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CEM ANOS QUE VIVEM EM NÓS

O DIREITO À MEMÓRIA COLETIVA

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Agenda 22/10/2017 às 09:00

12. Nenhuma interpretação do marxismo foi tão ampla, depois de Gramsci, como a de Herbert Marcuse, filósofo alemão exilado nos Estados Unidos. Foi, na verdade, a última interpretação totalizante das transformações produzidas desde meados do século XIX, sob impacto da 1ª e da 2ª revolução industrial. Poucos reuniram a experiência e o conhecimento amplo de Marcuse. Ele participava das investigações da chamada Escola de Frankfurt e permaneceu ligado aos seus integrantes até o fim. Estudou na Universidade de Friburgo e foi orientado por Martin Heidegger. Iniciou-se assim na fenomenologia e no nascente existencialismo. Aprofundou o pensamento de Freud servindo-se das referências de outros autores, como Wilhelm Reich, e ampliando os temas freudianos expostos em obras como “O Mal-Estar na Civilização”, de modo a estabelecer os vínculos da psicanálise com a história e os temas marcadamente sociais e políticos.

Marcuse soube ser profundo e irruptivo, pôde reinterpretar o acervo de Marx pondo-se à altura desse autor.

Em meados dos anos 1950, surgiu “Eros e Civilização”, livro que trouxe os conceitos de “sociedade afluente” e “princípio de desempenho”, sendo que este decorria do que Freud já havia identificado como princípio da realidade (em oposição ao princípio do prazer). A alienação do trabalho ganhou outros contornos, diferentes do marxismo clássico, pois nada mais tinha a ver com o conceito de valor : “quanto mais completa for a alienação do trabalho, tanto maior é o potencial de liberdade”, uma vez que esta é identificada com um tempo amorfo em que as ‘verdadeiras’ escolhas passaram a se realizar.

Para Marcuse, o ponto de cisão – clivagem, diriam os pedantes – deu-se quando “as pretensões utópicas da imaginação ficaram saturadas de realidade histórica.” A atividade humana então também ficou demasiado vinculada ao funcionamento do sistema e a liberdade foi deposta em favor de um homem unidimensional.

O movimento de renovação igualmente mudou. As causas para a contestação passaram a ter outra motivação e também outros participantes :

“Essa Grande Recusa é o protesto contra a repressão desnecessária, a luta pela forma suprema de liberdade – ‘viver sem angústia’. Mas essa ideia só podia ser formulada sem punição na linguagem da arte. No contexto mais realista da teoria política ou mesmo da Filosofia, foi quase universalmente difamada como utopia”.

A enorme repercussão e as controvérsias em torno de “Eros e Civilização” levaram Marcuse a escrever o que chamou de “Prefácio Político”, em 1966, auge do prestígio de suas ideias. Ali ele anotou que “o conceito marxista estipulou que somente aqueles que estavam livres dos benefícios do capitalismo seriam possivelmente capazes de transformá-lo numa sociedade livre”.

Todavia, a sociedade afluente havia mudado: “A nova boêmia, os beatniks e hipsters, os andarilhos da paz – todos esses ‘decadentes’ passaram agora a ser aquilo que a decadência, provavelmente, sempre foi: pobre refúgio da humanidade difamada”.

Ao mesmo tempo, Marcuse manifestou-se contra a idolatria do labor :

“No processo de automação, o valor do produto social é determinado em grau cada vez mais diminuto pelo tempo de trabalho necessário para a sua produção. Consequentemente, a verdadeira necessidade social de mão-de-obra produtiva declina, e o vácuo tem de ser preenchido por atividades improdutivas. Um montante cada vez maior do trabalho efetivamente realizado torna-se supérfluo, dispensável, sem significado”.

No prefácio à segunda edição de “O Capital” Marx escreveu: “Em Hegel, a dialética encontra-se de cabeça para baixo. É preciso colocá-la sobre seus pés para descobrir o grau racional sob a capa mística”.

Ora, Marcuse fez precisamente isso, mas em relação à base social considerada na obra do próprio Marx.

Embora possa ser percebido um processo de quebra na análise marxista, na verdade o que há é a continuidade, já que o capitalismo tem como principal característica se recompor e, se recompondo, circunscreve em outros termos seu modo operacional, inverte ou amplia a cadeia produtiva, inventa necessidades, introduz novas tecnologias, em resumo, se reinventa.

Num outro texto igualmente poderoso, “A Ideologia da Sociedade Industrial”, Marcuse descreve o fenômeno que identificava em meados do Século XX:

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“A particularidade distintiva da sociedade industrial desenvolvida é a sufocação das necessidades que exigem libertação – libertação também do que é tolerável e compensador e confortável – enquanto mantém e absolve o poder destrutivo e a função repressiva da sociedade afluente. Aqui, os controles sociais extorquem a necessidade irresistível para a produção e o consumo do desperdício; a necessidade de trabalho estupefaciente onde não mais existe necessidade real; a necessidade de modos de descanso que mitigam e prolongam essa estupefação; a necessidade de manter liberdades decepcionantes como as de livre competição a preços administrados, uma imprensa livre que se auto censura, a livre escolha entre marcas e engenhocas. (...)”.

Marcuse ainda ingressa no tema dos enganos que a própria expressão das palavras cria, e os desvenda com esta proposta dialética:

“Os esforços para reaver a Grande Recusa na linguagem da literatura têm o destino de ser absorvidos por aquilo que refutam”.

Num capítulo que titula “O fechamento do universo da locução” reporta-se a Roland Barthes:

 “Dans l’état présent de l’Histoire, toute écriture politique ne peut que confirmer un univers policier, de même toute écriture intellectuelle ne peut qu’instituer une para-littérature, qui n’ose plus dire son nom. (No estado atual da história, todo escrito político pode apenas confirmar um universo policial, assim como todo escrito intelectual pode apenas produzir paraliteratura que não mais ousa dizer o seu nome)”.

Nos tempos modernos nunca ninguém havia ido tão longe, mas Marcuse deu ainda um passo, socorrendo-se de seus amigos e conterrâneos:

“Nada resta da ideologia a não ser o reconhecimento daquilo que é – modelo de um comportamento que se submete ao poder arrasador do estado de coisas estabelecido (Theodor Adorno). A contradição clara reafirma seu direito contra esse empirismo ideológico: ... ‘aquilo que é não pode ser verdadeiro’ (Ernst Bloch)”. 

 Marcuse conclui esse pensamento, e assim parece também concluir sua obra, “o mundo da experiência imediata – o mundo em que nos encontramos vivendo – deve ser compreendido, transformado e até subvertido para se tornar aquilo que verdadeiramente é”.

Porque a teoria desenvolvida por Herbert Marcuse, se não caiu no esquecimento, tornou-se tão pouco ‘instrumental’?

Para alguns, ou para muitos, a sua interpretação das mudanças sociais estava simplesmente errada:

“Passados mais de 30 anos dessas profeciais e ‘utopias sexuais’ e há quase 20 anos da sua morte, acontecida em 1979, Marcuse, maldosamente chamado por alguns de ‘guru surrealista’, eclipsou-se. Ao invés da Grande Recusa, da rejeição ao consumismo, o contrário. As massas acotovelam-se atrás de bugigangas. O poder de fogo dos outsiders mostrou-se pífio. O establishment continuou a amortecer os pedregulhos jogados contra ele, confirmando ‘a derrota da lógica do protesto’.

‘Che’ é grife e marca de cerveja!

Uma das imagens suas que nos resta é de uma assembleia no Audimax em Berlim, em 1967, na qual ele ilumina o ambiente enfumaçado e anárquico com sua poderosa cabeça branca. Mas parece que, apesar do esforço e da concentração dos circundantes, não o entendiam. O apóstolo da Grande Recusa terminou formando um exército de um homem só. (“O Apóstolo da Grande Recusa”, artigo do historiador Voltaire Schilling no jornal ZH de 25/07/1998).

Caberia repetir Ernst Bloch, citado por Marcuse: “aquilo que é não pode ser verdadeiro”.

A ampla teoria do filósofo alemão não está fundada em uma metodologia errada, ou ilusória, nem desconsidera os fenômenos reais de sua época.

O que ocorreu foi o enfoque que Marcuse fez, como ele afirma decisivamente, na sociedade industrial e suas conquistas. Logo a seguir, em data que certamente a História fixará em algum momento dos anos 1980, iniciou um novo ciclo – como sustenta o atual governo chinês – uma nova era: a globalização.

Então, tudo mudou.

O novo processo é o mais abrangente que se poderia conceber, ele é expansivo ad infinitum, engloba todos os saberes e poderes, os recursos onde quer que estejam, as metas mutantes determinadas por cada fase importante de avanço tecnológico, numa instabilidade que não é só consentida como desejada, pois cria novos afluxos, novas metas a serem alcançadas.

Nenhum dos que buscaram, pelo método científico, entender os novos acontecimentos, logrou alcançar até agora mais do que os gurus, sejam eles econômicos ou simplesmente místicos. Estamos em um novo ‘marco zero’, mas munidos de todo o conhecimento cumulativo que a civilização conquistou e, pela primeira vez, somos capazes de manejá-lo em toda a sua extensão. E também suportamos o peso imenso das adaptações (passadas) do princípio do prazer, mas as metamorfoses também vêm de um futuro antecipado para o qual é direcionada uma ânsia de realização sempre incompleta e incerta sobre qual a gratificação que será obtida.

Desde Marcuse nenhuma outra teoria totalizante foi inventada.

A globalização jaz exposta ao reconhecimento que, um tanto atônitos, agora lhe negamos.

Em Razão e Violência”, R. D. Laing e D.G. Cooper situam bem o que hoje acontece:

“A história precisa ser sempre reescrita, destotalizada e retotalizada, pois como totalização está perpetuamente desatualizada. Não estará jamais completa até o momento em que haja uma parada no tempo. Aqui, o indivíduo é o único ponto de partida metodológico possível. Através de sua ‘praxis’, a dialética não é o produto da história; é o movimento original de sua totalização feito por ele com base na totalização que a história dele faz”.

Como a história, nesse passo, imita a natureza, que é indiferente ao indivíduo, caberia apenas acrescentar para honrar Marcuse: “O alcance da escolha aberta ao indivíduo não é o fator decisivo para a determinação do grau de liberdade humana, mas (sim) o que pode ser escolhido e o que é escolhido pelo indivíduo”.

Sobre o autor
Luiz Fernando Cabeda

Desembargador do TRT da 12ª Região, inativo. Fez estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional. Autor de "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".

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O presente artigo examina criticamente os cem anos da revolução soviética

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