CEM ANOS QUE VIVEM EM NÓS

O DIREITO À MEMÓRIA COLETIVA

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22/10/2017 às 09:00
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15. Antonio Gramsci pôde desenvolver sua análise original do marxismo porque afastou-se do pensamento soviético a partir de 1924, sendo que o ponto de ruptura ocorreu quando a embaixada da URSS em Roma ofereceu um almoço (no mês de julho) em homenagem a Mussolini, com quem a Rússia queria ter boas relações. Poucos dias antes, em 10 de junho, o deputado socialista Giacomo Matteotti havia sido sequestrado e morto por milícias fascistas (“O Delito Matteotti”, filme do diretor Florestano Vancini). Os socialistas e comunistas italianos viviam sob o jugo do fascismo desde 1922.

Graças ao distanciamento, a partir de então Gramsci elaborou sua teoria, que nada mais tinha a ver com o estado soviético. A permanência de seu pensamento ainda hoje se deve a isso.

O caminho para normatizar os princípios revolucionários foi ficando mais difícil na medida em que as revoluções foram identificadas não mais pelo que pretendiam, mas pelo que efetivamente produziram.

Hoje elas têm de ser avaliadas desde um estágio da civilização que não é mais aquele que existia quando esses grandes eventos clássicos foram deflagrados.

Tudo o que atualmente pensamos, cogitamos ou praticamos se dá dentro da globalização. É ela que surpreende todos os conceitos estabelecidos e os desmancha no ar. Por isso o caminho de não normatizar tem-se apresentado como o mais inteligente do ponto de vista prático ... mas tal senso utilitário resulta em um método abstenseísta: não saber, não entender, não valorizar, etc, pode levar a um cotidiano confortável, até que essa retomada da alienação se surpreenda com fatos incontornáveis, talvez brutais, talvez avassaladores, na primeira esquina.

Não é por acaso que o tema da revolução implique, frequentemente, na abdicação de normatizá-la. Assim ela “vive” no museu de cera dos sonhos. Mas convém lembrar um inteligente graffiti posto sobre o muro de um prédio abandonado em Porto Alegre, que acabou sendo lacrado, como é comum em nossas cidades decadentes: se desalojam nossos sonhos okuparemos seus pesadelos.

Seria o caso de fazer a doxografia revolucionária, de colher as principais apreciações sobre esses movimentos sísmicos que, tais os das placas tectônicas, recompõem o mundo?

A “era dos extremos”, do antagonismo social fundado em interesses de classe, acabou?

Teremos agora apenas a versão degradada de um onipresente extremismo desesperado?


16. Um tema da filosofia clássica, recorrente na obra de Nietzsche, é o do destino, o fatum, como preferia o escritor alemão. Quando se colocam muitas perguntas em torno da revolução – o que ela efetivamente é, o que a desencadeia, como termina, a que extremos leva, quando se dá a sua superação – é o momento de abrir a possibilidade de examinar as curvas tortas da história, seus torvelinhos, pois a linha reta, nesse caso, é uma abstração.

Quem corrigia os desmazelos dos personagens no teatro grego era o coro que, através das anunciações do corifeu ou dos cânticos (ditirambos), restabelecia as notícias do mundo exterior, as ordens dos deuses ou os imperativos dos reis e tiranos.

Por que o ilustre economista John Kenneth Galbraith foi buscar o exemplo de uma lenda para ilustrar os excessos do capitalismo industrial? Seria mesmo uma lenda?

Da mesma forma, há uma fábula sobre Tales de Mileto, conhecido como o fundador da filosofia grega, e ela foi comentada ainda na Antiguidade por outros filósofos, inclusive Platão (“A Escada dos Fundos da Filosofia”, Wilhelm Weischedel).

Tales, já célebre porque havia previsto um eclipse solar e usado a matemática para programar uma boa safra das oliveiras, caminhava pela noite observando as estrelas e cai em um buraco. Sua serva trácia ri e comenta algo como: enquanto queres saber o que se esconde no céu não vês o que está oculto diante dos teus pés.

O gracejo explicaria o caráter especulativo da filosofia. Entretanto, o conhecimento filosófico evoluiu e hoje ele abrange também o buraco que está oculto sob os pés.

As questões relativas ao destino, que vagueiam e se escondem na variação imensa das subjetividades, encontram o mundo objetivo – o buraco que está sob nossos pés – em uma narrativa exemplar do escritor italiano Antonio Tabucchi, “Sostiene Pereira” (Sustenta Pereira), levada ao cinema com o feliz título dado no Brasil “Páginas da Revolução”, dirigido por Roberto Faenza, com uma trilha musical soberba de Ennio Morricone e contando com uma das últimas interpretações de Marcello Mastroiani.

O velho jornalista Dr. Pereira está arrasado fisicamente, padece uma viuvez demasiado pesada e encontra equilíbrio emocional dedicando-se aos fatos da cultura, que resenha ainda com interesse e sensibilidade. Então as curvas do destino transtornam sua vida, na bela Lisboa de Salazar, que ainda guardava alguns ambientes da belle époque, já que Portugal não havia participado da carnificina na I Guerra Mundial.

A palavra latina fatum deu ao idioma luso o termo “fado”, nome da expressão musical única dos portugueses. Pois é um belíssimo fado que interpreta os transtornos do Dr. Pereira, assim:

“O segredo a descobrir está fechado em nós

O tesouro brilha aqui, embala o coração, mas...”

Nenhuma obra recente foi mais feliz em propor o tema da subjetividade e do acaso determinante, diante de uma imposição adversa do mundo exterior, do que o livro de Tabuchi e o filme de Faenza (e ainda do que o fado musicado por Morricone).

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Splendor hominis àquele que, em qualquer tempo, toma conhecimento disso, age com confiança e se libera.


17. Volvemos a los diecisiete. Este pequeno trabalho tinha que ser realizado como memória de um testemunho de passagem, que não chega a ser um rito, mas que exige uma forma de expressão um pouco mais permanente, pois trata de fins e começos, de destinos que pareceram grandiosos e acabaram no sacrifício opaco, de escolhas e papéis que resultaram marcados por uma importância que nunca quiseram ter.

Onde estão os sacrificados?

Onde estão os propósitos, estudados diligentemente até o fundo de todas as suas implicações, dos que decidiram agir para emancipar a todos e a si mesmos?

Onde está, por fim, a própria memória de que tudo isso aconteceu, não foi inventado, mas que – se tivesse sido inventado, à maneira de García Márquez – seria tão somente para lembrar o que aconteceu.

Em alguns momentos da vida – mas, pelo menos, uma vez, até para os mais descuidados - nos será dada a oportunidade de embarcar no trem alemão.

Iremos tomá-lo?

Seguiremos até o fim da viagem ou desembarcaremos antes?

Chegaremos à velha Estação Finlândia dispostos a iniciar uma transformação?

Cem anos reviverão na consciência dos que completarem a viagem.

Ainda sabemos pouco: “O segredo a descobrir está fechado em nós”.

_______________

(LFC-out/2017)

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Sobre o autor
Luiz Fernando Cabeda

Desembargador do TRT da 12ª Região, inativo. Fez estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional. Autor de "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".

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O presente artigo examina criticamente os cem anos da revolução soviética

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