Resumo: O presente trabalho tem como objetivo a análise do art. 16 da Lei nº 7.347/85, que prevê o instituto da coisa julgada atrelado à competência territorial do órgão prolator da sentença proferida em ação civil pública. O mencionado dispositivo legal resultou da alteração realizada pela Lei nº 9.494/97, que acabou por redundar em sua inconstitucionalidade, inefetividade e inaplicabilidade. Assim, busca-se levantar os argumentos atinentes a cada uma destas teses, bem como análise de recente jurisprudência dos tribunais.
Palavras-chave: Coisa julgada. Ação Civil Pública. Inconstitucionalidade. Inefetividade. Inaplicabilidade.
Sumário:1. Considerações iniciais. 2. Histórico do art. 16 da Lei nº 7.347/85. 3. Modos de produção da coisa julgada na ação civil pública. 4. Limites objetivos da coisa julgada na ação civil pública. 5. Limites subjetivos da coisa julgada na ação civil pública. 6. A coisa julgada na ação civil pública frente à coisa julgada no Código de Defesa do Consumidor 7. Problemática do art. 16 da Lei 7.347/85. 7.1 Inconstitucionalidade do art. 16 da Lei nº 7.347/85. 7.2 Inefetividade do art. 16 da Lei 7.347/85. 7.3 Outros motivos para a não aplicação do art. 16 da Lei nº 7.347/85. 9. Considerações finais. 10. Referências bibliográficas.
1. Considerações iniciais
A ação civil pública revela-se um dos principais instrumentos de defesa de interesses transindividuais, especialmente os relacionados com o meio ambiente, consumidor, ordem urbanística, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, infrações à ordem urbanística, à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos, ao patrimônio público e social, e quaisquer outros interesses difusos e coletivos, conforme delineia o art. 1ª da Lei nº 7.347/85.
Ocorre que o art. 16 da Lei nº 7.374/85, ao estabelecer que a sentença proferida em ação civil pública fará coisa julgada erga omnes, restringindo seus efeitos à competência territorial do órgão prolator, pode prejudicar a tutela plena dos interesses e direitos transindividuais.
Em sentido oposto, o art. 103 do Código de Defesa do Consumidor, aplicado como regra geral do microssistema da tutela coletiva, estabeleceu relação entre a extensão da coisa julgada e a natureza do direito ou interesse transindividual tutelado na ação, sem qualquer relação com a competência. Assim, pela previsão do CDC, a sentença fazcoisa julgada erga omnes no caso de interesses ou direitos difusos, salvo em caso de julgamento de improcedência por insuficiência de provas; ultra partes, em se tratando de interesses ou direitos coletivos stricto sensu, com exceção da improcedência por insuficiência probatória; Já na hipóteses de direito e interesses individuais homogêneos a coisa julgada tem eficácia erga omnes somente no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores
Apesar da clareza dos dispositivos e também do tempo de sua vigência, a questão continua gerando polêmicas e dificuldades práticas. O objetivo do presente artigo é analisar os seguintes pontos, à luz da doutrina e da jurisprudência dominantes: poderá ocorrer o ajuizamento de diversas ações civis públicas no Brasil com o mesmo objeto, tutelando interesses e direitos pertencentes a toda a coletividade, mas que, devido à limitação territorial dos efeitos da sentença, possibilitaria decisões conflitantes? Em que medida e como se interagem os limites subjetivos coisa julgada e a competência territorial? Haveria inconstitucionalidade ou inefetividade do art.16 da Lei 7.347/85? Qual a interpretação mais adequada do referido dispositivo face aos aos comandos normativos do Código de Defesa do Consumidor?
2. Histórico do art. 16 da Lei nº 7.347/85
Originalmente, baseado no art. 18 da Lei de Ação Popular, o art. 16 da Lei de Ação Civil Pública contava com a seguinte redação:
Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, exceto se a ação for julgada improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova. (BRASIL, 1985)
A Lei nº 9.494/97 alterou a redação original do art. 16 da LACP, delimitando a coisa julgada na ação civil pública aos limites da competência territorial do órgão prolator, conforme se segue:
Art. 2º. O art. 16 da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.” (BRASIL, 1994)
A Lei nº 9.494/97 é fruto da Medida Provisória nº 1.570 de 26 de março de 1997, editada sem seus pressupostos autorizadores: urgência e relevância, o que torna a regra consubstanciada no art. 16 da LACP de “duvidosa inconstitucionalidade” (BUENO, 2010). Esta medida provisória foi reeditada cinco vezes (MP nº 1570-1, MP nº 1570-2, MP nº 1570-3, MP nº 1570-4 e MP nº 1570-5) até ser convertida na referida lei.
À época, o Partido Liberal a ajuizou a ADI nº 1576 contra a MP 1.570/97, com pedido liminar para suspender a eficácia da medida provisória. O Supremo Tribunal Federal, a partir do voto do Ministro Relator, Marco Aurélio de Mello, indeferiu a medida cautelar, verbis:
A alteração do art. 16 ocorreu à conta da necessidade de explicitar-se a eficácia erga omnes da sentença proferida na ação civil pública. Entendo que o art. 16 da Lei nº 7.347, de 24 de junho de 1985, harmônico com o sistema Judiciário à área de atuação do órgão que viesse a prolata-la. A alusão à eficácia erga omnes sempre esteve ligada à ultrapassagem dos limites subjetivos da ação, tendo em conta até mesmo o interesse em jogo – difuso ou coletivo – não alcançando, portanto, situações concretas, que sob o ângulo objetivo, quer subjetivo, notadas além das fronteiras fixadoras do juízo. Por isso, tenho a mudança de redação como pedagógica , a revelar o surgimento de efeitos erga omnes na área de atuação do juízo e, portanto, o respeito á competência geográfica delimitada pelas leis de regência. Isso não implica esvaziamento da ação civil pública nem, tampouco, ingerência indevida do Poder Executivo no Judiciário. Indefiro a liminar. É o meu voto. (BRASIL, 1997, grifo do autor).
O art. 2ª-A da Lei nº 9.494/97, com redação dada pela MP 2180-35, de 2001, atualmente, conta com a seguinte redação:
Art. 2o-A. A sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator.
Parágrafo único. Nas ações coletivas propostas contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas autarquias e fundações, a petição inicial deverá obrigatoriamente estar instruída com a ata da assembléia da entidade associativa que a autorizou, acompanhada da relação nominal dos seus associados e indicação dos respectivos endereços. (BRASIL, 1997).
Ainda que os dispositivos legais mencionados possuam o mesmo intuito de delimitar eficácia da coisa julgada, Didier Jr. e Zaneti Jr. (2010) preconizam que art. 16 da LACP e do art. 2º-A da Lei nº 9.494/97 possuem diferentes objetos. É que enquanto aquele se aplica às causas coletivas em sentido estrito – ou seja, que versem sobre direitos difusos e coletivos -, este se aplica às demandam que têm como objeto direitos individuais homogêneos, especificamente nas causas que envolvem associações.
Contudo, considerando que neste trabalho se adota a teoria de que a ação civil pública é aplicável tanto para direitos difusos e coletivos quanto para os individuais homogêneos, tal diferenciação se torna despicienda.
Está em trâmite na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 5.100/2005, de autoria do Deputado Federal Maurício Rands, que tem como escopo o retorno da redação original do dispositivo, sem quaisquer restrições territoriais (ZUFELATO, 2011). Contudo, tal projeto se encontra pendente de deliberação sobre Recurso na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados desde 2005.
Zufelato (2011) também menciona a PEC 358/05, que está em tramitação na Câmara dos Deputados e ainda pendente de apreciação no Plenário desde 2010, visando inserir o §2º no art. 105 da Constituição Federal, com a seguinte redação:
Nas ações civis públicas e nas propostas por entidades associativas na defesa dos direitos de seus associados, representados ou substituídos, quando a abrangência da lesão ultrapassar a jurisdição de diferentes Tribunais Regionais Federais ou de Tribunais de Justiça dos Estados ou do Distrito Federal ou Territórios, cabe ao Superior Tribunal de Justiça, ressalvada a competência da Justiça do Trabalho e da Justiça Eleitoral, definir a competência do foro e a extensão territorial da decisão. (BRASIL, 2005)
Ou seja, de acordo com a proposta, toda e qualquer decisão em sede de ação civil pública, exceto no que diz respeito à Justiça do Trabalho e à Justiça Eleitoral, deverá ser submetida ao Superior Tribunal de Justiça a fim de que determine o foro competente e a extensão da coisa julgada.
Por um lado, a PEC apresenta aspecto positivo, considerando a tendência de se uniformizar entendimentos acerca extensão da coisa julgada. Todavia, a questão ainda não é pacífica na jurisprudência e, submeter toda e qualquer decisão ao STJ, ao nosso ver, seria um atentado à celeridade e à efetividade processuais.
Por fim, cabe ainda ressaltar a existência do Projeto de Lei nº 5.139/2009, que determina expressamente que a coisa julgada não sofrerá delimitações de cunho territorial, seja da competência territorial do órgão prolator ou o domicílio dos interessados (ZUFELATO, 2011).
Assim como os demais, o projeto de lei está pendente de deliberação na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados desde o ano de 2010, de modo que não há quaisquer perspectivas ou previsão de data para a conversão de tal projeto efetivamente em lei.
3. Modos de produção da coisa julgada na ação civil pública
De acordo com a doutrina, a coisa julgada se classifica em: pro et contra, secundum eventum litis ou secundum eventum probationis.
Para a doutrina majoritária, a coisa julgada na ação civil pública é secundum eventum litis, pois depende do resultado da demanda para haver sua formação. Assim, em sendo a ACP improcedente em razão da insuficiência de provas, não haverá coisa julgada.
Nesse sentido, Mazzilli (2007, p. 526) defende que “a LACP mitigou a coisa julgada nas ações civis públicas e coletivas, de acordo com o resultado do processo (secundum eventus litis)”.
Almeida, G. (2003) também defende que a coisa julgada ocorrerá segundo o resultado da lide, formada apenas quando o pedido tenha sido julgado procedente ou improcedente por quaisquer fundamentos, salvo deficiência de provas.
Não é outro o entendimento de Bueno (2010), que enfatiza que na ação civil pública a coisa julgada é secundum evetum litis, na medida em que só existe se o exame das provas for exauriente, independente de se tratar de procedência ou improcedência do pedido.
Em contrapartida, Didier Jr. e Zaneti Jr. (2010) esclarecem que a coisa julgada secundum eventum litis é aquela produzida apenas quando a demanda é julgada procedente, ou seja, segundo o resultado do litígio. No caso de indeferimento, portanto, não há formação da coisa julgada. Aqui, o motivo para o deferimento ou indeferimento (e.g. a insuficiência de provas) é irrelevante para a formação da coisa julgada.
Os referidos doutrinadores prosseguem explicando a existência da chamada coisa julgada secundum evetum probationis, formada apenas no caso de esgotamento das vias probatórias. Nesse caso, a coisa julgada é formada quando a lide for julgada procedente, que sempre pressupõe que todas as provas foram exauridas, ou improcedente com suficiência de provas.
No caso do art. 16 da LACP, , a situação é diversa, pois o legislador dispôs expressamente que não haverá coisa julgada apenas no caso de improcedência por deficiência de provas. Assim, condicionou-se ao material probatório, e não ao resultado da lide, o que ocasiona a formação da coisa julgada secundum evetum probationis.
4. Limites objetivos da coisa julgada na ação civil pública
Os limites objetivos da coisa julgada na ação civil pública (e em outras ações coletivas) não possui qualquer particularidade em relação aos limites objetivos da coisa julgada do processo civil comum. Nesses termos, leciona Didier Jr. e Zaneti Jr. (2010, p. 364, grifo dos autores):
Em relação aos limites objetivos, somente se submete à coisa julgada material as eficácias (conteúdo) da norma jurídica individualizada, contida no dispositivo da decisão, que julga o pedido (a questão principal). A solução das questões na fundamentação (incluindo a análise das provas) não fica indiscutível pela coisa julgada, pois se trata de decisão sobre questões incidentes. O regime jurídico da coisa julgada nada tem de especial. Segue-se, aqui, a regra geral.
Não é outro o entendimento de Kluge (2009, p.67), que preconiza que não há diferença entre os limites objetivos da coisa julgada no processo individual em relação à ação civil pública.
Santos (2006), por sua vez, defende que os limites objetivos da coisa julgada se confundem com sua amplitude subjetiva, uma vez que a eficácia da tutela coletiva deve se expandir por toda a esfera territorial na qual se estendem os sujeitos ou bens objetos da tutela.
Ora, tal posicionamento não deve prosperar, eis que a dimensão subjetiva refere-se a quem será submetido aos efeitos da coisa julgada; já o aspecto objetivo relaciona o objeto submetido aos seus efeitos. São aspectos distintos e sequer se confundem, igualmente, com a extensão territorial.
Nesses termos, temos que o entendimento de Didier Jr., Zaneti Jr. e Kluge, colacionado acima, é o mais acertado.