Em 19 de dezembro de 2017, diversos meios de comunicação[3]-[4]-[5]-[6]-[7]-[8]-[9] divulgaram a notícia de que o Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, teria proibido condução coercitiva de investigados em todo o país. A decisão, proferida em sede de Medida Cautelar, “ad referendum do tribunal”, no bojo arguição de descumprimento de preceito fundamental – ADPF de nº 444/DF, vedou, em todo o território nacional:
[...]a condução coercitiva de investigados para interrogatório, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de ilicitude das provas obtidas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.
Impõe-se consignar, por relevante, que, ao deferir a medida cautelar, o Ministro Gilmar Mendes foi taxativo ao afirmar que o pleito cautelar dizia respeito, apenas, às conduções coercitivas levadas a efeito no âmbito da primeira fase da “persecutio criminis”, ou seja, em sede de investigações criminais. Bem por isso, destaque-se, valeu-se da expressão “investigados”, e não “réus” – aqueles que têm sobre si uma acusação já passada pelo juízo de admissibilidade, do art. 395, do Código de Processo Penal.
A propósito, em sede de esclarecimentos, o eminente Ministro fez questão de destacar que “o emprego não especificado da expressão ‘condução coercitiva’ doravante neste voto fará referência ao objeto da ação – condução do imputado para interrogatório”, evidenciando, à margem de qualquer dúvida, que, ao menos por ora, o que se proíbe é a condução coercitiva em sede de investigações criminais.
Malgrado a restrição inicial explicitada na cautelar, ressaltou que ADPF nº 395 visa, no mérito, à declaração da não recepção parcial do artigo 260, do Código de Processo Penal, na parte em que permite a condução coercitiva do (i) investigado – em sede de investigações criminais – ou do (ii) réu – no bojo do processo judicial propriamente dito – para a realização de interrogatório, bem como a (iii) declaração da inconstitucionalidade do uso da condução coercitiva como medida cautelar autônoma, com a finalidade de obtenção de depoimentos de suspeitos, indiciados ou acusados em qualquer investigação de natureza criminal.
Pois bem.
De início, assenta-se que as trinta e cinco páginas da fundamentada decisão pareciam indicar um decisum autofágico ou, como preferem alguns, suicida, na medida em que seu proêmio contradizia, pelo menos a priori, a sua conclusão.
Assim se argumenta, porquanto, na ótica do Ministro Gilmar Mendes, a condução coercitiva não ofende o (i) direito à não autoincriminação, uma vez que “que o conduzido é assistido pelo direito ao silêncio e ao direito à respectiva advertência”, de modo que “só há potencial autoincriminação se o interrogado optar por falar, mesmo após advertido do direito ao silêncio”.
Nesse contexto, partindo da premissa que “Cabe à defesa decidir por falar ou calar”, o fato de “Submeter o investigado a interrogatório não é, por si só, uma violação ao direito à não autoincriminação”. Dessa forma, fulcrado nessas premissas, quanto à vedação à autoincriminação, corolário do “nemo tenetur se detegere”, assentou o Ministro “que não há violação, nem ao menos potencial, ao direito à não autoincriminação”.
Ao prosseguir em sua extensa fundamentação, no tocante à tese do (ii) direito ao tempo necessário à preparação da defesa, em apertada síntese, observou que “Investigados e réus não têm a prerrogativa de definir o momento em que serão interrogados”, assim como:
Na investigação, não há uma acusação formada. O investigado não tem o ônus de preparar defesa, na medida em que não está enfrentando uma acusação. Pode intervir nas investigações, dando sua versão dos fatos, oferecendo razões, etc. Mas essa intervenção não equivale a uma defesa. Não há prazo de preparação para o inquérito policial.
Alegou-se, ainda, como tese, o (iii) direito ao devido processo legal. Nessa parte, porém, o preclaro Ministro, fazendo uma série de ponderações, assim se posicionou:
Se existe o poder geral de cautela, a condução coercitiva seria possível mesmo sem aguardar a ausência anunciada da testemunha. Se não, seria imprescindível aguardar o fracasso do julgamento. A existência ou não de um poder geral de cautela no processo penal decidirá se o juiz pode abandonar o rito legal, em situações excepcionais, ou se está completamente amarrado pelo rito legal. Muito embora essa cogitação seja de relevância, o caso pode ser resolvido por outras vias. Por essa razão, ao menos no atual estágio da nossa compreensão sobre a tipicidade dos atos processuais, tenho que não deve ser afirmada potencial violação ao direito ao devido processo legal.
Vencida a tese supra, abordou-se, outrossim, a questão do (iv) direito à imparcialidade, à paridade de armas e à ampla defesa. Para refutar tais fundamentos, destacam-se trechos nos quais o Ministro Gilmar Mendes sustentou que “A imparcialidade não é violada pela atuação do juiz. Pelo contrário, é a imparcialidade do magistrado que garante a liberdade contra intromissões indevidas”.
Com efeito, de leitura progressiva do decisum, tem-se, aprioristicamente, a (equivocada) sensação de que o Ministro posicionar-se-ia favoravelmente à famigerada condução coercitiva, porquanto, à primeira vista, fundamentos relevantes haviam sido rejeitados pelo eminente julgador. Observe-se que da decisão de trinta e cinco páginas, até a vigésima sétima, o que se viu foi o afastamento de todas as teses contrárias à famigerada condução coercitiva até então aduzidas.
Entrementes, ao rumar para as páginas derradeiras da decisão, na vigésima oitava lauda, mais precisamente, quando da análise da violação ao (v) direito à liberdade de locomoção, o Ministro da Suprema Corte, de plano, observou que, diferentemente “dos preceitos anteriores, a liberdade de locomoção é vulnerada pela condução coercitiva”.
No mesmo sentido, ao se manifestar sobre a (vi) presunção de não culpabilidade, destacou que “A restrição temporária da liberdade mediante condução sob custódia por forças policiais em vias públicas não são tratamentos que normalmente possam ser aplicados a pessoas inocentes”.
Ao dar uma guinada decisória – esperada, frise-se –, deixando clara a violação dos direitos à liberdade de locomoção, bem assim à presunção de não culpabilidade, o Ministro Mato-grossense passou à explicitação do porquê da recepção (ou não), pela Carta Magna de 1988, do instituto da condução coercitiva.
Veja-se que, em sua decisão, encampou a tese de há muito sustentada por parte da doutrina, segundo a qual não faria qualquer sentido lógico obrigar-se o suspeito a deslocar-se até uma delegacia para, ao lá chegar, manter-se em silêncio.
A propósito, nesse mesmo sentido, o consagrado Delmanto Jr., muito antes da decisão sob enfoque, já lecionava que
Tampouco existe embasamento legal, a nosso ver, para a sua condução coercitiva com fins de interrogatório, prevista no art. 260 do CPP, já que de nada adianta o acusado ser apresentado sob vara e, depois de todo esse desgaste, silenciar. Se ele não atende ao chamamento judicial, é porque deseja, ao menos no início do processo, calar. Ademais, a condução coercitiva ‘para interrogatório’, daquele que deseja silenciar, consistiria inadmissível coação, ainda que indireta.[10]
Na mesma linha intelectiva, Alexandre Morais da Rosa e Michelle Aguiar, em interessante artigo, intitulado “Qual o regime da condução coercitiva no processo penal do espetáculo?”, sustentam que:
Ninguém faz com que outra pessoa seja deslocada do local em que se encontra para permanecer em silêncio, porque ao se optar pelo silêncio, tem-se a mesma consequência de que se o investigado não comparece ao ato previsto em lei: exercício de autodefesa manifestada através da opção por não falar, ou seja, desdobramento direto do princípio da ampla defesa concretizada através da vontade do acusado de não se auto incriminar.[11]
Ora, não se pode conceber, num Estado Democrático de Direito, que se obrigue um cidadão, presumidamente inocente, a deslocar-se, por exemplo, até a autoridade policial para, em lá chegando, dizer que valer-se-á de seu direito de silêncio, de guarida constitucional. Tal ferramenta não é só ilógica, mas, sobretudo, incompatível com os postulados da Carta Magna, bem assim dos tratados internacionais[12] dos quais o Brasil é signatário e que se sobrepõem à legislação infraconstitucional, que é o caso do artigo 260, do Código de Processo Penal.
A condução coercitiva é, a toda evidência, completamente incompatível com espírito da Carta Política de 88. No entanto, não fosse o bastante a inadequação constitucional intrínseca ao instituto, o modo com o qual as autoridades públicas o utilizam acaba por maximizar – por incrível que pareça! – seus efeitos deletérios. Isso porque, a despeito da inafastável ineficácia jurídico-probatória, seu emprego, tal como vem ocorrendo, só fortalece a odiosa espetacularização do já criticado “processo penal midiático”.
Portanto, ao encampar a corrente doutrinária que de há muito sustenta a insofismável incompatibilidade do instituto da condução coercitiva com o texto constitucional, defendida, entre outros, por Alexandre Morais da Rosa[13], Michelle Aguiar[14], Aury Lopes Jr.[15] e Delmanto Jr.[16], o Ministro Gilmar Mendes concluiu, acertadamente, que:
[...]a condução coercitiva para interrogatório representa uma restrição da liberdade de locomoção e da presunção de não culpabilidade, para obrigar a presença em um ato ao qual o investigado não é obrigado a comparecer. Daí sua incompatibilidade com a Constituição Federal.
Em síntese, e na linha do que se esperava, de vez que se trata de posicionamento mais coerente e consentâneo ao Estado Constitucional e Democrático de Direito, entendeu-se, enfim, ao menos em sede de medida cautelar, que, se “não há obrigação legal de comparecer ao interrogatório, não há possibilidade de forçar o comparecimento”.
Espera-se, agora, que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o mérito das Arguições de Descumprimento de Preceitos Fundamentais, não reverta a aplaudível decisão do eminente Ministro Gilmar Mendes. Todo o oposto. Aguarda-se, isto sim, que se extirpe, de uma vez por todas, esse espírito inquisitivo, autoritário e, sobretudo, antidemocrático, imanente à condução coercitiva, em qualquer de suas fases, seja em sede de investigações, seja na fase do processo judicial propriamente dito, seja, por fim, como medida cautelar autônoma – essa última utilizada como mero argumento retórico, fruto de descabido e vergonhoso contorcionismo hermenêutico.
Notas
[3]https://g1.globo.com/politica/noticia/gilmar-mendes-profere-decisao-em-que-considera-a-conducao-coercitiva-inconstitucional.ghtml
[4]https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/12/19/mendes-atende-pedido-do-pt-e-defere-liminar-que-impede-conducao-coercitiva-de-investigados.htm
[5] http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/12/liminar-de-gilmar-mendes-do-stf-impede-conducao-coercitiva.html
[6]https://www.conjur.com.br/2017-dez-19/conducao-coercitiva-investigados-inconstitucional-decide-gilmar
[7]http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-12/gilmar-mendes-suspende-uso-de-conducao-coercitiva-contra-investigados
[8] http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/gilmar-veta-conducao-coercitiva/
[9]http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI271348,91041-Gilmar+Mendes+proibe+conducao+coercitiva+de+investigados+em+todo+pais
[10] DELMANTO JR, Roberto. Inatividade no Processo Penal Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 192-193.
[11] ROSA, Alexandre Moraes da; AGUIAR, Michele. Qual o regime da condução coercitiva no processo penal do espetáculo? Disponível em: http://emporiododireito.com.br/leitura/qual-o-regime-da-conducao-coercitiva-no-processo-penal-do-espetaculo.
[12] Artigo 14, 3, “g”, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, em vigor, no Brasil, por força do Decreto 592/92, bem como artigo 8, 2, “g”, do Pacto de San José da Costa Rica, em execução por força do Decreto 678/92.
[13] ROSA, Alexandre Moraes da; AGUIAR, Michele. Qual o regime da condução coercitiva no processo penal do espetáculo? Disponível em: http://emporiododireito.com.br/leitura/qual-o-regime-da-conducao-coercitiva-no-processo-penal-do-espetaculo.
[14] Ibidem.
[15] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
[16] DELMANTO JR, Roberto. Inatividade no Processo Penal Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 192-193.