INTRODUÇÃO
No presente trabalho procurarei justificar o motivo pelo qual nosso Estado Democrático de Direito, nossa República, o Poder Judiciário, a nação, enfim, a cidadania e os necessitados deste país, somente terão a ganhar com a inclusão do Defensor Público-Geral da União como mais um dos legitimados ativos a provocar a jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal, no exercício do controle concentrado de constitucionalidade das leis e atos normativos do país.
O CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE
Antes de qualquer coisa, cabível aqui uma singela exposição do atual estado da técnica, da doutrina constitucional brasileira, no tocante ao controle concentrado de constitucionalidade das leis e atos normativos.
O controle de constitucionalidade está intimamente ligado às idéias de supremacia e de rigidez constitucional. Ou seja, a norma é fundamental a partir do momento que é expressa, formalmente posta, e que não pode ser modificada, a não ser através de um mecanismo especial, mais dificultoso e expresso nela mesma, devendo, ademais, todo o ordenamento jurídico inferior estar, formal e materialmente, em conformidade com suas prescrições.
Divide-se dito controle em difuso e concentrado.
Diz-se difuso o controle de constitucionalidade exercido por todos os juízes do país, incidenter tantum, como causa de pedir e a única ou apenas mais uma das questões (quiçá a mais importante) a serem solvidas na análise e final composição do litígio. Depende, pois, da existência de uma lide e somente em razão dela emergirá.
Mas, para fins do presente artigo, abordarei de forma mais detida a outra modalidade de controle, o controle concentrado.
Através do controle concentrado procura-se obter a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual em tese; a declaração de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; ou, finalmente, a intervenção para garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação ou para assegurar a observância de princípios constitucionais sensíveis; todos, em tese, independentemente da existência de um litígio ou caso concreto, por via de pedido principal em uma ação direta.
Por demais conhecida sua importância para a vida jurídica, política e social do país.
O controle concentrado é de competência originária do Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário, dividindo-se, quanto à modalidade de provocação, em: 1) ação direta de inconstitucionalidade genérica (artigo 102, inciso I, alínea a, da Constituição); 2) ação direta de inconstitucionalidade interventiva (artigo 36, inciso III, da Constituição); 3) ação direta de inconstitucionalidade por omissão (artigo 103, §2o, da Constituição); e 4) ação declaratória de constitucionalidade (artigo 102, inciso I, alínea a, in fine, da Constituição).
A mais conhecida destas modalidades é, inegavelmente, a ação direta de inconstitucionalidade dita genérica.
Tem por objetivo, e pedido único, a retirada de nosso ordenamento jurídico de lei ou ato normativo contaminado pelo vício da inconstitucionalidade, assim entendida como a desconformidade formal ou material da norma com o texto constitucional.
A Constituição de 1988 instaura um regime político democrático no Brasil, com indiscutível avanço na consolidação legislativa das garantias e direitos fundamentais e na proteção dos setores vulneráveis da sociedade brasileira. Podemos notar, nesta linha de princípios, que, diferentemente dos regimes anteriores (Constituições de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967/69), onde, ou não se previa a modalidade, ou a iniciativa da provocação era de iniciativa exclusiva do Procurador-Geral da República (1), a atual "Constituição-cidadã" ampliou consideravelmente o rol dos legitimados a propô-la, conforme especifica seu artigo 103:
Art. 103. Podem propor a ação de inconstitucionalidade:
I- o Presidente da República;
II- a Mesa do Senado Federal;
III- a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV- a Mesa de Assembléia Legislativa;
V- o Governador de Estado;
VI- Procurador-Geral da República;
VII- o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII- partido político com representação no Congresso Nacional;
IX- Confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Mas nem todos os legitimados, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, teriam "interesse genérico" na preservação da supremacia constitucional sobre todas as leis e atos normativos.
Reconhece-se tal legitimação, unicamente, ao Presidente da República, ao Procurador-Geral da República, às Mesas do Senado e da Câmara dos Deputados, aos partidos políticos e ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, pois os mesmos teriam tal "interesse genérico" em preservar a supremacia da Constituição por força de suas próprias atribuições institucionais. É o que a doutrina costuma chamar de "legitimação transcendental".
Todos os demais (Governadores, Mesas das Assembléias, Confederações sindicais e entidades de classe de âmbito nacional) deverão comprovar "relação de pertinência" entre o ato impugnado e as funções exercitadas pelo órgão ou entidade; adequação às finalidades legais ou estatutárias. É o que a doutrina chama de "pertinência temática".
Segundo dados do próprio Supremo Tribunal Federal (2), no ano de 1988, após, claro, a promulgação da nova Constituição, foram distribuídas 11 (onze) ações diretas de inconstitucionalidade, ao passo que, nos anos seguintes, a estatística aumenta assustadoramente: em 1989, 158 (cento e cinqüenta e oito) foram as ações distribuídas; em 1990 atingimos a casa das 255 (duzentas e cinqüenta e cinco); em 1991 o número foi de 233 (duzentas e trinta e três), em 2003 um recorde, chegou-se à casa das 306 (trezentos e seis) ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas.
Ao contrário, apesar da inexistência, ao menos de meu conhecimento, de estatísticas sobre o período anterior a 1988, não é difícil imaginar que o controle concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal quase não foi exercitado.
Por aí vemos que, com a legitimação para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade genérica substancialmente ampliada, aumentou-se também, e muito, a utilização do mecanismo.
Mas do rol acima citado notamos, sem embargo, a ausência de uma figura importantíssima: o Defensor Público-Geral da União.
E razões não faltam para lamentarmos tal estado de coisas.
O PERFIL CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA
Conforme a Constituição, a Defensoria Pública, como instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbida da orientação jurídica e da defesa, em todos os graus, dos necessitados (artigo 134), dá pleno cumprimento ao dever do Estado brasileiro em prestar um serviço público essencial: a assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovem insuficiência de recursos (artigo 5o, inciso LXXIV).
Entretanto, com raras exceções (como o Rio Grande do Sul, o Rio de Janeiro e o Mato Grosso do Sul), a maioria dos Estados e a União ainda são renitentes no descumprimento da Constituição e da Lei Complementar n. 80, de 12 de janeiro de 1994.
Nos entes federados que criaram suas Defensorias Públicas, a instituição ainda carece de infra-estrutura material e de pessoal adequada, autonomia orçamentária e a necessária independência em relação ao Poder Executivo.
Por incrível que possa parecer, os Estados de São Paulo, Santa Catarina e Goiás sequer criaram suas Defensorias Públicas, descumprindo às escâncaras a Constituição da República e suas próprias Constituições Estaduais.
Veja-se que o perfil constitucional da Defensoria Pública é o mesmo que foi conferido ao Ministério Público, de instituição essencial à função jurisdicional do Estado (artigo 134).
Não está a Defensoria Pública atrelada a nenhum dos Poderes, pois verdadeiramente, sem querermos aqui sustentar a inusitada tese de "Quarto Poder", tem status constitucional de Função Essencial à Justiça (Título IV, Capítulo IV, Seção III, da Constituição).
De sua vez, a citada Lei Complementar n. 80, de 12 de janeiro de 1994, em seu artigo 3º, estabelece como princípio institucional da Defensoria Pública a independência funcional. Logo, tal independência atinge tanto a Defensoria Pública como instituição, quanto cada um dos seus membros, enquanto agentes políticos do Estado.
Logo, não se justifica que hoje, por exemplo, a Defensoria Pública da União seja mero órgão vinculado do Ministério da Justiça, sem orçamento próprio e sem gestão administrativa, financeira e de pessoal, assim conferidos pelo artigo 8º, inciso XIII, da citada Lei Complementar.
Em breves palavras, podemos apontar, pelo menos, três grandes razões para esta anomia (3) Estatal.
A primeira delas é de ordem macroeconômica. Desde a década de oitenta os países capitalistas ricos começaram a forjar as bases teóricas do que hoje se convencionou denominar "neoliberalismo". Deste movimento surgiu a concepção de um "Estado-mínimo", fundado na premissa de que à máquina governamental compete, exclusivamente, a prestação dos serviços públicos ditos indelegáveis ou típicos do Estado.
Ocorre que, num país periférico como o nosso, a imposição das idéias do neoliberalismo sofreu uma corruptela (propositadamente ou não). O "Estado-mínimo" praticado hoje pelo Brasil indica um "Estado-máximo" em sua arrecadação (a carga tributária brasileira, segundo recentes pesquisas, corresponde a 35% de nosso PIB) e "mínimo" na prestação de serviços públicos; tudo isto visando à obtenção de sucessivos superávites primários para pagamento de nossa dívida externa.
Nesta linha se insere o serviço público prestado pela Defensoria Pública: a assistência jurídica gratuita. Se até hoje, passados 9 (nove) anos de sua criação, o "Estado-mínimo" não estruturou definitivamente, por exemplo, a Defensoria Pública da União, talvez considere, ao contrário da Constituição, que os serviços que presta não sejam típicos do Estado, ou, pior, que os mesmos possam vir a onerar o orçamento público, comprometendo a geração dos superávites.
Uma segunda razão seria o desenvolvimento científico conseguido pela instituição Defensoria Pública nos últimos 30 anos. Como ninguém foi capaz de contradizê-lo, prefere-se ignorar a instituição, numa lógica perversa de esquecimento propositado. Não se discute a Defensoria Pública porque inexiste um argumento lógico que venha a impedir sua efetiva implantação, logo, retira-se o assunto das pautas de discussão pública.
Fortalecer a Defensoria Pública é fortalecer, em última análise, seu destinatário final: o cidadão necessitado, os excluídos da nação. A lógica, não declarada, é de enfraquecimento e aviltamento de uma instituição que tem um enorme papel transformador, reduzindo o domínio que exercem as elites econômicas sobre os desinformados e despreparados.
Finalmente, como terceira razão, talvez a mais perversa delas, constato que o descaso com a Defensoria Pública vem refletir, mesmo que inconscientemente, um descaso com os excluídos deste país.
Para os pobres tudo pode ser postergado, improvisado, mal prestado. Como os destinatários finais da instituição são os pobres, tal descaso é direcionado à instituição, daí porque, exemplificativamente, passados 9 (nove) anos desde sua implantação em caráter emergencial e provisório pela Lei n. 9.020, de 30 de março de 1995, a Defensoria Pública da União ainda não se encontre definitivamente estruturada.
O PAPEL TRANSFORMADOR DA DEFENSORIA PÚBLICA
Nunca é demais lembrar do papel transformador das Defensorias Públicas no cumprimento dos objetivos fundamentais de nossa República: construção de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3o, inciso I, da Constituição); erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais e regionais (inciso III); e, promoção do bem de todos (inciso IV).
Preocupa a idéia de uma Defensoria Pública forte, independente e transformadora, capaz de exercer com altivez sua missão constitucional, livre de ingerências políticas (4).
Segundo PAULO GALLIEZ (5):
"A Defensoria Pública é, sem dúvida alguma, o grande baluarte do Estado de Direito, pois sua função precípua é a de neutralizar o abuso e a arbitrariedade emergentes da luta de classes.
Em tais situações, a classe economicamente dominante tenta impor, mesmo pela violência, a preservação de seus supostos direitos, contanto, para isso, com a inevitável desproporção de forças em relação aos oprimidos.
Para tanto torna-se imprescindível combater tamanha intolerância, verdadeiro simulacro de poder político, incompatível com o regime democrático contemporâneo, considerando que, do ponto de vista histórico, é comum a esse mesmo poder procurar desestabilizar a ordem pública e fazer surgir os regimes de força.
No sentido de manter o equilíbrio, pelo menos em relação ao aspecto jurídico, entre os ‘donos do poder’ e os oprimidos, é que a Defensoria Pública se impõe como instituição essencial do Estado de Direito, a fim de enfrentar o desenvolvimento desigual entre as classes sociais, valendo a advertência de Octavo Ianni de que o desenvolvimento desigual e combinado não é uma teoria do acaso, mas um modo particular de funcionamento das leis do capitalismo nas sociedades atrasadas e dependentes.
Assim, a expressão ‘Estado de Direito’ não se limita apenas ao aspecto formal contido na norma jurídica, mas, essencialmente, ao seu sentido social, porque o direito, combinado com a estrutura econômica do qual se origina deve atender, indiscriminadamente, aos interesses de toda a comunidade.
Nesse segmento lógico surge a Defensoria Pública, guardiã ímpar do progresso humanitário, para aconselhar, postular e defender os direitos daqueles que, em termos de América Latina, se costuma designar como Los olvidados."
A transcrição, apesar de longa, é desenvolvida de forma inigualável, fazendo-nos refletir do porque de admitirmos, por exemplo, pelo texto da "Constituição-cidadã" (artigo 103, inciso IX), que uma Confederação Nacional do Sistema Financeiro – CONSIF, entidade de classe representativa das instituições financeiras, um segmento notadamente privilegiado da sociedade, pertencente à classe econômica e verdadeiramente dominante ("donos do poder"), possa ajuizar ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, defendendo interesse corporativo, como por exemplo a não aplicação do Código de Proteção e Defesa do Consumidor às atividades bancárias (ver ADIN n. 2591/DF), e os necessitados deste país, carentes de cidadania e justiça social, sem qualquer capacidade, salvo raras exceções, de organizar-se associativamente, quanto mais em "âmbito nacional", não consigam movimentar em seu favor o sistema de controle concentrado de constitucionalidade das leis e atos normativos.
Por que tamanha desproporção de forças?
LEGITIMAÇÃO DO DEFENSOR PÚBLICO-GERAL DA UNIÃO
Daí surge a idéia de legitimar o Defensor Público-Geral da União como mais um dos agentes a poder impulsionar a jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal, no exercício do controle concentrado de constitucionalidade das leis e atos normativos do país.
Vale dizer então o seguinte.
Em primeiro lugar, não teria o Defensor Público-Geral da União o mesmo status constitucional do Procurador-Geral da República, do Advogado-Geral da União e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil?
Ora, o Ministério Público está elencado na Seção I (Do Ministério Público), do mesmo Capítulo IV (Das Funções Essenciais à Justiça), do Título IV (Da Organização dos Poderes), da Constituição, tendo o Procurador-Geral da República como seu Chefe no plano federal (artigo 128, §1o).
De sua sorte, a Advocacia Pública está elencada na Seção II (Da Advocacia Pública), do mesmo Capítulo IV (Das Funções Essenciais à Justiça), do Título IV (Da Organização dos Poderes), da Constituição, tendo o Advogado-Geral da União por Chefe no plano federal (artigo 131, §1o).
O Conselho Federal é o "órgão supremo" da Ordem dos Advogados do Brasil (artigo 45, §1o, da Lei n. 8.906, de 4 de julho de 1994), que, por seu turno, é uma corporação pública ou corporação de direito público (6), que tem por finalidade precípua "impor aos advogados o cumprimento das obrigações legais e regulamentares" (artigo 44 do citado diploma), advogados estes, por sua vez, que têm assento na mesma Seção III (Da Advocacia e da Defensoria Pública), do Capítulo IV (Das Funções Essenciais à Justiça), do Título IV (Da Organização dos Poderes), da Constituição.
E a Defensoria Pública é regulada na Seção III (Da Advocacia e da Defensoria Pública), do Capítulo IV (Das Funções Essenciais à Justiça), do Título IV (Da Organização dos Poderes), da Constituição, tendo o Defensor Público-Geral da União, no plano federal, como seu dirigente máximo (artigo 6o da Lei Complementar n. 80, de 12 de janeiro de 1994).
Costuma-se classificar, assim, as Funções Essenciais à Justiça em "ministério privado" (exercido pelos advogados) e "ministério público" (exercido pelo próprio Ministério Público, pelos Advogados Públicos e pelos Defensores Públicos).
Estas últimas categorias de agentes políticos, em seu "ministério público", também poderiam ser vistas como "procuraturas constitucionais" (7), servindo, pois, como Funções Essenciais à Justiça e porque Funções Essenciais à Justiça, a movimentar a máquina da Justiça, quebrando-lhe a inércia característica e necessária, sendo que Ministério Público, Advocacia Pública e Defensoria Pública seriam faces distintas de uma mesma moeda, especializando-se, cada qual, pela "advocacia dos interesses da sociedade" (Ministério Público), "advocacia dos interesses do Estado" (Advocacia Pública propriamente dita) e "advocacia dos interesses dos necessitados" (Defensoria Pública) (8).
Novamente voltamos a indagar: se o Procurador-Geral da República, Chefe no plano federal de uma das Funções Essenciais à Justiça, está legitimado a propor ação direta de inconstitucionalidade genérica, ação direta de inconstitucionalidade interventiva, ação direta de inconstitucionalidade por omissão e ação declaratória de constitucionalidade, por que o Defensor Público-Geral da União, Chefe, no plano federal, de uma das Funções Essenciais à Justiça, não deveria estar?
Além. Se o Advogado-Geral da União, Chefe no plano federal de uma das Funções Essenciais à Justiça, está legitimado a participar, no controle concentrado de constitucionalidade de leis e atos normativos, como defensor do ato ou texto impugnado, por que o Defensor Público-Geral da União, Chefe no plano federal de uma das Funções Essenciais à Justiça não deveria também participar deste controle?
Finalmente, para este argumento, se o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, órgão supremo de uma corporação pública de fiscalização de uma da das Funções Essenciais à Justiça, está legitimado a propor ação direta de inconstitucionalidade genérica e ação direta de inconstitucionalidade por omissão, por que o Defensor Público-Geral da União, Chefe no plano federal de uma das Funções Essenciais à Justiça, não deveria integrar o rol desses legitimados?
A pergunta não cala justamente porque o Constituinte, quero crer que por omissão não dolosa, violou um dos mais antigos, básicos e gerais princípios do direito: a isonomia, o tratar igualmente os iguais.
Em segundo lugar, e principalmente, voltando ao paradoxo exposto no item anterior, devem os necessitados deste país, carentes de cidadania e justiça social, passar a gozar de uma forma eficaz de movimentar em seu favor o sistema de controle concentrado de constitucionalidade das leis e atos normativos.
E porque não através da instituição Defensoria Pública, que tem por função típica e precípua, justamente, a prestação de assistência jurídica gratuita aos necessitados? Esta seria mais uma forma de garantir-lhes uma nova modalidade de acesso à Justiça, o "acesso à Justiça constitucional".
Mas já antevejo, destarte, argumentos contrários a esta legitimação. Em especial, diriam alguns, a inclusão do Defensor Público-Geral da União seria desnecessária, uma cumulação ou sobreposição indevida às relevantes atribuições do Procurador-Geral da República.
Argumentariam: ora, se o Procurador-Geral da República é Chefe, no plano federal, do Ministério Público, e se este mesmo Ministério Público tem por missão institucional defender a sociedade, obviamente os necessitados, por integrarem a sociedade, já teriam como movimentar em seu favor, através do Procurador-Geral da República, o sistema do controle concentrado de constitucionalidade.
Mas o argumento peca por quatro principais aspectos.
A uma, é evidente que os necessitados seriam parte do todo, integrando, ao menos no plano abstrato da definição, o conceito de sociedade, de "estrutura formada pelos grupos principais, ligados entre si, considerados como uma unidade e participando todos de uma cultura comum" (FICHER apud LAKATOS, Eva Maria. Sociologia Geral. São Paulo:
Atlas, 1995).
Todavia, sabemos que a realidade é mais dura. Os necessitados deste país não são reconhecidos sequer como nossos semelhantes e como sujeitos de direitos, não podendo, pois, participar de forma estável do processo econômico e sem a possibilidade de alcançar mobilidade vertical ascendente. São verdadeiros marginalizados, achando-se impedidos de participar plena e legitimamente do grupo social.
Logo, ressente-se a idéia em sua premissa básica.
A duas, um argumento de ordem prática. É humanamente impossível ao Chefe do Ministério Público da União, pela gama enorme de relevantes atribuições (9), inclusive como órgão de execução do Ministério Público perante o Supremo Tribunal Federal (10) e Superior Tribunal de Justiça (11), dar conta de todas as questões que lhes chegam às mãos diariamente, requerendo, inúmeras vezes, sua urgente e a mais pronta atuação.
Por exemplo, o Procurador-Geral da República demorou exatos 1 (um) ano, 2 (dois) meses e 17 (dezessete) dias (12) para ingressar com ação direta de inconstitucionalidade genérica para questionar a restrição que o art. 20, §3o, da Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993 (Lei Orgânica da Assistência Social), a pretexto de regulamentar o conceito de "família incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa", impôs ao do artigo 203, inciso V, da Constituição (ver ADIN 1.232/DF).
Desnecessário lembrarmos que da correta aplicação e interpretação do artigo 203, inciso V, da Constituição dependiam, há época, os milhões e milhões de brasileiros idosos e portadores de necessidades especiais que viviam abaixo da linha de pobreza (13), vez que tal dispositivo garante "um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei".
Nestes casos, a descentralização da legitimação, tornando-a cada vez mais concorrente-disjuntiva, além de coadunar-se com o viés democrático e pluralista da Constituição, também viria propiciar a mais rápida provocação do controle concentrado de constitucionalidade. Ou seja, o legitimado que primeiro atentasse para a violação "em tese" do ordenamento constitucional, ou que recebesse primeiro uma representação neste sentido, trataria de quebrar a inércia do Supremo Tribunal Federal, acelerando o conhecimento da matéria.
Em terceiro lugar, hipóteses também há em que, por força de peculiaridades da própria instituição Ministério Público, por exemplo, como titular da ação penal (14), a identificação de violações ao ordenamento constitucional, com a conseqüente movimentação do controle concentrado, seja um tanto quanto dificultada.
Na seara acima apontada, do direito penal, a visão institucional do Ministério Público tende a ser um pouco mais conservadora, o que poderia irradiar efeitos, até mesmo, para o Procurador-Geral, que, como sabido, só pode ser escolhido dentre os membros da carreira.
Pergunta-se: quantas foram as ações diretas de inconstitucionalidade de leis e atos normativos propostas pelo Procurador-Geral da República em matéria penal?
Sabido que o sistema penal continua, na cartilha neoliberal dos dias atuais, privilegiando os mesmos "donos do poder", que têm condições de ter advogados pagos. Os necessitados, é certo, maioria dos que se sujeitam ao processo penal, sofre uma nova agressão dentro dessa seletividade econômico-social, que enfim caracteriza os Estados periféricos:
"Por mais que procure
aplicar a lei de maneira uniforme, submetendo indistintamente toda a população
a seu rigor, o sistema penal tende a privilegiar os interesses da classe
dominante. Com acerto, acrescenta o Professor Zaffaroni que, conquanto o Estado
de Direito requeira, entre outras condições básicas, a absoluta submissão de
todos os seus habitantes à lei, qualquer que seja a posição social que ocupem
e a função que desempenhem, na realidade ‘múltiplos são os casos
demonstrativos de que os poderosos só são vulneráveis ao sistema penal
quando, em uma luta que se processa na cúpula hegemônica, colidem com outro
poder maior que consegue retirar-lhes a cobertura de invulnerabilidade. Do ponto
de vista de nossa região marginal não há razão alguma para se crer que seja
menos utópico um modelo de sociedade no qual não existe invulnerabilidade
penal para os poderosos do que um modelo de sociedade no qual seja abolido o
sistema penal.’" (MARCHI
JÚNIOR, Antonio de Pádova. Abolicionismo Penal. Direito Penal.
Disponível na rede internet em:
A questão transborda a ótica do direito positivo e passa para o campo do perfil institucional.
Evidente que os Defensores Públicos, que têm contado diário com a legião de necessitados deste país, muitos deles submetidos a um processo penal, tendem a possuir visão mais crítica do sistema penal e das leis penais deste país, repetimos, por força da própria atribuição institucional de patrocinar defesa em ação penal (15).
O Defensor Público-Geral da União, portanto, tendo em vista o perfil de sua própria instituição, tenderia a reforçar, em nível constitucional, o debate de teses neste campo do saber jurídico, colaborando para que o Supremo Tribunal Federal possa chegar a uma síntese, a decisão mais justa.
Em quarto e último lugar, casos haverá que a edição de uma lei ou ato normativo possa vir a atender aos anseios de grande parte da sociedade, até mesmo à esmagadora maioria dela, mas não os interesses específicos dos necessitados.
Avento a seguinte hipótese: uma lei passa a impedir a pesca do caranguejo em rede miúda nas regiões de estuário de mangue, colaborando para o equilíbrio ecológico do meio ambiente. A comunidade ribeirinha prejudicada representa ao Procurador-Geral da República para o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade, tendo em vista a total supressão legal dos direitos à vida, à subsistência e ao trabalho. Atento às questões ambientais e aos interesses sociais da maioria da população beneficiária da medida, o Procurador-Geral arquiva o caso.
Os prejudicados, assim, poderiam perfeitamente representar ao Defensor Público-Geral da União, que, atento aos interesses dos necessitados por missão institucional, poderia levar a questão ao Supremo Tribunal Federal e este, então, faria a necessária ponderação de interesses, decidindo a questão constitucional.
Finalmente, é bom que se diga, muitos dos legisladores constituintes estaduais, apercebendo-se da relevância do tema, fizeram constar de suas Constituições Estaduais que os Defensores Públicos-Gerais do Estado teriam legitimidade para provocar o controle concentrado de leis e atos normativos estaduais ou municipais. Exemplificativamente, citemos a Constituição do Estado do Rio de Janeiro:
Art. 162. A representação de inconstitucionalidade de leis ou de atos normativos estaduais ou municipais, em face desta Constituição, pode ser proposta pelo Governador do Estado, pela Mesa, por Comissão Permanente ou pelos membros da Assembléia Legislativa, pelo Procurador-Geral da Justiça, pelo Procurador-Geral do Estado, pelo Defensor Público Geral do Estado, por Prefeito Municipal, por Mesa de Câmara de Vereadores, pelo Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil, por partido político com representação na Assembléia Legislativa ou em Câmara de Vereadores, e por federação sindical ou entidade de classe de âmbito estadual.
Mas ainda há tempo, em benefício principal dos necessitados deste país, de corrigimos a omissão.