6. Liberdade de escolha.
Passemos da França para a Inglaterra, cuja legislação previa pena de morte para roubos de objetos avaliados, no mínimo, em 40 xelins. Durante anos, esclarece Chaïm Perelman, avaliaram os juízes "em 39 xelins, no máximo, qualquer roubo que fosse, para não ter de punir o roubo com a pena de morte. Até um dia em que, em um processo de 1808, tendo sido avaliado em 39 xelins o roubo de 10 libras esterlinas, isto é, de 200 xelins, a ficção tornou-se flagrante e a lei foi modificada pouco tempo depois" (PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica [trad.]. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 86/87).
É interessante sublinhar a fonte de informação de Perelman, ou seja, a obra de G.Gottlieb, intitulada justamente The logic of choice (Londres: Allen and Unwin, 1968). Com efeito, a lógica da escolha transparece com clareza não só na hipótese mencionada como, aliás, em tantas outra situações, no mundo inteiro, ligadas ao processo de construção e reconstrução do direito penal.
Veja-se, de passagem, a Itália. Segundo opinião predominante, endossada por Manoel Pedro Pimentel, é aos práticos italianos que devemos atribuir a origem do crime continuado, ou seja, a seu critério de benignidade em face do "rigor da punição com a morte, cominada ao autor do terceiro furto" (Do crime continuado, 2ª ed. São Paulo: RT, 1969, p. 41). Se o concurso material atrapalha, recorre-se à ficção jurídica de um só delito, em forma continuada. Tudo isso, é claro, em havendo clima de liberdade para a imposição fática de um direito penal diversificado, compatível com o sentimento de justiça de parcela do grupo social e do próprio operador jurídico.
Tempos atuais. E na maior parte do mundo. Há, na Constituição, algum amparo para a escolha efetuada? Ótimo, a Constituição ainda é a melhor companhia do intérprete. Há, na Constituição, algum outro dispositivo que indique caminho diverso? Nenhum problema: afirma-se que o conflito é aparente. Quem afirma? Todos os que são convocados a dirimir a controvérsia, inclusive os que se inclinam pela segunda alternativa.
Vale o raciocínio para a escolha da lei penal (qual lei penal?) e dos artigos, incisos, alíneas e parágrafos pertinentes. Vale o raciocínio para a escolha da boa e correta dogmática: bem jurídico, imputação objetiva, ponderação de valores, política criminal, adequação social, relevância do tipo, dolo, preterdolo, culpa, censurabilidade.
Surgem dificuldades para a instituição do júri, que não é necessariamente progressista, pois tem por missão preservar os valores do meio social. Como o finalismo de Welzel está em baixa, assim como o princípio da retribuição punitiva, os jurados brasileiros, através das explicações técnicas do juiz de direito, advogado de defesa e promotor de justiça, teriam que novamente reciclar-se, teriam que habilitar-se na sessão de julgamento a discernir o joio do trigo, assimilando com maestria as cambiantes e variáveis posições do dolo: no tipo, na ilicitude, na culpabilidade; as metamorfoses do erro de tipo e de proibição; a importância ou não da consciência da licitude como requisito de todas as descriminantes; as impertinências conceituais da culpa consciente e dolo eventual e tantas outras questões já devidamente dogmatizadas ou sacramentadas pelos especialistas do final do século XX e início deste século.
É bom também lembrar que os jurados devem proferir a decisão de acordo com sua própria consciência e os ditames da justiça (CPP, art. 464). Pergunta-se: quem não percebe, dentro de uma visão crítica, nesta última hipótese, por força da soberania do júri, a legitimidade constitucional de uma decisão contra legem, em favor ou em prejuízo do réu? Ou teríamos, em contrapartida, que decretar a inconstitucionalidade do mencionado artigo 464 e constranger os membros do conselho de sentença, através de outra norma, a seguir fielmente os últimos postulados da dogmática jurídico-penal?
7. Visão crítico-metodológica
Com ou sem tribunal do júri, o fato é que "o Estado, enquanto julgador, se materializa em seres humanos. E é evidente que esses seres humanos têm sua história, com sua formação pessoal e profissional sujeita a inúmeros fatores, quer de ordem familiar, quer de ordem cultural ou mesmo de ordem conjuntural". É o que assevera com acerto Adauto Suannes, mencionando em seguida a importância no processo judicial de mecanismos que minimizem, na medida do possível, o enfoque pessoal do magistrado no contexto dos elementos de prova de ordem objetiva (Os fundamentos éticos do devido processo penal. São Paulo: RT, 1999, p. 219).
Fiquemos com esta última hipótese, de um direito penal a revelar-se concretamente através de um processo regular. Esqueçamos outras questões bem mais amplas e complexas, ligadas ao direito internacional e ao próprio enfraquecimento do Estado no exercício de sua soberania interna.
Ora, continua de pé a pergunta básica: existe uma dogmática do crime em condições de aportar soluções uniformes e objetivas para o dia-a-dia do direito penal? No mesmo compasso: já conhecemos, finalmente, a estrutura e o conteúdo do crime de um modo geral e de cada crime em particular?
Não, não existe essa dogmática e quase nada sabemos do crime como instituição jurídico-penal. Quem disser o contrário coloca em cheque a capacidade argumentativa e decisória de todos os que labutam na área, desde o jovem bacharel recém-formado ao mais experiente ministro de nossa Corte Suprema. É que o direito — e, pois, o direito penal — à luz da própria Constituição, pelo simples fato de implicar uma divisão de tarefas a cargo de pessoas diversas, com perfil e pensamento próprios, se revela nitidamente contraditório. Na síntese de João Maurício Adeodato, "pilares ''científicos'' como a unidade do ordenamento jurídico, a neutralidade do juiz ou a objetividade da lei constituem, no fundo, meras estratégias discursivas" (Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 281). E Luís Roberto Barroso: "Ainda quando fosse utopicamente possível libertar o juiz de suas injunções ideológicas, não seria possível libertá-lo do seu próprio inconsciente, de sua memória e de seus desejos" (Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 269).
Alguma dúvida? Consultem-se os repertórios de jurisprudência. Consultem-se os livros de doutrina penal. Tirante alguns "princípios", de caráter formal, quase ninguém se entende. Apaixonados pelo direito e pela justiça, nossos penalistas (doutrina e jurisprudência) são capazes de arrolar dezenas de considerações reveladoras de zelo, atualização dogmática, probidade profissional. Ainda assim, divergem a todo instante, palavra por palavra, a cada nova lei, diante de qualquer dispositivo, artigo, inciso, alínea ou parágrafo. O direito penal é e vai continuar sendo um fato normativo essencialmente contraditório, e isto enquanto se permitir que seres humanos — delegados de polícia, juízes de direito e promotores de justiça, por exemplo — se responsabilizem a cada passo por sua estruturação, nos limites de sua sensibilidade e competência.
Pois bem, essa visão crítica (de qualquer visão dogmática, no sentido de relativizar suas pretensões) e ao mesmo tempo metodológica (desobstrução dos caminhos ocultos, para a percepção de fontes mais sólidas, interligadas) raramente aparece nos compêndios de direito penal. Prefere-se a via única das abstrações dogmáticas, na expectativa de que elas se imponham por si mesmas, em sua explícita mensagem de verdade finalmente conhecida, capaz de reparar os erros de outras "verdades" até então disseminadas no foro e no meio acadêmico. Agem os doutrinadores como novos profetas, como catequistas, como sacerdotes e pastores em seus púlpitos, a quem o destino teria propiciado a oportunidade de aceder, diretamente ou por empréstimo, às tábuas da lei e dogmática universal do crime e da pena.
Entretanto, decepcionam no trivial. Basta lhes pedir detalhes, a interpretação de modesta lesão corporal, se há ou não tipicidade, se há ou não ilicitude, e logo aparecem os desentendimentos. Embriaguez no trânsito, participação em racha, receptação, homicídio, furto simples ou qualificado, esbulho possessório, aborto, dano, roubo, latrocínio e assim ad infinitum — nada, nenhum delito, nenhum item da teoria geral do crime (consumação, tentativa, ação, omissão, resultado etc.) consegue atestar a homogênea sabedoria ou competência funcional de quem quer que seja, diante da evidência empírica dos desencontros exegéticos. Doutrina e jurisprudência se nivelam na transparente consolidação de direitos no plural, válidos por si mesmos, embora divergentes em seu conteúdo.
8. Para concluir
Qual a moral da história? Difícil de apontá-la. Como afirma corretamente Luís Roberto Barroso, "nenhum conhecimento pode prescindir de princípios, conceitos e elementos que se articulem em torno de um objeto, ainda que seja para utilizá-los como instrumentos de transformação" (ob. cit., p. 269).
Negar a dogmática é negar a si próprio. Melhor permanecer calado. Qualquer discurso, inclusive o discurso crítico, se insere obrigatoriamente em algum sistema, em alguma objetividade compartilhada. Até mesmo este artigo, redigido em português, postula e pressupõe sua participação em um código mais amplo de intercomunicação das idéias. Além disso, na lição de Barroso, há pouco mencionado, não existe direito sem doutrina, sem institutos próprios; não é possível "desprezar sumariamente a dogmática jurídica nem o conjunto de experiências e conhecimento acumulados ao longo de séculos de vida social" (idem, ibidem).
Depurada de certos exageros e mistificações, a dogmática jurídico-penal de nossos tempos se faz enriquecer, isto sim, no campo ideológico, por sua mensagem de manutenção e aprofundamento das regras e princípios históricos inerentes ao Estado Democrático de Direito. Tem a vantagem de trazer à tona um leque maior de opções retórico-decisórias até então acanhadas, incipientes, que hoje afloram com maior clareza e impetuosidade em face de outras dogmáticas formalistas, reveladoras, na prática, de um certo grau de desacerto no plano da justiça material.
Impossível, porém, agradar totalmente a gregos e troianos. Nenhuma dogmática jurídico-penal consegue eliminar o que está fora do seu alcance: a dialética do tempo; a lógica jurídica de busca das premissas; a biografia do intérprete; o mistério das palavras; o poder econômico; a força política; os sentimentos éticos e preconceitos inseridos no grupo social. Estes ingredientes é que ajudam a forjar o direito em sua concretude.
Prefiro, então, para o ensino do direito penal, associar o discurso dogmático à realidade empírico-normativa, de caráter histórico-sociológico. Sem desconhecer que essa realidade, para ser analisada e compreendida, se submete previamente ao cerco de alguma teoria. Isso é inevitável. No caso, enfatizo uma teoria que procure levar a sério algumas instruções básicas do legislador constituinte: a) crime e pena dependem de lei; b) crime e pena dependem de investigação, acusação, defesa, processo, prova, condenação e execução. O direito que daí resulta, em suas contradições, quase nada tem a ver com a beleza messiânica das ilusões dogmáticas.
Por fim, uma autocrítica: no magistério do direito penal também me sinto um pregador, de certo modo, pois advogo a ideologia da verdade. Com a diferença de que essa verdade é capaz de saltar aos olhos de quem efetivamente queira enxergar e, enxergando, libertar-se das amarras da alienação — condição mínima para que trace, no futuro, o próprio caminho, ainda que nas entrelinhas do medo, frustrações, utopias, sonhos e esperanças.
Referências bibliográficas:
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