3. O entendimento de como se dá a relação entre Estado e Sociedade Civil em Marx e Novais
A marca forte do Liberal Estado de Direito para Jorge Novais é a separação entre Estado e Sociedade Civil, na qual convergem as esferas moral e econômica. O autor remete o estudo aos pensamentos clássicos de Adam Smith que dizem respeito a uma ordem natural cuja existência é confirmada pela livre iniciativa e pelo funcionamento espontâneo do mercado que por si só trazem a máxima vantagem para os indivíduos.
Ora, se o mercado é capaz de realizar sua própria regulação por intermédio de uma “mão invisível” cabe ao Estado não interferir no âmbito das relações econômicas privadas. É exigível a ação do Estado apenas no que tange à paz e a segurança interna. A atuação Estatal que extrapole os limites impostos pela nova realidade socioeconômica empreendida pela classe burguesa deriva de uma política interventora e, portanto, não aceita dentro do contexto histórico em análise.
Em que pese a defesa da não intervenção externa nas leis econômicas internas, a noção de Estado como ente protetor revela-se como verdadeira à medida que ao Estado é atribuída a capacidade de defender os indivíduos contra a opressão de quem quer que seja, assim como identificar e suprir as insuficiências do mercado.
Seguindo essa premissa, Novais acredita que o liberalismo clássico não opôs rígidas limitações à intervenção do Estado, cuja total neutralidade formal é característica do modo de dominação burguesa contra a exigência democrática e a favor da repressão instituída pelo Estado dos movimentos sociais por melhores condições de trabalho e distribuição de renda.
O capitalismo enquanto modo de produção marcado pela livre concorrência não pode prescindir da suposta imparcialidade do Estado ante aos interesses de classes globais a fim de que se garanta a autonomia reivindicada pela classe burguesa que então assume duplo posicionamento em relação ao Estado já que exige deste ações positivas para assegurar a liberdade de empresa, iniciativa e demais pressupostos do capitalismo concorrencial.
A fim de analisar as diferentes faces sob as quais se encontra configurada a separação Estado-Sociedade, Jorge Novais traz a exposição das ideias de Kant a respeito da tradicional dicotomia entre os temas moral e Direito. Segundo a visão kantiana compete ao Estado realizar a liberdade exterior a partir do exercício coativo do Direito que se erige como seu único fim.
A moral, como determinante da ação de cada homem e, portanto, representante da consciência individual, não deve sofrer ingerência ou coação comuns à máquina estatal cujos objetivos se concentram em realizar o bem comum e promover a felicidade dos súditos.
Ao Estado cabe garantir a manutenção da ordem jurídica e o estabelecimento de condições que assegurem a dignidade da pessoa humana detentora de autonomia individual e consequentemente moral.
Esse Estado Jurídico proposto por Kant representa uma fórmula universal racionalista que põe no centro dos interesses do Estado, alheio aos fins individuais e espirituais, a coexistência inevitável entre os homens. Para tanto, se admite a ideia de um contrato estabelecido segundo o qual cada homem abdica de sua liberdade selvagem para tornar-se dependente das leis derivadas de sua própria vontade.
Dando seqüência ao exame das teorias reveladoras da separação entre Estado e Sociedade sob diferentes prismas, Novais expõe os pensamentos de Wilhelm Von Humbolt sobre o tema. A necessidade de abstenção do Estado para a burguesia traduz-se não numa exigência racional como a defendida por Kant, e sim, num pressuposto fático fundamental cuja essência é estritamente política.
Essa tese caracteriza a visão de Humbolt que rejeita a atuação positiva do Estado, tendente a intervir de forma prejudicial no desenvolvimento da individualidade e personalidade humanas. Novais entende que o Estado de Direito inscrito nesse quadro teórico passa a ser limitado objetivamente e sua atuação reduz-se a assegurar a liberdade e propriedade individual. Aduzindo tal constatação às ideias anteriormente apresentadas, torna-se evidente a interligação das premissas ao ideal de proteção dos direitos e garantias individuais.
A separação entre Estado e Sociedade Civil manisfesta-se como consequência desta necessidade inevitável, oriunda do projeto burguês de racionalização e limitação do Estado, a fim de que este último não impeça a realização do ideal supremo de desenvolvimento das faculdades humanas e de sua individualidade por intermédio de uma irreversível dinâmica burocrática e favorável ao esmorecimento da iniciativa pessoal.
De Marx sobrevêm intensas críticas à sociedade civil e ao Estado, em especial ao Estado burguês capitalista. Marx tem por objetivo desmantelar a noção de “pacto social” ao demonstrar que o Estado serve para atender às necessidades e expectativas da classe dominante, assim como garantir a reprodução de sua dominação.
Para ele, o Estado representa uma forma de unificação interna da elite econômica que se vale da violência e da ideologia para se impor sobre o conjunto social. A legitimação de uma aparente separação entre Estado e sociedade tem por fim esconder a verdadeira relação entre ambos. Relação esta que se traduz pelo caráter intrínseco de sua natureza à ascensão e desenvolvimento da burguesia que, na prática, é quem comanda o Estado. Esse último, portanto, é resultado das relações das classes sociais e encontra nesse contexto sua razão de existência.
O que os filósofos e pensadores liberais fazem nada mais é do que ocultar a relação social de exploração entre as classes sociais, ao idealizarem um formato autônomo para o Estado. Dessa forma, opera a ideologia burguesa que tenta supor um Estado cuja lógica é distinta daquela encontrada na vida social.
No entanto, o que se pretende é perpetuar essa forma de organização tendo em vista que a burguesia, alcançadas suas reivindicações políticas e democráticas, age em relação direta com o Estado, orientando ideologicamente a consecução de suas atividades numa verdadeira relação motivada por interesses capitalistas individuais.
Tomando como exemplo a monarquia absolutista francesa, Marx constata em sua obra “O 18 Brumário de Luís Bonaparte” que o poder executivo, com seu mecanismo complicado e artificial, envolve todo o organismo da sociedade francesa. Ou seja, a densa e opressora organização burocrática e militar do Estado, ao mesmo tempo em que o separa da sociedade, permite que o poder da classe dominante seja expresso. Mais tarde, Lênin dirá que o Estado é a ditadura da burguesia.
4 O centro de poder do Estado para Lênin e a concepção de um Estado de Direito por Jorge Novais
Em 1917, Lênin inicia sua obra “O Estado e a Revolução”. O propósito original que lhe serviu de motivação foi restabelecer a concepção revolucionária de Marx e Engels a respeito do Estado. A noção de classe do Estado reaparece nos escritos de Lênin. Assim como Marx, o autor acredita que o Estado representa uma ditadura imposta por um único segmento social dominante, salvo breves momentos de relativo equilíbrio entre classes opostas.
O Estado é, portanto, uma “ditadura de classe”. Ainda que sejam adotadas formas e sistemas democráticos de governo, o Estado sempre constituirá na máquina repressora identificada por Marx, cujo exercício do poder se dá em nome de uma minoria detentora dos meios de produção em detrimento da grande massa trabalhadora. Nesse contexto, a república parlamentar forja as condições necessárias para a dominação capitalista através da construção de um cenário que se supõe livre e democrático, ao menos no plano formal.
Desse modo, Lênin amplia o significado da palavra ditadura ao considerar também como tal o poder opressor instituído sob o manto protetor das leis. Defende-se então a ditadura do proletariado como manisfestação da maioria insurreta contra o factóide democrático sustentado pela minoria, ou seja, a burguesia.
A liberdade política e os demais pressupostos teóricos pertencentes à democracia burguesa realizam-se no terreno dos fatos à medida que o poder é transferido para a classe dos trabalhadores, que até então não dispunham de meios para pôr em prática as prerrogativas que se lhes atribuía.
Lênin vai de encontro à ideologia social-democrata ao pregar a “quebra” do Estado a partir de seus três elementos reacionários: exército permanente, burocracia e polícia. Ao fenômeno de ruptura descrito se sucede a instalação de um Estado proletário até a extinção total dessa instituição.
Entretanto, em obra posterior intitulada “Conservarão os bolcheviques o poder Estatal?”, Lênin estabelece uma clara divisão entre os elementos da máquina estatal que considera importante destruir e aquilo que deve ser preservado, a saber, a estrutura do capitalismo monopolista de Estado.
Para Lênin, os grandes bancos representam papel fundamental na realização do socialismo por ele vislumbrado. É necessário, porém, que o aparelho econômico seja submetido a um processo autêntico de democratização. A proposta é reorganizar o Estado a partir da libertação de toda a estrutura do capitalismo monopolista de Estado do capitalismo.
O conceito de Estado de Direito é trazido do seguinte modo por Jorge Novais: “o Estado de Direito será, então, o Estado vinculado e limitado juridicamente em ordem à protecção, garantia e realização efectiva dos direitos fundamentais, que surgem como indisponíveis perante os detentores do poder e o próprio Estado.”[2]
Para o autor, a característica que determina a definição prática do Estado de Direito é a tutela, garantia e realização dos direitos fundamentais. Portanto, só será Estado de Direito aquele que estiver vinculado e limitado pelo Direito. A essência do Estado de Direito, portanto, é traduzida nos fins últimos objetivados com a submissão do Estado à Lei, a saber, o reconhecimento da autonomia dos indivíduos enquanto titulares de direitos subjetivos superiores e oponíveis ao próprio Estado e a ele anteriores.
Novais distingue o Estado Democrático do Estado de Direito à medida que considera características determinantes diferenciadas para ambos. Assim sendo, no Estado Democrático o foco não consiste na tutela dos direitos fundamentais e sim no exercício do poder político pelo povo, segundo a regra da maioria.
Essa mesma noção de maioria aparece em Lênin que, em sua obra o “Estado e a Revolução” de 1917, prega o definhamento do Estado de Direito como etapa para o aniquilamento do Estado burguês. Sob essa ótica de interpretação, avaliando o que para ele seria (porém não é) o centro de poder do Estado, chegamos a conclusão de que o elemento central é o proletariado, representante da maioria e não vinculado por nenhuma lei. Sua concepção crítica não se justifica no Estado de Direito como concebido por Novais, haja vista que este nasce estritamente vinculado ao rol dos direitos fundamentais e nele encontra seu limite.
Como fora dito antes, Lênin rechaça a concepção democrática liberal por constatar que se trata na realidade de um sistema opressor de dominação sobre a maioria imposta pela minoria burguesa. O poder é exercido pela classe dominante e não pela maioria. Pela interpretação que se faz dos escritos de Lênin a respeito da importância decisória, porém não reconhecida do proletariado, vemos que o autor entende que seria esta classe o autêntico titular e centro do poder do Estado a ser implantado após a destruição do Estado burguês.
Para tanto, é preciso partir da esfera teórica das leis formais, do típico Estado de Direito burguês, para a esfera da ação, do movimento revolucionário violento até a implantação do Estado Proletário caracterizado pela ditatura do proletariado.
Em contrapartida, considerando o conteúdo exposto nesse último título, identificamos, em sua crítica a respeito do Estado burguês, o destaque dos elementos que constituem à sua época (e aqui, para ele, não seria, mas é) o aparelho de centralização do poder do Estado: o exército permanente separado do povo, profissionalizado; a burocracia e a polícia.[3]
Notas
[1] GRUPPI, Luciano. Tudo Começou com Maquiavel; tradução de Dario Canali. 14ª. Ed. – Porto Alegre:L&PM, 1996.
[2] NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de Direito. Coimbra: Almedina, 2006. p.26.
[3] GRUPPI, Luciano. Tudo Começou com Maquiavel; tradução de Dario Canali. 14ª. Ed. – Porto Alegre: L&PM, 1996. pg. 61