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CEM ANOS QUE VIVEM EM NÓS

O DIREITO À MEMÓRIA COLETIVA

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Agenda 22/10/2017 às 09:00

13. Em 1949 uma nova revolução se fez “filha da guerra”, na expressão já transcrita de Trotsky, no caso a II Guerra Mundial.

No final de outubro de 2017, as encruzilhadas surpreendentes da história marcam o fim do 19º Congresso do PCC, o partido  fundado por Mao Zedong (esta é a nova transliteração feita pelo chineses para Mao Tsé Tung), coincidindo com data em que, pelo calendário Juliano, foi realizada a “revolução de outubro” na Rússia.

É importante considerar os eventos desse Congresso, não porque seja inovador, mas exatamente porque propõe a continuidade da política chinesa, mas assumindo a identificação e as implicações supra revolucionárias de tal política.

Por primeiro, é de boa cautela tomar como autênticas só as notícias divulgadas pela agência chinesa Xinhua Net, evitando a polêmica sobre aceitação de outras fontes (embora haja uma convergência básica nas informações).

O atual líder chinês, Xi Jinping, esteve desterrado na aldeia de Liangyiahe por sete anos, durante a Revolução Cultural, último delírio grotesto do já senil Mao Zedong, a partir de 1966, mas que ainda mostrava sua inegável capacidade para tirar poder de supostos opositores, a quem qualificava como burocratas.

No Ocidente, a manobra de Mao suscitou a distribuição em massa do Livro Vermelho, que continha citações suas. Até Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir chegaram a ser detidos quando distribuíam nas ruas o jornal maoista “La Cause du Peuple”, sob influência de Benny Lévy, secretário de Sartre e editor daquela folha. O fato de Benny, após a morte do filósofo, ter se reconvertido ao judaísmo e, segundo suas palavras, passado “de Mao a Moisés”, mostra bem a leviandade das posições ‘filosóficas’ no Ocidente.

Na aldeia, Xi Jinping realizou trabalhos rústicos e submeteu-se a condições duras de vida, a título de reeducação, sendo reabilitado com sua família a partir da morte de Mao, sob o regime reformador de outro que havia “caído em desgraça”, Deng Xiaoping.

No 19º Congresso, o PCC assume oficialmente que continua guiado pelo marxismo-leninismo, que agora é definido como uma “alma”, mas acrescido do “pensamento de Mao Zedong, a Teoria de Deng Xiaoping, a Teoria da Tríplice Representatividade e o Conceito de Desenvolvimento Científico” e declara que “os enriquecerá no futuro”. Assim sendo, vigora uma doutrina cumulativa em que os contrários se acrescentam. Tudo é um caminho, já escolhido; a segunda “Longa Marcha” chinesa significará segui-lo em ordem até um patamar superior, com a certeza de que ele virá.

Essa composição ideológica significa que “o Pensamento representa os êxitos na adaptação ao Marxismo sob o contexto chinês”. Essas declarações visam a conduzir o país à “Nova Era”, que será estabelecida paulatinamente, até ser concluída por volta de 2049, quando o PCC completará um século no poder.

Ora, a nova era nada mais é do que a globalização. A China é o país que mais fortemente encampou esse movimento econômico que marca a história atual. É também o maior beneficiário dele. A mais intensa transferência de tecnologia de todos os tempos possivelmente foi feita dos países ocidentais mais avançados, além do Japão e Coréia do Sul, para a China, a partir do governo de Deng Xiaoping.

A China conquistou a “terceira via” que foi buscada em vão no Ocidente. O sistema de governo centralizado, sob comando e disciplina partidária, com controle de manifestações públicas e censura aos meios eletrônicos, tem produzido resultados não só evidentes como ainda espetaculares e o Ocidente não quer, há muito, “democratizar” a China.

O que ficou da revolução chinesa?

Que estranhos caminhos ela tomou?

Nada disso interessa fora da pesquisa de um scholar, pois a “segunda revolução da China” consiste no fato dela assumir politicamente o papel de implementar e ser fiadora da globalização.

Enquanto uma teoria que explique esse movimento incoercível permanece pendente, e não há nem mesmo uma nomenclatura estabelecida para os fenômenos que provoca, tudo o que se recolhe são conceitos como “hipermodernidade” (Gilles Lipovetski), (hipernomadismo) (Jacques Attali), “retrotopia” (Zygmunt Bauman), “pós-socialismo” (Alain touraine), “precariado” (Guy Standing) além de alguns movimentos, como as propostas do filósofo italiano Giorgio Agamben  de um“poder destituinte” para resistir à ordem de imposição, bem ao contrário de seu ilustre conterrâneo socialista Norberto Bobbio, que procurava estabelecer a ordem, encontrando a coerência de um sistema normativo.

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Em marco de 2017 reuniu-se o Congresso Nacional do Povo, o parlamento da China, com foco na elaboração de seu primeiro Código Civil. No curso do ano, Xi Jinping visitou faculdades de ensino jurídico pedindo-lhes empenho nos estudos para estabelecer um Estado de Direito no país.

Isto quer dizer que um país riquíssimo, tornado poderoso e ascendente, através de processos econômicos que se impuseram por serem resultantes de forças sociais em busca de progresso, poder ou hegemonia, pode também carecer da superestrutura que ocupou o pensamento de tantos, a ponto de parecer que ela era a determinante do avanço dos povos.

Este é o estágio em que nos encontramos: equilíbrios improváveis e até imprevistos teoricamente (China); ímpetos irruptivos mas também autodestrutivos (Primavera Árabe); incapacidade de superação, com o retorno cíclico aos dilemas anteriores (Argentina, Ucrânia); destroçamento institucional (Venezuela), manejo desorganizado e desorganizador do poder político, tornando-o promíscuo (Bolívia, Paraguai, Brasil e, atualmente, os ... EUA), subsistência de das formas arcaicas e duradouras de tutela associadas ao atraso em muitos países periféricos, tantos que nem cabe nomeá-los, para os quais parece que só a China globalizada volta seu interesse.


14. Toda revolução é um surto de êxitos que não se finalizam. Provocam a ruptura mas os resultados da mudança não se sustentam nela. O que vem depois é uma construção árdua e é durante ela que as propostas revolucionárias encontram os seus coveiros.

Fica então, como um fogo fátuo, a vagar entre os sonhadores e os desesperados, a ideia “do que poderia ter sido e que não foi’, mas é aí as revoluções transformadas morrem pela segunda vez, porque revolução nunca será apenas uma ideia; ela é uma transformação social de ruptura com o que se encontra estabelecido, porque não há mais vigência de uma ordem antiga, recusada e superada por concepções novas.

Há, portanto, revolução tecnológica; há revolução científica; há revoluções conceituais e normativas, há revoluções basicamente políticas, há revoluções que envolvem crenças, costumes, mitos, onde quer que a transformação se imponha e onde a ruptura crie um novo começo, que é sempre recomeço, pois quem revoluciona não recua a nenhum marco anterior, mas estabelece o seu próprio.

As revoluções russa e chinesa atravessaram seus pântanos de miséria econômica e humana mas a marca dos grandes fracassos foi sinalizada de maneira diferente. Os reveses agrícolas do período de Mao Zedong, conquanto devastadores, não levaram ao trauma político de vincular o esforço revolucionário a eles. Tanto é assim que a China ainda cultiva a ideia do caminho, tão antigo que remonta ao pensamento de Confúcio e Lao Tsé. O que mais importa é a acumulação da experiência. Assim, Mao figura ao lado de Xiaoping, seu antagonista, no “Pensamento” do PCC.

Já na Rússia, os conflitos que a revolução enfrentou ou provocou formaram uma coleção de traumas, pois foram examinados sob a óptica do Ocidente – que os povos asiáticos do vasto império russo e depois da URSS tanto fizeram por adotar.

A política da recoletivização forçada de Stalin provocou, em 1932 e 1933, a fome generalizada, mas ela chegou ao grau de dizimação na Ucrânia, grande produtora agrícola, que teve sua produção confiscada. Esse período recebeu o nome de Holodomor, neologismo que guarda o sentido de sacrifício pela fome. Essa foi uma das formas de genocídio praticadas no Século XX, junto com a perseguição aos armênios pela Turquia otomana e os massacres do Khmer Vermelho no Camboja. Ainda no período stalinista foram frequentes as remoções, em que populações inteiras eram trasladadas de inopino para outra região. Assim aconteceu, por exemplo, com os tártaros da Criméia, levados para o Uzbequistão.

Em 2017 a Rússia é talvez o país da terra que, oficialmente, mais ignora a revolução russa de 1917. O PCUS foi proscrito em 1991, mas ainda existe um forte partido comunista da federação russa, à margem do poder desde o governo de Boris Yeltsin. Ao mesmo tempo o 19º Congresso do partido comunista chinês projeta que completará o ciclo de ingresso na globalização em 2049. Hoje só a China tem um programa espacial em desenvolvimento para colonização da lua. Ela acredita que o sistema de integração econômica global é tão abrangente, tão expansionista, que somente poderá ser superado por outro de caráter interplanetário.

A Grande Recusa que Marcuse identificou frente à sociedade industrial hoje se manifesta, marginalmente embora, em relação à globalização. Porém, sem alternativas, sem análise objetiva do fenômeno, sem decifrar os novos mecanismos operacionais do sistema. Talvez o que mais marque a sociedade globalizada em oposição à sociedade industrial sejam as noções de mercadoria e valor.

Ninguém saberia prever como e porque existem produtos importantes para a vida de todas as pessoas que, conquanto realizados por uma tecnologia sofisticada, são oferecidos sem custo para os usuários, como os programas da Oracle e o navegador Mozilla. Outros se remuneram tendo em vista a exposição que alcançam na internet, pelo número de seguidores, pois assim atingem a um público potencial para os fins comerciais subsumidos

As formas de aquisição de riqueza não são mais aquelas clássicas do lucro (juro, salário, renda e aluguel), pois há bens imateriais em abundância que têm – como nunca tiveram – significado econômico. Também podem ser vendidos, com grande ganho, sites e programas do meio eletrônico apenas pelo potencial de renda futura atribuído a eles.

A produção de bens também é finalizada em lugares aleatórios, juntando peças ou elementos fabricados em outros quadrantes, onde é mais barato fazê-las. O trabalho tradicional é transformado em outras formas instáveis, que mudam, de tal maneira que o Banco Bilbao Vizcaia – BBC inaugurou no México uma unidade que não tem nenhum empregado. Toda ela é operada por via remota, sendo a filial visitada periodicamente para reposição e limpeza, através de serviço terceirizado. Esse caso é apresentado como um exemplo de precarização das relações que antes eram mais estáveis, envolviam papéis determinados na produção e assim eram reconhecidas.

Há traços evidentes de canibalismo social no processo de globalização, mas certamente os chineses percebem isso e tratam de controlar seus efeitos, já que se trata de um caminho iniciado e que não permite outras escolhas, depois de empreendido. Também não deve ser esquecido que as revoluções industriais, tão espetaculares em seus resultados, foram igualmente sórdidas nos piores efeitos que produziram: acidentes de trabalho, exploração da mão de obra, doenças de confinamento e exclusão social.

A propósito desses efeitos, um dos mais notáveis economistas do Século XX, John Kenneth Galbraith (“A Era da Incerteza”) recolheu o que chamou de “uma lenda” envolvendo John D. Rochefeller, capitalista exponencial dos EUA, fundador de uma dinastia econômica. No tumulo dele, sua faxineira inglesa teria escrito esses “versos exuberantes”, assim considerados por Galbraith, pois bem mostram que os grandes empreendimentos da era do capitalismo industrial produziram os seus horrores, e estes também precisavam de um requiem : 

“Não pranteiem, meus amigos,

não chorem nunca por mim.

Pois nada mais vou fazer,

Nada, jamais, enfim.”

Sobre o autor
Luiz Fernando Cabeda

Desembargador do TRT da 12ª Região, inativo. Fez estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional. Autor de "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".

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O presente artigo examina criticamente os cem anos da revolução soviética

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