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A dúvida jurídica razoável e a cindibilidade dos efeitos jurídicos.

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Agenda 15/06/2020 às 15:25

O estudo aborda a dúvida jurídica razoável e a sua importância para impedir a caracterização de ilicitude ou para atenuar-lhe a intensidade, do que decorrem a exclusão ou a redução das sanções jurídicas.

Resumo: O estudo aborda a dúvida jurídica razoável e desenvolve conceitos ora batizados de “cindibilidade dos efeitos da ilegalidade” e de “ilegalidades legítima e ilegítima”, com o objetivo de demonstrar que a adoção de uma interpretação possível da norma não pode ser reprimida apenas por conta de, posteriormente, o órgão oficialmente competente ter escolhido outra interpretação. Com base nisso, o estudo demonstra que, nesse ambiente de dúvida jurídica razoável, deve ser considerada indevida a produção de efeitos jurídicos desproporcionais, como a condenação ao pagamento de indenizações por danos (responsabilidade civil), a aplicação de sanções administrativas a agentes públicos (como as feitas por órgãos de controle em matéria de licitações e de contratos) etc. O estudo trata de vários casos concretos, como o relativo ao cabimento ou não da condenação de um shopping a pagar indenização por dano moral a um transexual que foi impedido de acessar o banheiro feminino. Esse tema está atualmente pendente de julgamento no STF. Trata, também, da discussão candente que houve acerca do cabimento ou não da redução interpretativa feita pelo Senado Federal no sentido de infligir a sanção de impeachment a um Presidente da República no ano de 2016, sem impor-lhe concomitantemente a pena de cassação de direitos políticos por oito anos. O estudo demonstra que a cindibilidade dos efeitos jurídicos de uma ilegalidade diante de um cenário de dúvida jurídica razoável deve ser aplicada em todos os ramos do Direito. O estudo lembra que, no processo civil, ao lado da fungibilidade recursal, há a modulação dos efeitos da jurisprudência, do que dá exemplo o fato de o STJ ter admitido como tempestivo recurso interposto com base em interpretação que, posteriormente à data da interposição, foi superada. O estudo também critica alguns julgados do STJ que, apoiando-se em princípios, considerou ilícitas condutas de particulares baseadas na interpretação literal do texto de lei e de contratos. A crítica não se deveu ao fato de o STJ ter feito interpretações com base em princípios. Isso é plenamente viável, pois direito é fato, valor e norma. A crítica decorreu da falta de empatia do STJ em ignorar o cenário de dúvida jurídica razoável e de, por meio da cindibilidade dos efeitos jurídicos, afastar sanções desproporcionais, como a indenização por dano moral. Esse foi o caso de um condômino que se baseou na convenção de condomínio para instalar uma padaria e o caso da instituição financeira que se valeu da ação de busca e apreensão diante do inadimplemento de uma prestação de um financiamento feito para a aquisição de um veículo. O estudo elogia, por outro lado, julgados do STJ que se valeu da dúvida jurídica razoável para afastar a responsabilidade civil, a exemplo do caso de negativas de coberturas de tratamento médico-assistencial feitos por planos de saúde com base em um cenário de dúvida jurídica razoável. Ao final, o estudo aponta que, embora as conclusões ora desenvolvidas possuam forte suporte teórico, há espaços a serem aprimorados na legislação para evitar interpretações diversas entre os operadores do Direito, de modo que convém a edição de projetos de lei que promovam ajustes no art. 186 do Código Civil e no art. 38 da Lei nº 13.327, de 29 de julho de 2016.

Palavras-chave: dúvida jurídica razoável, dúvida objetiva, cindibilidade dos efeitos jurídicos, Miguel Reale, teoria tridimensional do direito, culturalismo jurídico, hermenêutica, interpretação, boa-fé, segurança jurídica, legalidade, Estado de Direito, processo administrativo disciplinar, controle externo e interno na Administração Pública, impeachment, responsabilidade civil, indenização.

Sumário:1.  INTRODUÇÃO.2.  A DÚVIDA JURÍDICA RAZOÁVEL NO  CENÁRIO INCERTO DA NATUEZA JURÍDICA . 2.1.   Da natureza incerta do Direito.2.2.   Da ilegalidade legítima e a ilegalidade ilegítima: o dilema entre boa-fé e legalidade diante da dúvida jurídica razoável .2.3.   da cindibilidade dos efeitos da ilegalidade legítima: o juízo de correlação de proporcionalidade entre o grau de ilegalidade legítima e a intensidade dos efeitos jurídicos.2.4.   Da instância competente para escolher a interpretação vitoriosa: necessidade de uniformização. 3.  A Dúvida Jurídica Razoável e a Cindibilidade dos Efeitos Jurídicos nos vários Ramos do Direito. 3.1. Direito penal: a configuração do crime e o caso do impeachment da presidente da república em 2016 .3.2. Direito Administrativo: sanções administrativas, controle externo, caso da advocacia privada por membro da agu, improbidade administrativa, repetição de indébito de valores pagos e convalidação de nomeação sem concurso público.3.3. Processo Civil: fungibilidade recursal e modulação dos efeitos de mudança de jurisprudência.  4.  A Dúvida Jurídica Razoável como Excludente ou Atenuante de Responsabilidade Civil. 4.1. A violação de direito como requisito para a responsabilidade civil.4.2. a dúvida jurídica razoável como excludente total ou parcial (atenuante) de responsabilidade civil. 4.3. Casos concretos..4.3.1. Acesso a banheiro feminino por transexual..4.3.2. Dano moral a condômino perturbado pelo funcionamento de uma padaria na loja do vizinho com fundamento na supressio (Crítica a julgado do STJ). 4.3.3. Dano moral por negativa de cobertura médico-assistencial por plano de saúde com base em dúvida jurídica razoável (STJ). 4.3.3. Equívoco na condenação de credor fiduciária a servir-se da ação de busca e apreensão (crítica a julgado do STJ) . 5.  CONCLUSÃO.


1. INTRODUÇÃO

É justo um Shopping ser condenado a pagar indenização por dano moral em favor de um pessoa transexual que foi obstruída de ingressar no banheiro feminino pelo fato de seu gênero registral ser masculino, considerando que o fato ocorreu em um momento de falta de clareza das normas acerca das normas de uso de banheiro por transexuais?

É correto que um agente público, sem dolo ou fraude, seja punido administrativamente por ter praticado um ato administrativo com base em uma interpretação jurídica razoável da norma que, posteriormente, veio a ser rejeitada pelo órgão de controle?

Foi juridicamente válida a decisão do Senado Federal de, em 2016, diante de um crime de responsabilidade, segregar a pena de impeachment da cassação de direitos públicos após ter entendido estar configurado um crime de responsabilidade por parte do Presidente da República?

Há várias outras questões igualmente controversas que, a nosso sentir, estão carentes de análises jurídicas mais adequadas. Buscaremos, ainda que seja com uma modesta centelha de ideias, contribuir para preencher essa lacuna.

Desde a minha graduação, inquieta-me o tema objeto deste estudo. Inicialmente, eu não conseguia nominar essa preocupação; ainda estava começando os estudos jurídicos. Cuidava-se de um sentimento de que havia uma grande injustiça em punir indivíduos que, em meio a um rosário de sentidos possíveis de uma norma, escolhia uma que veio a ser, no futuro, derrotada no Poder Judiciário ou em algum órgão administrativo competente.

A certeza jurídica prévia deveria ser uma meta de todo jurista. É fundamental que as regras do jogo sejam claras de antemão. Isso é um pressuposto do Estado de Direito. Percebi, porém, que o Direito, por sua própria natureza incerta, jamais poderá fornecer essa previsibilidade perfeita. A atividade do intérprete sempre pode surpreender.

Com ciência disso, passei a investigar se o Direito disporia de alguma ferramenta para, ao menos, atenuar consequências punitivas desproporcionais ao indivíduo que adotou uma interpretação que foi, posteriormente, vencida pela instância competente para dar a palavra final. Essa investigação tem me acompanhado ao longo da minha trajetória profissional e acadêmica, com experiência nos Três Poderes da República e nas advocacias pública e privada.

O presente estudo reúne reflexões que foram resultantes de todo esse percurso. A abordagem, porém, é feita de modo mais direto e objetivo e, em determinados pontos, com certa superficialidade, porque a sua complexidade reivindicaria tranquilamente um trabalho de centenas de páginas.

Em suma, o presente estudo trata da dúvida jurídica razoável como um elemento que deve ser levado em conta pelo jurista no momento de julgar a situação daquele indivíduo que, sem ter uma clareza da norma jurídica diante da existência de múltiplas interpretações possíveis, tem o dever de arriscar na escolha de uma delas.

O tema é pouco explorado nos estudos contemporâneos de Direito, mas, neste estudo, busca-se demonstrar a extrema utilidade e atualidade do tema.

Demonstra-se que a dúvida jurídica razoável deve ser tida como uma hipótese de exclusão (ou, no mínimo, de atenuação) da responsabilidade civil e também de afastamento de efeitos jurídicos desproporcionais em outros ramos do Direito.


2. A DÚVIDA JURÍDICA RAZOÁVEL NO  CENÁRIO INCERTO DA NATUEZA JURÍDICA

2.1.     Da natureza incerta do Direito

Norma é texto e contexto.

Recásens Siches – que apregoava não ser a lógica do Direito a do racional, e sim a da razoável – fornece notável exemplo disso ao tratar do caso clássico da norma que proíbe a entrada de animais em um ambiente. Por esse exemplo, Siches evidencia que mesmo uma norma bem redigida admite interpretações que vão além da sua letra fria. Para o célebre jurista, se uma norma textualmente estabelece que “é proibida a entrada de animais”, haveria diversas possibilidades de interpretação. Caso um jovem quisesse adentrar o ambiente com o seu cachorro de estimação, a interpretação mais adequada daquela norma seria no sentido de barrar-lhe o ingresso. Caso, porém, uma pessoa com deficiência visual pretenda entrar no ambiente com o seu cão-guia, a mesma norma deveria ser interpretada de modo diverso, para admitir o ingresso do animal, levando em conta o espírito da norma, que respeita valores jurídicos relevantes como o do acessibilidade em favor das pessoas com deficiência. Na lição de Recásens Siches, o Direito é circunstancial, como toda obra humana[2].

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A clareza do comando de uma norma não é obtida com a mera leitura do seu texto, pois todo texto permite mais de um sentido possível, conforme lições comezinhas de hermenêutica. Há constantes disputas entre os hermeneutas para fazer prevalecer a sua interpretação e, nesses embates, a vitória de um sentido sempre estará vulnerável diante de alterações na pessoa incumbida de interpretar e nas próprias condições fáticas que circunda o hermeneuta[3]. Isso justifica o fato de os órgãos colegiados dos tribunais testemunharem inúmeros julgamentos obtidos sem unanimidade dos julgadores. Isso também explica as não invulgares mutações jurisprudenciais nos Tribunais após a alteração da composição do quadro de julgadores ou após o advento de um novo contexto fático da sociedade. Mudam-se os julgadores, transformam-se os valores, altera-se o quadro social e, também, frequentemente, modifica-se a interpretação de uma mesma norma.

A natureza do Direito é incerta. A previsibilidade cartesiana e inequívoca não lhe é uma fiel irmã. A sua previsibilidade sempre é enevoada pela instabilidade da condição humana dos hermeneutas e pela feição amorfa da própria matéria-prima do Direito.

Não há como pretender extrair interpretações apodíticas e unívocas da matéria-prima do Direito, pois uma interpretação triunfante em um determinado contexto histórico poderá ser condenada, com veemência, em uma nova realidade.

A teoria do conhecimento jurídico (ontognoseologia jurídica) de Miguel Reale sublinha essa natureza. Como sintetiza o notável civilista Flávio Tartuce[4], a ontognoseologia jurídica do pai do Código Civil de 2002 enxerga o Direito sob dois aspectos: um objetivo e um subjetivo.

Sob o aspecto subjetivo (que diz respeito a quem interpreta a norma), Reale desenvolve o culturalismo jurídico, para afirmar que o operador do Direito, ao oferecer a sua interpretação da norma, é inevitavelmente influenciado por sua cultura, história e experiência. Nas palavras de Tartuce, “não restam dúvidas de que o julgador leva para o caso prático a sua história de vida, a sua cultura – formadora do seu caráter –, e, principalmente, as suas experiências pessoais, nas atribuições de magistrado ou fora delas. Os acontecimentos que repercutiram na sociedade também irão influir nos futuros posicionamentos jurisprudenciais, havendo nesse ponto uma valoração ideológica”[5].

Sob o aspecto objetivo (que se refere ao objeto de trabalho do jurista), o saudoso civilista costurou a teoria tridimensional do direito, segundo a qual a matéria-prima do Direito é fato, valor e norma, e não apenas a letra fria do texto da norma.

Em outras palavras, o jurista, ao se deparar com o desafio de aplicar uma norma a um caso concreto, terá de fazer escolhas entre as múltiplas opções possíveis. A depender do operador do Direito (ou seja, a depender de sua história, cultura e experiência), ele dará uma interpretação. E mais. O jurista não se restringirá ao texto da lei na sua tarefa, mas também haverá de consultar os fatos e os valores vigentes no seu momento para dar uma solução jurídica.

Essa natureza inexata da ciência jurídica justifica a inquietante constatação de um mesmo caso concreto ser solucionado de modo diverso (e até mesmo antagônico) por diferentes julgadores.

Isso também justifica as mudanças de orientações jurisprudenciais que assustam os juristas: a Corte Maior de um País pode mudar sua interpretação jurídica em razão da alteração de sua composição de julgadores (culturalismo jurídico) e do contexto (teoria tridimensional do Direito).

Já está superado, de há muito, a noção formalista vigente à época do Código Civil napoleônico, no sentido de que o juiz (rectius, o jurista) é meramente a boca da lei. O crime de exegese já não encontra o mínimo conforto no cenário jurídico atual: não se pode punir o jurista por divergências de interpretações.

Em suma, o Direito não se resume à lei escrita e, a depender da história, cultura e experiência pessoais do jurista que o opera, poderá oferecer soluções diversas a um mesmo caso concreto.

É nesse contexto que se compreende a crítica do jurista Eros Roberto Grau ao reducionismo do Direito à lei. Disso deu notícia o notável Ministro Gilmar Mendes em sua homenagem a Eros Roberto Grau[6], in verbis:

À força das palavras, Eros Grau somou o poder da luta efetiva com as armas da lei e do Direito para alcançar a sonhada Justiça – sem dúvida, o melhor de todos os argumentos. Por quatro décadas fez da Advocacia a trincheira de onde torpedeou desde a ilegalidade ao normativismo vazio. Volto a citá-lo, de maneira a melhor fruir da pureza só obtida na própria fonte:

Que me perdoem os estudiosos que tomam a norma escrita, positiva, como objeto único de suas indagações. Isso é pouco e demasiado pobre para mim. Prefiro os desafios mais amplos, ainda que irresolúveis, a ocultar-me na cidadela do normativismo.

Uma teoria crítica supõe a concepção do direito não apenas como norma, mas como conjunto de preceitos enraizados nas condições de vida material, preceitos que as representam de maneira deformada, ideologicamente. Uma teoria crítica é uma teoria voltada à transformação do mundo. Eis o que me motiva e me conduziu até aqui. Viemos ao mundo para marcar os nossos próprios pés na areia inexplorada.

Pensar e refletir criticamente não apenas sobre o direito, mas sobre o mundo. Mundo em transformação, mundo que necessita, para que se possa transformar, do dinamismo de um direito também em transformação.

Esse, o direito instrumento de mudança social, o direito que me cumpre ensinar, porém, mais do que isso, que me proponho estudar. Direito que há de ser resolvido em suas bases, mediante o profundo questionamento das teorias que o sustentam. Dele pouco sei. Menos, porém, por certo, do que dele saberei amanhã. O compromisso, que assumo, de perseverar a pesquisar e a refletir sobre o direito, assumo-o comigo mesmo.

Uma teoria crítica supõe a concepção do direito não apenas como norma, mas como conjunto de preceitos enraizados nas condições de vida material, preceitos que as representam de maneira deformada, ideologicamente. Uma teoria crítica é uma teoria voltada à transformação do mundo. Eis o que me motiva e me conduziu até aqui. Viemos ao mundo para marcar os nossos próprios pés na areia inexplorada.

Pensar e refletir criticamente não apenas sobre o direito, mas sobre o mundo. Mundo em transformação, mundo que necessita, para que se possa transformar, do dinamismo de um direito também em transformação.

Esse, o direito instrumento de mudança social, o direito que me cumpre ensinar, porém, mais do que isso, que me proponho estudar. Direito que há de ser resolvido em suas bases, mediante o profundo questionamento das teorias que o sustentam. Dele pouco sei. Menos, porém, por certo, do que dele saberei amanhã. O compromisso, que assumo, de perseverar a pesquisar e a refletir sobre o direito, assumo-o comigo mesmo.”[7]

A perplexidade com essa fluidez da norma jurídica é tamanha que o juiz federal George Marmelstein Lima ironiza os julgamentos de vários órgãos superiores, ao identificar que, neles, costuma vigorar “a teoria da Katchanga, já que ninguém sabe ao certo quais são as regras do jogo. Quem dá as cartas é quem define quem vai ganhar, sem precisar explicar os motivos”[8].

2.2.     Da ilegalidade legítima e a ilegalidade ilegítima: o dilema entre boa-fé e legalidade diante da dúvida jurídica razoável

Diante da imprecisão própria da ciência jurídica, cabe ao operador do Direito ter posição cautelosa no julgamento de condutas, pois eventual violação de uma interpretação jurídica não é sinônima de má-fé.

Quando o destinatário da norma jurídica opta por uma interpretação jurídica viável, não se lhe pode impingir a nódoa da má-fé em razão de, futuramente, a sua alternativa hermenêutica não ter prevalecido no âmbito de instâncias julgadoras oficiais.

Mera discordância de uma interpretação jurídica futuramente vitoriosa não é uma sinonímia da má-fé ou do desvio de caráter.

De fato, a interpretação jurídica que prevalecer definirá o que é ou não legal. A legalidade é definida pela interpretação vitoriosa. As interpretações vencidas serão reunidas sob o manto da ilegalidade. Quem se amparou nessa interpretação vencida será rotulado como ilegal. E é aí que o jurista precisa ter a sensibilidade de, reconhecendo a natureza incerta do Direito, admitir que a ilegalidade não necessariamente corresponderá à má-fé, especialmente quando houver um cenário de dúvida jurídica razoável.

Se a interpretação vencida contava com razoabilidade à luz da comunidade jurídica, da história do direito e da tradição da sociedade, ela caracterizará uma situação de dúvida jurídica razoável (ou de dúvida objetiva), a qual afasta a existência de má-fé. De fato, a boa-fé objetiva exige o respeito à legítima expectativa dos indivíduos e condena a traição dessa confiança com surpresas. A dúvida jurídica razoável cria um cenário de legítima expectativa nos indivíduos, que, confiando na legitimidade de uma interpretação razoável, não pode ser estigmatizado com a pecha da má-fé.

O indivíduo não pode ser punido se se estribou em uma interpretação razoável que veio a ser vencida posteriormente. É absurdo puni-lo por falta de dons de vidência. Não lhe comete fazer exercício de futurologia para vaticinar qual será a interpretação que futuramente o órgão competente irá adotar. O indivíduo que se ampara em uma interpretação razoável nessa hipótese não incorre em má-fé e, se for possível dizer que ele cometeu algum erro de interpretação, esse erro, no mínimo, deve ser considerado um erro plenamente escusável, pois não lhe socorria o dom da vidência para adivinhar qual interpretação viria a, no futuro, sagrar-se vencedora.

Ao nosso sentir, para efeito de nomenclatura, designamos de ilegalidade qualquer contrariedade à interpretação vitoriosa. A ilegalidade, porém, pode ser classificada em legítima e ilegítima. Será legítima, quando a contrariedade à interpretação vitoriosa estiver amparada em uma outra intepretação que, apesar de vencida, era razoável (dúvida jurídica razoável). A ilegalidade será ilegítima, porém, se inexistir dúvida jurídica razoável a favor.

A ilegalidade legítima, porque está ancorada em dúvida jurídica razoável, afasta a má-fé, pois a vitória de uma entre várias interpretações razoáveis deve ocorrer com respeito ao princípio da confiança, que protege a legítima expectativa dos indivíduos.

2.3.     da cindibilidade dos efeitos da ilegalidade legítima: o juízo de correlação de proporcionalidade entre o grau de ilegalidade legítima e a intensidade dos efeitos jurídicos

Como já dito, se há dúvida jurídica razoável, a ilegalidade é aqui designada de legítima e, nessa condição, não insinua má-fé, pois apenas corresponde a uma intepretação razoável que foi derrotada perante o órgão competente para dar a palavra final.

A dúvida jurídica razoável não é um conceito absoluto; pode ser escalonada em graus de intensidade. Embora não haja um termômetro cirúrgico para essa medição, a prudência do jurista poderá aquilatar esse grau de intensidade da dúvida jurídica razoável com olhos no nível de amparo que as interpretações encontram na comunidade jurídica, na história do direito e na tradição da sociedade.

O grau de dúvida jurídica razoável dirá também o grau de ilegalidade que terá as interpretações que vierem a ser vencidas.

Se, por exemplo, a interpretação vencida era escorada em jurisprudência pacificada dos Tribunais Superiores, o grau de dúvida jurídica razoável era altíssimo. A mudança de entendimento dos Tribunais Superiores, derrotando uma interpretação anteriormente pacífica, entregará essa interpretação vencida a uma situação de ilegalidade legítima. Essa ilegalidade, diante do elevado grau da dúvida jurídica razoável, é de intensidade baixíssima.

Quanto menor o grau da ilegalidade legítima menores devem ser as sanções jurídicas daí decorrentes. É nesse contexto que o jurista, em um juízo de proporcionalidade, deve analisar quais os efeitos jurídicos da ilegalidade legítima podem ser irradiados.

 Se a ilegalidade era de intensidade baixíssima diante um cenário de dúvida jurídica razoável, seria desproporcional admitir a produção de efeitos jurídicos punitivos drásticos, mas seria proporcional acatar os efeitos jurídicos de baixa repercussão contra quem confiou em um interpretação razoável que foi vencida. De fato, em uma situação de grau baixíssimo de ilegalidade legítima, temos que praticamente nenhum efeito sancionador deverá ser produzido, pois, nessa situação, a dúvida jurídica era tão grande que a própria existência de uma norma jurídica pode ser questionada. Afinal de contas, norma é texto e contexto: se o contexto é extremamente turvo, a norma é incompleta.

Em um exemplo extremo, seria desproporcional punir, com prisão, quem, no século XVIII, impedia um negro de entrar em um ambiente, embora possa ser proporcional impor-lhe um dever de abster-se a reiterar essa prática doravante. Isso, porque, naqueles tempos sombrios de escravidão, a comunidade jurídica brasileira era majoritária no sentido de negar direitos aos negros. Embora esse fato (obstrução do negro a adentrar um estabelecimento) possa ser considerado ilegal atualmente – e repugnante! –, os efeitos jurídicos desse fato devem ser cindidos e, em seguida, devem ser submetidos a um juízo de proporcionalidade próprio com olhos no grau de dúvida jurídica razoável que imperava sobre o tema no século XVIII.

Com base nesse juízo de proporcionalidade entre o grau de ilegalidade e a intensidade dos efeitos jurídicos, o jurista precisa individualizar a análise de cada um desses efeitos e negar a produção daqueles efeitos que se afigurem desproporcionais. Os efeitos jurídicos da ilegalidade podem ser cindidos; trata-se do que designamos de “cindibilidade dos efeitos da ilegalidade legítima”.

Por essa razão, o jurista, ao enfrentar a árdua tarefa de interpretar o Direito, deve ter a prudência de, após eleger a sua alternativa hermenêutica, investigar quais são as soluções efetivas que poderão ser aplicadas ao caso concreto, com a postura humilde e empática de reconhecer que, em um cenário de razoável dúvida hermenêutica, será injusto infligir duras punições a quem adotou, em momento anterior, uma opção hermenêutica diferente.

2.4.     Da instância competente para escolher a interpretação vitoriosa: necessidade de uniformização

Reconhecendo a Babel em que mergulharia a sociedade com a coexistência de interpretações diversas de uma mesma norma, o Estado de Direito elege órgãos com competência para definir a intepretação que deve prevalecer.

No âmbito da Administração Pública, há vários agentes públicos com competência para decidir a interpretação jurídica dentro do seu âmbito de atribuições. Havendo conflito entre eles, a uniformização é feita pela prevalência da interpretação do agente público hierarquicamente superior. Há, ainda, a participação de órgãos administrativos de controle interno e externo que ingressam nessa disputa hermenêutica no seio da Administração Pública, impondo a sua interpretação com a ameaça de punições disciplinares. O Ministério Público também ocupa papel relevante nesse ambiente de concorrência multitudinária de interpretações possíveis, valendo-se de ferramentas coercitivas extrajudiciais (como as famosas “Recomendações”) e judiciais (como as ações civis públicas, as ações de improbidade administrativa e as ações penais)[9].

Nessa profusão de interpretações devidas, o Estado de Direito elege o Poder Judiciário como a última instância competente para dar a interpretação final, que prevalecerá sobre aquela dada por outro Poder. E, dentro do Poder Judiciário, o colorido mosaico hermenêutico também estará presente diante da possibilidade de haver divergências entre os diversos magistrados, de maneira que, por meio do sistema recursal e de outros mecanismos processuais, caberá essencialmente aos Tribunais superiores uniformizar a interpretação.

Como se vê, na tentativa de obter um monodiscurso normativo – que é essencial para garantir previsibilidade para os indivíduos –, o Estado de Direito necessita criar um arranjo complexo e vasto de instâncias destinadas à interpretação em uma estrutura que canalize para uma uniformização de interpretação por um único órgão competente.

3. A Dúvida Jurídica Razoável e a Cindibilidade dos Efeitos Jurídicos nos vários Ramos do Direito.

Diante da natureza inexata do Direito, entendemos que a ilegalidade legítima – assim entendida aquela contrariedade à interpretação normativa vitoriosa que esteja amparada em uma dúvida jurídica razoável – afasta a má-fé e, em consequência, impõe ao jurista o dever de proceder à cindibilidade dos efeitos jurídicos a serem produzidos. Nesse procedimento de “cindibilidade dos efeitos jurídicos”, o jurista deverá realizar um juízo de proporcionalidade entre o grau da ilegalidade legítima e a intensidade dos efeitos jurídicos para somente admitir a produção daqueles efeitos que sejam considerados proporcionais.

Há inúmeros exemplos desse princípio geral de direito.

3.1. Direito penal: a configuração do crime e o caso do impeachment da presidente da república em 2016

No Direito Penal, por exemplo, afasta-se o crime se a regra não era clara, ainda que sob o rótulo do instituto do erro de direito. A consequência penal é muito grave para ser irradiado nesse caso.

Ainda no Direito Penal, o Brasil conheceu um curioso caso envolvendo o impeachment da Presidente da República Dilma Rousseff por crime de responsabilidade. O Senado Federal, no exercício da sua competência constitucional de interpretar o parágrafo único do art. 52 da Constituição Federal,  entendeu que a melhor interpretação a ser adotada é a de que a perda do cargo de Presidente da República (impeachment) pode ser aplicada sem necessariamente infligir a pena pessoal de inabilitação para o exercício de função pública por oito anos. O Senado Federal cindiu esses dois efeitos jurídicos punitivos em relação ao crime de responsabilidade imputado à Presidente Dilma.  

Na nossa leitura dos fatos, temos que o Senado Federal, após reconhecer que as chamadas “pedaladas fiscais” tipificariam um crime de responsabilidade, acabou reconhecendo que a má-fé da Presidente nessa prática não era tão robusta assim, pois essa prática era costumeiramente praticada por governantes anteriores. É como se houvesse um cenário de dúvida jurídica razoável em torno da configuração do crime.

Nesse sentido, o Senado Federal promoveu uma cisão dos efeitos da conduta ilícita sob um critério de razoabilidade: admitiu o impeachment por entender que a Presidente Dilma não tinha condições de continuar governando o país, mas não acatou a aplicação de uma punição estritamente pessoal, que era a pena de inabilitação para o exercício público, pois a má-fé dela foi tida por atenuada diante do contexto de relativa dúvida jurídica razoável que rondava em torno da ilicitude das pedaladas fiscais.

O impeachment é uma sanção que envolve interesse institucional, ao passo que a perda de direitos políticos é uma punição que envolve interesse meramente individual da pessoa da Presidente Dilma e que a privaria de exercer atividades profissionais de interesse privado por oito anos. Toda norma é sujeita a interpretações. E a gravidade ou a existência de dúvida razoável na tipificação da conduta autorizam o intérprete a fazer reduções interpretativas, quando necessário, mediante um juízo de proporcionalidade.

O Senado escolheu uma entre outras possíveis do parágrafo único do art. 52 da Constituição Federal para aceitar a cindibilidade dos efeitos jurídicos do crime de responsabilidade pelo Presidente da República em situações como a ora relatada. Essa manobra é - a nosso sentir - plenamente admissível no âmbito da Ciência Jurídica, que se guia pela lógica do razoável, e não pela do racional, na lembrança de Recaséns Siches.

Por fim, alerte-se: em nenhum momento, este texto está a afirmar que a solução adotada foi a melhor ou a pior! Não estamos a externar nossa opinião acerca da legitimidade ou não do impeachment no caso concreto. Esse não é o mérito do presente texto. Aqui, está-se a tratar de uma etapa prévia a essa discussão de mérito; está-se a cuidar da dúvida jurídica razoável, da ferramenta hermenêutica que designamos de “cindibilidade dos efeitos da ilicitude” e da lembrança de que o Direito não se reduz à subserviência à frieza do texto da lei, pois Direito é “texto e contexto”.

3.2. Direito Administrativo: sanções administrativas, controle externo, caso da advocacia privada por membro da agu, improbidade administrativa, repetição de indébito de valores pagos e convalidação de nomeação sem concurso público

No Direito Administrativo, sanções administrativas são afastadas quando o enquadramento típico vacila nas asas da dúvida razoável.

Assim, o Tribunal de Contas da União (TCU) não pode aplicar multa ao gestor que praticou ato com base em uma interpretação obtida em um cenário de dúvida jurídica razoável. O TCU já admitiu isso, alegando que a dúvida jurídica razoável configuraria uma hipótese de erro escusável do gestor, que, inclusive, havia se amparado em parecer jurídico favorável da procuradoria. Confira-se este excerto de um julgado dessa corte administrativa:

“7.11. Se não se pode acolher como regular o procedimento adotado pelo órgão para manter a proposta mais vantajosa à Administração, pode-se, no mínimo, acolhê-lo como erro escusável, ao menos em relação à própria Administração e ao erário, diante de uma dúvida jurídica razoável, que ensejou inclusive parecer favorável da procuradoria, afastando-se, com isso, a culpabilidade dos responsáveis.” (TCU, Acórdão 320/2009 – Plenário, Processo nº 002.014/2006-4, Rel. Min. José Jorge, Data da Sessão 04/03/2009)

Aliás, é por essa razão que as normas só autorizam responsabilização do advogado público, do magistrado, defensores públicos e do membro do Ministério Público nos casos de dolo ou fraude, pois não se lhes pode punir por uma interpretação razoável adotada, especialmente em uma situação de dúvida jurídica razoável (art. 38, § 2º, da Lei nº 13.327/2016; art. 143, I, 181, 184 e 187 do CPC; e art. 40, Lei nº 13.140/2015). O velho crime de exegese não pode ser ressuscitado.

A propósito, a Advocacia-Geral da União (AGU), com base na dúvida jurídica razoável, deixou de punir um procurador da fazenda nacional que exerceu a advocacia privada durante o gozo de licença para trato de assuntos particulares. É que a Lei Orgânica da AGU proíbe a advocacia privada, mas não especifica se essa vedação se estende a quem está em licença sem vencimento (ou seja, a quem não está no exercício do cargo). Nessa ocasião, a AGU absolveu o procurador diante da dúvida jurídica razoável e, no mesmo ato, dissipou essa dúvida, entendendo que a vedação alcança quem está em gozo de licença (Despacho do Advogado-Geral da União que aprovou parcialmente o Parecer nº 06/2009/MP/CGU/AGU). A partir dessa decisão, quem fosse advogar em licença não poderia mais alegar dúvida jurídica razoável. Seja como for, a questão é tão controversa que, anos depois, assumiu um novo chefe da AGU e mudou o entendimento, de modo a passar a autorizar essa advocacia privada durante a licença para trato de assuntos particulares (Despacho do Advogado-Geral da União em 15 de abril de 2010, processo nº 00400.0232223/2009-89).

Outrossim, a advocacia em causa própria por membros da Advocacia-Geral da União foi admitida apesar de a Lei Orgânica da AGU vedar o exercício da advocacia. Isso, porque, em uma análise da lei escrita em conjunto com os fatos e os valores (teoria tridimensional do Direito), não se encontra qualquer razão de justiça para vedar a advocacia em causa própria nessa hipótese.

Ainda no Direito Administrativo, agredirá o senso básico de Justiça ceifar a vida funcional de um indivíduo, impondo-lhe as pesadas sanções decorrentes da Lei de Improbidade Administrativa por uma conduta que não se enquadrou na interpretação jurídica adotada a posteriori por um Tribunal. É nesse contexto que se entende a interpretação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no sentido de que ilegalidade não é sinônimo de improbidade[10].

É ainda nessa esteira que pacificou o entendimento de que não cabe repetição de indébito de remunerações indevidamente percebidas por servidores com base em divergência de interpretações normativas, se havia boa-fé. A propósito, o STJ é bem esclarecedor neste julgado:

“1. A discussão dos autos visa definir a possibilidade de devolução ao erário dos valores recebidos de boa-fé pelo servidor público, quando pagos indevidamente pela Administração Pública, em função de interpretação equivocada de lei.

2. O art. 46, caput, da Lei n. 8.112/90 deve ser interpretado com alguns temperamentos, mormente em decorrência de princípios gerais do direito, como a boa-fé.

3. Com base nisso, quando a Administração Pública interpreta erroneamente uma lei, resultando em pagamento indevido ao servidor, cria-se uma falsa expectativa de que os valores recebidos são legais e definitivos, impedindo, assim, que ocorra desconto dos mesmos, ante a boa-fé do servidor público.” (STJ, REsp 1244182/PB, 1ª Seção, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, DJe 19/10/2012)

Por fim, o STF já admitiu até mesmo a convalidação de nomeação de empregados públicos sem concurso público diante da existência de dúvida jurídica razoável acerca da exigibilidade do certame público[11]. O caso concreto envolvia contratações de pessoal sem concurso público no âmbito de uma empresa pública, a Infraero. A exigibilidade de concurso público para empresas públicas era objeto de dúvida jurídica razoável até o advento de acórdão do STF no Mandado de Segurança nº 21.322, publicado em 23/04/1993. Antes desse julgamento, a controvérsia doutrinária era séria e razoável diante do aparente conflito entre o art. 37, II, e o art. 173, § 1º, da Constituição Federal. Em suma, o STF entendeu que as contratações feitas pela Infraero sem concurso público antes do julgamento do referido mandado de segurança deveriam ser convalidadas em respeito ao cenário de dúvida jurídica razoável que existia. É isso que se infere da leitura dos votos, os quais, embora não façam alusão direta ao conceito de dúvida jurídica razoável, evocam-no indiretamente ao tratar do princípio da segurança jurídica. Ressalva-se também que, nesse caso concreto, havia outros fatores além da dúvida jurídica razoável, como a existência de um processo seletivo rigoroso feito pela Infraero (não era concurso, porém) e o fato de o Tribunal de Contas, em um primeiro momento, ter consentido indiretamente com essas contratações. Segue a ementa do referido julgado do STF:

“Mandado de Segurança.

2. Acórdão do Tribunal de Contas da União. Prestação de Contas da Empresa Brasileira de Infra-estrutura Aeroportuária - INFRAERO. Emprego Público. Regularização de admissões.

3. Contratações realizadas em conformidade com a legislação vigente à época. Admissões realizadas por processo seletivo sem concurso público, validadas por decisão administrativa e acórdão anterior do TCU.

4. Transcurso de mais de dez anos desde a concessão da liminar no mandado de segurança.

5. Obrigatoriedade da observância do princípio da segurança jurídica enquanto subprincípio do Estado de Direito. Necessidade de estabilidade das situações criadas administrativamente.

6. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de um componente de ética jurídica e sua aplicação nas relações jurídicas de direito público.

7. Concurso de circunstâncias específicas e excepcionais que revelam: a boa fé dos impetrantes; a realização de processo seletivo rigoroso; a observância do regulamento da Infraero, vigente à época da realização do processo seletivo; a existência de controvérsia, à época das contratações, quanto à exigência, nos termos do art. 37 da Constituição, de concurso público no âmbito das empresas públicas e sociedades de economia mista.

8. Circunstâncias que, aliadas ao longo período de tempo transcorrido, afastam a alegada nulidade das contratações dos impetrantes.

9. Mandado de Segurança deferido.”

(STF, MS 22357, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 05-11-2004)

3.3. Processo Civil: fungibilidade recursal e modulação dos efeitos de mudança de jurisprudência

No Direito Processual Civil, a dúvida jurídica razoável preserva recursos de cabimento duvidoso em nome da princípio da fungibilidade recursal e autoriza a modulação dos efeitos da jurisprudência no tempo (art. 942, § 3º, do CPC). Aliás, essa possibilidade de modulação dos efeitos da jurisprudência já é admitida há algum tempo na jurisprudência. O STJ, por exemplo, ao seguir o STF para mudar o seu entendimento quanto ao termo inicial do prazo recursal para o Ministério Público (MP) – data do recebimento do feito na repartição, e não mais do “ciente” do membro do MP –, protegeu quem, antes dessa mudança jurisprudencial, havia recorrido com base no entendimento antigo. Isso, porque havia dúvida jurídica razoável na parte recorrente, que dificilmente imaginaria que o STJ mudaria a sua interpretação da legislação (STJ, HC 28.598/MG, 5ª T., Rel. Min. Laurita Vaz, DJ 01/08/2005).

Sobre o autor
Carlos Eduardo Elias de Oliveira

Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Advogado, ex-Advogado da União e ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília – UnB. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual, do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. A dúvida jurídica razoável e a cindibilidade dos efeitos jurídicos.: Hipótese de excludente ou atenuante de responsabilidade civil e de afastamento de efeitos jurídicos desproporcionais em outros ramos do direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6193, 15 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61896. Acesso em: 21 nov. 2024.

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