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Ensino crítico de Direito Penal

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15/01/2005 às 00:00
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Nenhuma dogmática jurídico-penal consegue eliminar o que está fora do seu alcance: a dialética do tempo; a biografia do intérprete; a vagueza e ambigüidade das palavras; o poder econômico; a força política...

Sumário: 1. Introdução. 2. Linguagem da lei. 3. Lógica jurídica: a busca das premissas. 4. Dogmaticidade histórico-social. 5. Interpretação da lei penal. 6. Liberdade de escolha 7. Visão crítico-metodológica. 8. Para concluir.

Resumo: Dentre outros pontos positivos, a moderna doutrina do direito penal se destaca ao trazer à tona um leque maior de opções retóricas até então acanhadas, incipientes. Entretanto, nenhuma dogmática jurídico-penal consegue eliminar o que está fora do seu alcance: a dialética do tempo; a biografia do intérprete; a vagueza e ambigüidade das palavras; o poder econômico; a força política; os sentimentos éticos e preconceitos disseminados no grupo social; a lógica jurídica de busca das premissas. Força, poder, vontade e liberdade são os pressupostos ou categorias que, interligados, constróem facilmente qualquer tipicidade — ou deixam de reconhecê-la; constróem facilmente a ilicitude — ou a desqualificam; constróem facilmente a culpabilidade — ou não se importam com ela. O direito que daí resulta, em suas contradições, quase nada tem a ver com a beleza arquitetônica das teorias dogmáticas, o que é visível não só no plano internacional mas até mesmo no âmbito interno da soberania do Estado, em pleno funcionamento das instituições democráticas.

Palavras-chave: Dogmática do direito penal — Estrutura jurídica do crime — Hermenêutica jurídica — Lógica jurídica — Visão crítico-metodológica — Ensino crítico-metodológico — Fato normativo — Fato histórico-sociológico — Essência contraditória do direito — Força, poder, vontade, liberdade.


1. Introdução

Chegamos ao terceiro milênio. Entretanto, pelo andar da carruagem, passaremos a década, no Brasil, a discutir as vantagens e desvantagens de novas correntes e doutrinas jurídico-penais, trazidas ou importadas de outros países.

Há novas técnicas e geometrias no ar, mais sólidas e resistentes. Chega-se até a afirmar, como sinal dos tempos, que a dogmática de hoje, por seu caráter científico, universal, haveria de assegurar a tão esperada segurança, igualdade e justiça no âmbito do direito punitivo.

Mantenho minhas dúvidas e desconfianças. Afinal, continuam esquecidas, nos livros de doutrina, as fontes vivas do direito, incapazes de perceber — e cumprir — o apelo retórico das impecáveis fórmulas químico-matemáticas de nossos melhores penalistas. Nada obstante, aproveito-as para ilustrar a importância de uma visão crítica e realista do direito penal. E isto, diga-se de passagem, sem negar a validade de um esforço contínuo de aproximação do direito à justiça, através do reexame e reconstrução de tantas e tantas pregações doutrinárias, no campo ideológico.


2. Linguagem da lei

Nenhum penalista que se preza desconsidera a lei como fonte ou expressão do direito penal. Só que a interpretação da lei penal passa pelas mesmas dificuldades concernentes à exegese de qualquer texto normativo. A começar pelo próprio objeto, a lei, obrigatoriamente apresentada sob a forma de uma linguagem viva, natural, quase sempre vaga, imprecisa, incerta, duvidosa e ambígua. E quando surgem novas teorias hermenêuticas, ou novas concepções ideológicas de construção ou reconstrução do direito, elas não se despem das vaguezas e ambigüidades inerentes à linguagem humana. Mostram-se também suscetíveis de outras explicações, ditas de segundo grau, a demandar um terceiro, e assim sucessivamente, circunstância que demonstra de plano a impossibilidade lógica de sua objetiva transparência.

Não adianta resolver o enigma através do recurso à lei maior, de índole constitucional. Também as constituições se revestem, em regra, dos mesmos vícios e virtudes da legislação ordinária. Assim, assentar o direito penal moderno em bases constitucionais — o que, aliás, não constitui nenhuma novidade — é simplesmente relançar uma idéia, um projeto, desacompanhados de qualquer garantia de consolidação. "L'' État, c''est moi!", diria Luís XIV, da França; e a constituição é aquilo que dela afirmam os ministros da Suprema Corte, como se expressariam, com realismo crítico, certos juristas norte-americanos.

Mauro Cappelletti destaca maior liberdade hermenêutica exatamente na esfera constitucional. A interpretação, para ele, "sempre implica um certo grau de discricionariedade e escolha e, portanto, de criatividade, um grau que é particularmente elevado em alguns domínios, como a justiça constitucional e a proteção judiciária de direitos sociais e interesses difusos" (Juízes legisladores? [trad.]. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris,1993, p. 129).

Quando as mulheres quiseram exercer atividades advocatícias, na Bélgica, de nada lhes valeu a carta constitucional, nem o apelo à Corte de Cassação. Esta se sentiu autorizada a contrapor à lei magna um princípio geral de direito, implícito no sistema: a incompatibilidade natural inerente à própria condição feminina. Isto era evidente. Certas evidências, eis o comentário de Chaïm Perelman, não precisavam ser enunciadas para serem reconhecidas, conforme se afirmou, aliás, em famoso acórdão de 1889 (Droit, morale et philosophie. Paris: L.G.D.J., 1976, 2ª ed., p. 130).

De seu turno, a 14ª emenda à constituição norte-americana, ao garantir "igual proteção das leis", acabou assegurando aos negros a doutrina da separação racial ("separados mas iguais"), acatada pela Suprema Corte em 1896 e 1899 (RODRIGUES, Lêda Boechat. A corte suprema e o direito constitucional americano, 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992, p. 92/94; p. 144/147; p.299/304).

Novos acontecimentos, nova mentalidade, novos intérpretes. Muitos anos se passaram e, a certa altura, reverteu-se a situação, na Bélgica e nos Estados Unidos. Contudo, servem os exemplos para destacar a preponderância dos fatos sobre qualquer evidência de ordem racional, no campo do direito. Uma constituição, sozinha, não garante nada, absolutamente nada. E quanto às novas teorias jurídico-penais?

A proliferação de teorias sobre a estrutura jurídica do crime, ainda que sofisticadas, só serve nas maioria das vezes para engordar o cardápio das opções hermenêutico-decisórias. Já não basta a confusa multiplicação de leis criminais. Já não basta o Código Penal, dividido em duas partes que, na aparência, se harmonizam. Já não basta o Código de Processo Penal, introduzindo no direito substantivo, na esteira e complemento da lei suprema, a incômoda presença de advogados, peritos, escrivães, testemunhas, promotores de justiça, delegados de polícia, tribunal do júri, juízes de direito. Já não bastam as interações dialéticas, os partidos políticos, os líderes comunitários, a mídia, os avanços na ciência, na medicina, na psicologia; já não bastam as contestações e mudanças ético-valorativas do próprio meio social.

Não, é preciso acompanhar, passo a passo, as invenções e transformações de uma possível dogmática penal do pensamento único, universal; uma dogmática, eis o paradoxo, em eterno processo de revoluções conceituais, acessíveis a meia dúzia de iniciados. Mais impressionante ainda: uma dogmática em condições de apontar o conteúdo material de justiça incorporado a cada fragmento da estrutura global do crime e da pena, reapresentada, como sempre, em misteriosas vestimentas.


3. Lógica jurídica: a busca das premissas

O direito, porém, antes de qualquer lógica formal, não prescinde de uma lógica preliminar, comprometida com a busca das premissas. Trata-se de lógica valorativa, que começa, em princípio, com o intérprete com poder decisório. Não importa se esse intérprete com poder decisório é como tal considerado porque uma regra objetiva de funcionamento do sistema lhe dá efetiva sustentação. É que não se nega, numa visão crítica, a recíproca influência e interpenetração de fatos e valores disseminados no grupo social. No entanto, o que merece realce é a figura do operador jurídico, fonte maior do direito penal.

Em pleno regime democrático, no âmbito restrito de sua competência, um promotor de justiça em começo de carreira dispõe de mais poderes que o Supremo Tribunal Federal. Vejamos. Se ele acerta, em prejuízo do réu: confirmação do que pretende, em havendo recurso. Se ele erra, desta feita em prol do acusado: a mesma coisa. Vale o que é certo e vale igualmente o direito que ele constrói às avessas, confirmado, se for o caso, pelos tribunais superiores. E é fácil de se entender. Em matéria penal, prevalece o consenso da consolidação de situações jurídicas que se forjam em favor do acusado.

A diferença entre uma visão teórico-dogmática e uma visão crítico-metodológica aparece na constatação de que não se trata necessariamente de erro ou desacerto, mas de efetiva construção assimétrica do direito penal, que se revela, portanto, intrinsecamente contraditório. A exigência constitucional da separação formal dos poderes faz transparecer, na prática, no cotidiano do direito penal, uma realidade cambiante, multifacetada, objeto de atenção do jurista que mantenha os pés sobre o solo e a cabeça em sintonia com essa realidade, da qual não se afasta, em termos metodológicos.

Volto, com acréscimo, ao diapasão: eventual harmonia ideológica entre delegados de polícia, promotores de justiça e juízes de direito, no interior da comarca, consolida previamente qualquer direito penal sob seu comando, independentemente de coincidir, ou não, com a jurisprudência dos tribunais superiores.

Lei, ideologia e intérprete, em suas recíprocas interações, é que vão condicionando e formatando o direito penal de cada dia, com ou sem fidelidade às últimas pregações dogmáticas. Fenômeno histórico por excelência, não pode o direito penal, enquanto norma que se efetiva como fato social, prescindir dos pressupostos ou categorias que o identificam e o tornam possível como realidade objetiva: força, poder, vontade, liberdade.

Parece não haver muita contestação: dentre outros bens, o direito penal, em tese, tutela normativamente a vida, a integridade física, a liberdade e o patrimônio das pessoas. Em outras palavras, em parceria com as regras de direito processual, pretende assegurar, em havendo crime, uma resposta compatível com a gravidade do evento.

O problema é que os fatos negam a teoria. Crime não é e nunca foi, rigorosamente, uma conduta típica, ilícita, culpável e, via de regra, punível. Estou lembrando a punibilidade, como marca do direito penal, porque meu grau de alucinação ainda não me desviou do significado básico da palavra pena. Pois bem, se a todo crime corresponde uma pena, no plano das idéias, essa correspondência não fecha, todavia, com a realidade. Melhor dizendo, pode até fechar, desde que essa realidade coincida com os pressupostos a que há pouco me referi: força, poder, vontade, liberdade. São esses pressupostos que, interligados, constróem facilmente qualquer tipicidade — ou deixam de reconhecê-la; constróem facilmente a ilicitude — ou a desqualificam; constróem facilmente a culpabilidade — ou não se importam com ela.

É que o direito "marcha na direção em que a sociedade caminha e anda com ela e não à frente dela", como lembra J.J. Calmon de Passos (Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 102). E não é o direito, ele próprio, raiz. Se raízes podem ser identificadas, aparecem no político e no econômico, ''revestidos'' pelo ideológico: "Todo pensamento jurídico, toda construção jurídica, portanto, tem pressupostos e determinantes de natureza ideológica, que por sua vez assentam no subsolo do econômico e do político" (idem, ibidem).

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Está na hora de se avisar aos estudantes que nenhuma categoria estrutural de crime ou pena se encontra prevista em algum canto do universo, à espera de sua "descoberta". Inexiste significado intrínseco em nenhuma palavra que se utilize para a identificação do crime como realidade abstrata. O lugar e o sentido da ilicitude, da culpa, do dolo, do erro, da ação, da omissão, da censurabilidade, da responsabilidade, do tipo e da imputação objetiva, por exemplo — no que concerne à estrutura jurídica do crime e da pena — não estão previamente indicados por algum sistema universal que, conhecendo seu DNA desde a eternidade, deveria colocar um ponto final na discussão da matéria. Esse lugar e sentido nascem da capacidade inventiva de qualquer ser humano. Uma capacidade que pode, portanto, ser outorgada ao legislador de carne e osso. Ou a qualquer pessoa que investigue, opine, acuse, defenda ou decida — ou ensine, como professor ou doutrinador. Em havendo acordo, melhor para a comunicação, compreensão e fluidez das idéias.


4.Dogmaticidade histórico-social

Sim, a lógica jurídica que mais nos interessa tem tudo a ver com o tema da busca e apreensão das premissas. Todavia, surge uma questão mais sutil, ligada à legitimidade e possibilidade fática de quem busca e apreende essas premissas, tornando-as, com o próprio gesto, válidas, vigentes, efetivas. Qual o sentido de uma dogmática universal do crime, perfeita e acabada, num mundo intrinsecamente antagônico e conflituoso desde os primórdios da civilização humana? Mortes, lesões corporais, torturas, seqüestros, confinamentos, estupros, incêndios, roubos e depredações, se merecem penas, quem as aplicou no passado e as aplicará nos tempos atuais, nos quatro cantos do planeta? Qual a responsabilidade jurídico-penal em fatos dessa natureza quando significativa parcela do poder público, durante anos a fio, invertendo o que dele se espera, se comporta como verdadeira organização criminosa ou procede, pelo menos, omissiva e seletivamente?

No âmbito interno, de governos tirânicos, ou em escala internacional, de velhos e novos conflitos, de velhas e novas dominações políticas, de nada serve a beleza arquitetônica de uma teoria que não disponha do poder de investigação, acusação, processo e julgamento. E isto se aplica igualmente a situações corriqueiras do sistema penal de países democráticos. Leis e teorias, foi o que afirmei alhures, só traduzem o direito se alguém se dispõe a sustentá-las, mesmo a contragosto (BASTOS, João José Caldeira. Direito penal: visão crítico-metodológica. RBCCrim nº 1, jan./mar. 1993. São Paulo: RT, p. 102; Curso crítico de direito penal. Florianópolis: Obra Jurídica, 1998, p. 186).

Já o direito penal, quando encarado no plano da história, de alguma forma revela sua face. Como lembra Sebastián Soler, a historicidade do direito é a única explicação possível para o fato de a escravidão e a tortura figurarem tradicionalmente como direitos naturais na obra de eminentes autores (Estructuras objetivas y figuras jurídicas. Ciência Penal, v. 2. São Paulo: José Bushatsky, 1974, p. 6). Ouçamos também Miguel Reale Júnior, em passagem relacionada com a prática política e judicial nos tempos da escravidão, no Brasil: tanto o desprezo à lei quanto sua "gloriosa submissão" serviram para perpetuar, entre nós, a ordem escravocrata, "reconhecendo-se como legítimo o que a olhos vistos era abjeto"(Democracia e cidadania no Brasil, RBCCrim nº 37, jan./mar. 2002. São Paulo: RT, p. 142).

Observações desse naipe é que vão reacendendo aqui e ali a esperança de uma leitura realista do direito penal, nos bancos universitários. A maioria de nossos excelentes penalistas prefere, no entanto, o direito penal das abstrações dogmáticas, esquecendo-se de que nenhuma estrutura jurídica do crime e da pena conseguiu até hoje impor-se à vontade e liberdade do operador jurídico em eventual posição de força e poder. Novamente Calmon de Passos: "... enquanto puro juízo, a norma é um quase nada jurídico, mera partitura à espera do intérprete e executor que a recupere e dos que se propõem a ouvi-la e com ela interagir, simples potencialidade enquanto não atualizado o que meramente enunciou" (ob. cit., p. 48). E continua, aduzindo que tal reflexão é fundamental para compreendermos o jurídico, a ponto de nos curar "da fantasia de falarmos em Direito antes de sua produção e fora do processo de sua produção e aplicação, como se lidássemos com objetos materiais ou produtos da atividade do homem suscetíveis de reificação" (idem, ibidem).


5. Interpretação da lei penal

Claro, precisamos interpretar os fatos e a lei. Como o fazemos? A partir de nós mesmos, de nossas condições e conhecimentos pessoais e intransferíveis. Nenhuma teoria estrutural do crime tem esse poder mágico de neutralizar a necessária participação valorativa do intérprete. E os variados métodos de hermenêutica jurídica nos levam ou podem levar a soluções divergentes e contraditórias. Texto da lei: qual texto, o do furto ou do roubo? Da tentativa ou da consumação? Espírito da lei: qual deles? Afinal, há mais de um espírito em torno da lei. Política criminal: qual delas? E a legítima defesa preventiva: não consta do cardápio legal? Ora, para que servem os princípios? Para que servem as doutrinas?

As leis e as constituições não passam de projetos de direito. Valem enquanto podem valer. D. Pedro II, no Brasil, após o 15 de Novembro, sentiu que não podia mais contar com a Constituição do Império. Em documento escrito, deixou registrado que cedia ao "Império das Circunstâncias". Pois bem, procure-se a espada, no símbolo do direito e da justiça, e se verá melhor não a Constituição do Império mas a força preponderante desse Império das Circunstâncias.

Proclamação da República, Revolução de 30, Estado Novo, atos institucionais: é bom não se mexer no vespeiro, para não nos flagrarmos todos em plena situação de ilegalidade ou ilegitimidade funcional...

Segue outro exemplo, o do duelo na França, nos séculos XVIII e XIX. Como já deixei anotado em outro lugar, sua apreciação tem a vantagem do distanciamento temporal dos fatos, conferindo-lhe, juntamente com outros elementos, um forte valor didático (BASTOS, João José Caldeira. Le raisonnement du juriste: contribution à l''étude critique de la dogmatique pénale. Tese não depositada e, pois, não defendida. Bruxelas:1982, p. 169/177).

A hipótese do duelo me parece privilegiada como ilustração da importância de um estudo crítico do direito penal. Ela mostra, quando examinada em seus detalhes, o caráter histórico do direito, a ambigüidade do princípio da reserva legal e a importância das ideologias e preconceitos jurídico-sociais, assim como, em última instância, da personalidade do intérprete com poder opinativo ou decisório.

Ninguém duvidou de que ele era punido criminalmente na França nos séculos e anos que antecederam imediatamente a Revolução de 1789. A dúvida surgiu após aquele evento — de modo especial, a partir do Código Penal de 25 de setembro de 1791. Persistiu na vigência do Code Brumaire ano IV e, mesmo, do Code Pénal de 1810, se bem que o problema tenha praticamente desaparecido nos tempos atuais, seja em face dos novos costumes, seja em decorrência do pronunciamento solene da Corte de Cassação, em 1837.

Punha-se fim, naquele ano, a uma tormentosa querela jurídica. O enquadramento do fato (morte e lesões corporais) nas penas do Code Pénal, capítulo dos crimes e delitos contra a pessoa, teve o sabor de mudança abrupta. Mudança abrupta que chegou para ficar, apesar dos protestos dos que viam na decisão um flagrante desrespeito à ordem jurídica, ao texto da lei e à vontade do legislador. Desrespeito, em suma, aos princípios da separação dos poderes e do nullum crimen, nulla poena sine lege, verdadeiros dogmas do sistema implantado.

Quais os argumentos? Muito simples, responderia Merlin, procurador-geral junto à Corte de Cassação, no começo do Século XIX: "O código penal de 25 de setembro de 1791 é mudo sobre o duelo; e resulta bastante claramente de seu silêncio que o duelo não deve mais ser considerado como um delito que os tribunais possam perseguir" (MERLIN, Répertoire universal et raisonné de jurisprudence, IV, vº Duel. Paris: Garnery, 1808, p. 418). O mesmo raciocínio com relação ao Código Penal de 1810. Seus redatores, seguindo a linha de pensamento da assembléia constituinte, se teriam curvado à realidade da ineficácia punitiva da legislação anterior. Com efeito, certos editos do Ancien Régime, apesar de sua severidade, teriam mesmo tornado mais freqüente a prática do duelo. Inútil contrariar preconceitos cujas raízes, de tão profundas, não hesitam a indicar o caminho que seguirá o homem de honra (MERLIN, Questions de droit, vº Duel, § 1, in BLANCHE, Antoine. Études pratiques sur le code pénal, IV. Paris: Imprimerie et librairie générale de jurisprudence, 1868, p. 520/521).

O procurador-geral Dupin, seu sucessor, no famoso arrazoado que contribuiu para a mudança de jurisprudência, em 1837, afirmava exatamente o contrário: "O código de 1810 está concebido com este espírito: ele pune o homicídio voluntário; ele consagra algumas exceções que não se aplicam ao duelo. Portanto, o duelo está compreendido em suas disposições repressivas" (DUPIN, in Répertoire Dalloz, XIX, vº Duel, note 1 au n. 106. Paris: Dalloz,1852, p. 291).

Era o que constava, em outras palavras, dos trabalhos preparatórios do Código. Monseignat, em sua exposição de motivos em nome da Comissão de Legislação, na sessão do Corpo Legislativo de 17 de fevereiro de 1810, esclarecia que o projeto não teria de "particularizar uma espécie, que está compreendida no gênero, de que fornece os caracteres". De qualquer forma, "a lei não poderia transigir com um preconceito tão absurdo" (MONSEIGNAT, in BLANCHE, Antoine, ob. cit., p. 534/535).

É o que basta. A paciente pesquisa da "vontade do legislador", capaz de resolver o enigma, somente convenceu, ao que parece, aos que já estavam predispostos a convencer-se, tanto em um quanto em outro sentido. Veja-se o desabafo de Valette, um desabafo que parece não ter dono, nem época, nem pátria: "Coisa extraordinária ! Num país onde se tem por máxima indiscutível que a lei penal deve ser aplicada segundo seu texto e sem interpretação extensiva, a mesma lei pôde servir, seja a absolver completamente o duelo, seja a colocá-lo no patamar dos mais odiosos crimes" (in CHAUVEAU et HÉLIE, Théorie du code pénal, I. Bruxelles: Bruylant-Christophe, 1858, note n. 3, p. 751).

A verdade é que nenhum critério objetivo teve força bastante para suscitar um quadro hermenêutico isento de dúvidas. Até mesmo o princípio da igualdade de todos perante a lei não poderia ser útil. Preceito formal, não indicava se a nova ideologia do grupo no poder pretendia a equiparação na impunidade nascente ou, pelo contrário, a igualdade na punição de um crime que persistia.

Houve resistência à nova doutrina da Corte de Cassação. A sorte do duelo teve que ser decidida ao sabor do vento e das circunstâncias, ao sabor da ideologia política, religiosa e filosófica dos que foram convocados a participar do litígio, em termos de acusação, defesa e julgamento.

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Sobre o autor
João José Caldeira Bastos

professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor de Direito Penal (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, João José Caldeira. Ensino crítico de Direito Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 557, 15 jan. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6195. Acesso em: 25 abr. 2024.

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