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Biodireito nas relações familiares.

Análise da tutela jurídica do estado de filiação por fecundação artificial heteróloga e do direito à identidade genética sob a égide brasileira

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Agenda 23/10/2017 às 12:09

4 REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA: direito à origem genética

Ante o exposto, é fulgente que a filiação não se guia apenas pelos laços biológicos, mas também pelo afeto. Sobre isto, afirma Lobo (2004, p. 53) que “[...] a verdade real da filiação surge na dimensão cultural, social e afetiva, donde emerge o estado de filiação efetivamente constituído [...]”.

No entanto, continua o autor que o estado de filiação, ao que discerne sobre o Direito de Família, dá a “[...] atribuição de paternidade e maternidade. Nada tem a ver com o direito de cada pessoa ao conhecimento de sua origem genética [...]” (p. 53).

Faz-se mister relembrar que a reprodução assistida heteróloga ocorre por doação do sêmen de um sujeito com identificação anônima. Assim, a genitora poderá gerar e criar seu filho sem a figura de um pai, tendo em vista uma família classificada como monoparental, ou até mesmo com a figura, mas tendo este a paternidade socioafetiva, já que a ligação será guiada pelo afeto, não por laços biológicos.

No entanto, o doador anônimo na fecundação artificial heteróloga “[...] tinha-se por descompromissado de qualquer espécie de vínculo com a mãe ou com o concebido [...]” (SPODE; DA SILVA, 2007, p. 2). Mas, e se o sujeito gerado da concepção artificial heteróloga quiser saber sobre sua origem genética? Além disso, é imperioso conhecer acerca da origem genética. Insta questionar também: o que é Direito à Origem Genética?

Os questionamentos podem ser respondidos com o seguinte: é “[...] prerrogativa de todo cidadão independente de possuir um “pai”, conhecer o seu verdadeiro genitor, ou seja, ter acesso à sua origem genética; [...] é direito fundamental de todo ser humano, caracterizando-se por ser personalíssimo, indisponível e intransferível [...]” (SPODE; DA SILVA, 2007, p. 8).

Assim, Salles (2010) leciona que o CC/2002 em seu art. 11 dispõe sobre os direitos de personalidade, os quais “[...] abrangem a proteção á vida, corpo, saúde, integridade psicofísica, honra, nome, imagem, a vida privada entre outros, ou seja, tudo que diga respeito à proteção jurídica da pessoa humana [...]” (p. 189, 2010).

De mais a mais, o retrocitado autor afirma que o direito à identidade genética está tutelado pelos direitos da personalidade, sendo um direito fundamental, estando compreendido, então, que cada ser humano possui o direito de conhecer sua origem genética. Acerca disto, Dias (2007) comenta que conhecer sua origem leva à consequência como a de prevenção contra doenças e a um desenvolvimento melhor de personalidade.

Ademais, segundo Moreira Filho (2011), não será necessária intervenção da mãe ou pai para que isto se concretize. Sobre isto, continua o autor (p. 5) ao firmar que o “[...] reconhecimento da origem genética não significa subjugação [...] da filiação biológica em face da socioafetiva [...]”, mas a materialização de um direito de personalidade, sendo que esta pode vir a trazer vários benefícios para aquele que é derivado da inseminação artificial heteróloga.

Posto isso, há que se falar no polêmico conflito entre o direito à origem genética e o anonimato do doador. Derivadas desse conflito, existem questões a serem levantadas, quais sejam: “[...] se pode haver alguma relação de paternidade do doador do sêmen para com o concebido, [...] se é possível mencionar sobre a concessão de qualquer espécie de alimentos pelo doador ou se pode exigir [...] afeto do pai biológico por parte do filho [...]” (SPODE; DA SILVA, 2007, p. 2).

Sobre esta celeuma, Sparamberger e Thiesen (2010) ensinam que quando se realiza a reprodução assistida heteróloga, o conceito de paternidade se fragmenta, haja vista que existe a participação de um terceiro, e conhecer a identidade genética se torna algo delicado.

Mas, dando continuação às questões levantadas, esclarece-se que, segundo resolução n.º 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina (CFM), é vedada a revelação da identidade do doador aos pacientes que receberão o material genético, bem como vice-versa.

No entanto, segundo Sparamberger e Thiesen (2010), tratando-se especificamente do tema aqui em voga (inseminação artificial heteróloga), não se pode negar o direito à verdade genética para quem foi concebido por material genético de terceiro, visto que é direito personalíssimo, além do fato de que não seria justo, ao passo que uma pessoa concebida por relação sexual possui o direito de conhecer sua origem.

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Repise-se que, ao que preleciona Zanatta e Enricone (2010), o conhecimento acerca da identidade genética não acabará com os laços familiares já existentes, no entanto, caso a pessoa deseje conhecer sua origem, esta não poderá lhe ser negado, na medida em que isto é imprescindível para a formação de sua dignidade humana, princípio previsto constitucionalmente.

Já quanto à possibilidade de estabelecer investigação de paternidade para haver ligação de parentesco entre o terceiro doador e o concebido, segundo Lobo (ano), ainda não é previsto legalmente nem doutrinariamente. Dessa forma, não pode haver ligação entre eles a ponto de vincular nome, alimentos, sucessão e cobrança de afetividade.

Sendo assim, Zanatta e Enricone (2010) lecionam que o anonimato é uma garantia de que a família criada através da reprodução assistida heteróloga terá um desenvolvimento visto como normal quando comparadas àquelas por relação sexual.

Os referidos autores aduzem ainda que este anonimato presume que aquele terceiro que fez a doação de sêmen a um banco não quis se vincular/comprometer com aquele que foi concebido através de seu material genético.

No entanto, essa questão é de grande análise visto que a CF/88 sustenta em seu art. 5º a positivação do direito à saúde, o qual, por sua vez, vincula o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ao dispor em seu art. 7º sobre a proteção à vida e saúde da criança do adolescente. Sendo assim, para assegurar a integridade física daquele concebido, pode haver a quebra de sigilo do anonimato?

Este é um questionamento de imperiosa análise e de grandes debates no mundo jurídico, sendo assim, cabe esclarecer que há posicionamentos divergentes. Acerca disto, a resolução do CFM veda, mas existem doutrinadores que se mostram favoráveis.


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aquele que foi concebido através da reprodução assistida heteróloga, diante da lei, constituirá uma familía monoparental – caso seja apenas com a genitora – ou uma família com paternidade socioafetiva, tendo seu direito de conhecer sua identidade genética. Portanto, há que se afirmar que a concepção por fecundação heteróloga não retira o direito à paternidade, em sentido de que pai é o que cria.

Entende-se que que o estado de filiação não decorre unicamente de laços consanguíneos. A afetividade e a convivência também constituem genuinamente relação familiar e, consequentemente, também filiação, mas sendo destacada no direito contemporâneo, essa filiação socioafetiva não irá anular o fato de existir para a prole uma filiação biológica.

Percebe-se que para todo ser humano existe um liame biológico, ou seja, relação consanguínea, não sendo diferente para o concebido por inseminação heteróloga. Neste caso, não se exclui o direito desse descendente de conhecer sua origem genética, representando seu direito de personalidade.

Porém, caso haja o conhecimento acerca daquele doador, que vem a ser o pai biológico, não há que falar no surgimento de direitos e deveres deste para com a filiação. Conclui-se então que será possível somente o direito personalíssimo à origem genética, mas não de reconhecer a existência de uma nova paternidade, visto que há a existência de uma família socioafetiva.

Por isso, não há o que se falar em perda da legitimidade da composição dessa família por não ser composta por elos consanguíneos. No ordenamento jurídico, as duas ocupam a mesma posição de igualdade e importância, logo não podendo substitui-la pela biológica, argumentando ser essa a mais importante, já que no atual direito de família, tanto a biológica quanto a afetiva tem o mesmo respaldo jurídico social.


REFERÊNCIAS

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Sobre a autora
Katherinne Duarte Guimarães

Graduanda do Curso de Direito pela Unidade de Ensino Superior Dom Bosco em São Luís/MA.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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