em virtude do grande poder do pater familias o pai detinha sobre a prole direito de vida e morte. Já na Tábua Quarta: 2. “O pai terá sobre os filhos nascidos de casamento legítimo o direito de vida e morte e o poder de vendê-los”[13].
Já a Lei de Moisés ou Lei Mosaica, de acordo com a tradição Judaico-Cristã, foi apresentada ao povo como sagrada, perfeita, imutável, esculpida pelo dedo de Deus nas tábuas dos mandamentos. O chefe de família, o progenitor, detinha poder absoluto sobre as pessoas de seu convívio e por isso quase não havia limites na aplicação de castigos, fato esse que pode ser visualizado nesta passagem do livro do Deuteronômio[14]: “Quando alguém tiver um filho contumaz e rebelde, que não obedecer à voz de seu pai e de sua mãe e, castigando-o eles, não lhes der ouvidos, então todos os homens de sua cidade o apedrejarão com pedras, até que morra.”. No entanto, o exemplo bíblico clássico envolvendo a pena de morte é o de Jesus Cristo, condenado a crucificação por pregar ideias consideradas revolucionárias pela nobreza da época.
Todavia, o advento do sistema legal dos antigos ocorreu efetivamente antes de Cristo com aquele que é tido como o texto jurídico mais remoto já encontrado, pioneiro na organização e criação direitos e deveres. O Código de Hamurabi[15] contém 282 artigos e data, aproximadamente, do ano 2000 a.C.
Hamurabi[16] foi o reunificador da Mesopotâmia e fundador do primeiro Império Babilônico. Em seu código se encontra a aplicação da pena de morte em diversos casos, alguns dos quais citados a seguir:
Art. 3°. Se um homem, em processo, se apresenta como testemunha de acusação e não prova o que disse, se o processo importa em perda de vida, ele deverá ser morto;
(...)
Art. 6°. Se um homem roubou bens de Deus ou do palácio, deverá ser morto juntamente com aquele que recebeu o objeto roubado;
Art. 7°. Se um homem comprou ou recebeu em custódia prata ou ouro, escravo ou escrava, boi ou ovelha, asno ou qualquer outro valor da mão do filho de alguém ou do escravo de um homem, sem testemunha nem contrato, esse homem é ladrão e deverá ser morto.
Nas Américas, outras civilizações como os Incas e os Maias utilizavam a pena de morte em rituais religiosos. Eles acreditam que nos períodos de grandes secas, quando as plantações morriam, eram atacadas por pragas e as pessoas faleciam de doenças, ofertar sacrifícios humanos aos deuses tranquilizava-os, permitindo a volta da normalidade. Por este fato, eram oferecidos os corpos de indivíduos de outras civilizações que eram capturados para o sacrifício. Foram encontradas valas coletivas com inúmeros corpos, todos mortos como forma de “purificação do povo” para acalmar a ira dos seus deuses[17].
Desde o advento da racionalidade os seres humanos empregam a pena de morte como punição por algum ato ilícito de natureza gravíssima, hedionda, sendo o grau de gravidade variável conforme a concepção de cada cultura e geração, ou simplesmente (algo inconcebível para a modernidade) porque um filho nasceu deficiente ou de união extraconjugal.
Passaremos a diante a mencionar a pena de morte na Idade Média.
2.2 Idade Média
Na Idade Média, os hereges eram condenados à pena capital por fogueira, conforme os Concílios de Latrão (1.215) e Toulouse (1.229)[18]. Para uma compreensão mais frutífera é bom esclarecer que, etimologicamente, a palavra herege provém do grego hairesis e do latim haeresis, significando, em senso estrito, “escolha”, “opção”. Heresia representaria a contestação à ordem espiritual de uma religião dominante (o catolicismo no caso) e, portanto, uma ameaça para essa, que pode ser - como foi em muitas ocasiões - endêmica. Por conta disso, seria muito combatida e encarada como uma representação patológica e maligna[19].
É provável que a Era Medieval tenha sido o período que carimbou a pena capital nos anais da história graças a fatos como à famosa caça as bruxas[20], onde mulheres acusadas da prática de feitiçaria eram julgadas pela Santa Inquisição da Igreja Católica[21] e condenadas pelo Estado a queimar vivas numa fogueira. Na verdade, falar em pena de morte na era medieval é necessariamente falar de Inquisição.
Nos parece que a fé em Jesus Cristo que, segundo o Evangelho de João[22], pregou: “eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância”, não era argumento suficiente para inibir o comportamento um tanto quanto, exageros à parte, exterminador da Igreja em parceria com o Estado, contra aqueles que não professavam a fé católica ou que, de alguma forma, ameaçavam seu poderio.
Durante a alta Idade Média[23] não havia a preocupação com a dignidade da pessoa humana nem com a legalidade, sobretudo pelo fato de que, nesta fase, o Direito se encontrava fragmentado, particularizado em cada feudo[24], onde seu senhor ditava arbitrariamente o “direito local”, prática comum numa época em que a maioria dos regimes era absolutista e totalitário.
O grande divisor de águas para o pensamento de um novo Direito Penal[25], não mais pautado pelo arbítrio e pela crueldade, se dá em 1.764 com a publicação da obra “Dos Delitos e das Penas” pelo Marquês de Beccaria, Cesare Bonesana. Seu pensamento era basicamente dividido em três pilares: legalidade, proporcionalidade e utilitarismo.
A ideia de legalidade[26] mostrava que uma pena só poderia ser imposta se prevista em lei, não cabendo ao juiz estipular de forma arbitrária qualquer pena que passasse por sua cabeça. A defesa da proporcionalidade tinha o objetivo de fazer com que os crimes com graus diversos de agressividade recebessem penas diferenciadas, ou seja, deveria haver uma proporção entre os delitos e as penas. Os crimes mais graves receberiam penas mais severas dos que o de natureza menos gravosa.
Defendendo sua tese utilitarista, Cesare Beccaria[27] afirmava que: “é, pois, necessário selecionar quais penas e quais os modos de aplicá-las, de tal modo que, conservadas as proporções, causem impressão mais eficaz e mais duradoura no espírito dos homens, e a menos tormentosa no corpo do réu”.
Podemos aferir que a partir dessa tese utilitarista o respeito à dignidade da pessoa humana passou a ser considerado quando da aplicação das penas, fundamentando os dispositivos penais atuais em várias partes do mundo, especialmente no Brasil, como veremos mais à frente.
A seguir mencionaremos a fase da Idade Moderna e a Idade Contemporânea.
2.3 Idades Moderna e Contemporânea
Com o enfraquecimento do Estado absolutista e o fim da Inquisição, a legitimidade da pena de morte passou a ser questionada. Devido a evolução da doutrina penal, a esfera da aplicação dessa pena extrema tornou-se cada vez mais restringida. Cesare Beccaria[28] afirma que:
A morte de um cidadão só pode ser encarada como necessária por dois motivos: nos momentos de confusão em que uma nação fica na alternativa de recuperar ou de perder sua liberdade, nas épocas de confusão, em que as leis são substituídas pela desordem, e quando um cidadão, embora privado de sua liberdade, pode ainda, por suas relações e seu crédito, atentar contra a segurança pública, podendo sua existência produzir uma revolução perigosa no governo estabelecido.
Até o período Iluminista[29], as penas possuíam caráter aflitivo, doloroso, que castigava o corpo do condenado, como aquelas usadas na Inquisição (tortura) e a pena capital. O festejado penalista Rogério Grego[30], versando sobre o tema, afirmou que:
O período iluminista teve fundamental importância no pensamento punitivo, uma vez que, com o apoio na razão, o que outrora era praticado despoticamente, agora necessitava de provas para ser realizado. (...) O ser humano passou a ser encarado como tal, e não mais como mero objeto sobre o qual recaía a fúria do Estado.
O século XVIII[31] foi o marco fundamental para a substituição das penas corporais pelas privativas de liberdade e para modificações no processo penal, principalmente em razão da influência do princípio da dignidade da pessoa humana que começava a dominar a mentalidade dos legisladores e a consciência das sociedades. A partir daí se iniciou um processo mundial de abolição da pena de morte.
A primeira grande nação a abolir tal instituto de seus documentos legais foi Portugal[32]. Antes de 1.867 essa pena foi sendo retirada do seu ordenamento jurídico de forma gradual para vários tipos de crimes, no entanto, foi apenas com a reforma do Código Penal Português ocorrida em 2.012, que a previsão da pena morte restou extinta para todos os crimes.
Atualmente, nenhum Estado-membro da União Europeia faz uso dessas práticas. Parte dessa responsabilidade se deve a recomendação exarada durante Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em vigor desde 1.953. Em seu protocolo n.º 6[33] - A Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais Relativo à Abolição da Pena de Morte – artigos 1º e 2º, traz expressa vedação a pena capital, com exceção àquelas aplicadas em tempo de guerra, senão vejamos:
Artigo 1.º
(Abolição da pena de morte)
A pena de morte é abolida. Ninguém pode ser condenado a tal pena ou executado.
Artigo 2.º
(Pena de morte em tempo de guerra)
Um Estado pode prever na sua legislação a pena de morte para actos praticados em tempo de guerra ou de perigo iminente de guerra; tal pena não será aplicada senão nos casos previstos por esta legislação e de acordo com as suas disposições. Este Estado comunicará ao Secretário-Geral do Conselho da Europa as disposições correspondentes da legislação em causa.
Nos Estados Unidos, a pena de morte é oficialmente permitida em 32 dos 50 estados, bem como pelo governo federal sendo a maioria das execuções são realizadas pelos estados. Cada estado que permite a pena de morte possui diferentes leis e padrões quanto aos métodos, limites de idade e crimes que qualificam para esta penalização, pois a legislação penal não é monopólio da União. Apenas 15 estados, e o Distrito de Colúmbia, aboliram a pena de morte para todos os crimes[34].
Feitas essas considerações trataremos do princípio da dignidade da pessoa humana.