No âmbito das atividades de transporte de gás natural, um tema que tem se mostrado sensível para as transportadoras diz respeito ao direito de crédito relativo ao ICMS incidente sobre o gás por elas adquirido para uso no sistema do gasoduto, visando à prestação de seus serviços.
À parte da quantidade de gás natural que lhes é entregue por seus clientes para transporte, as transportadoras também adquirem de seus clientes um volume de gás para utilização em seus equipamentos. É o chamado gás para uso no sistema (usualmente rotulado de “GUS”) que, segundo as regras de mercado, abrange: (a) o ‘gás combustível’, ou seja, a quantidade de gás consumido nos equipamentos das instalações de transporte (p. ex: estações de compressão, estações de medição, estações de redução de pressão e estações de entrega); (b) o ‘gás não contado’, que corresponde às quantidades de gás consumidos no sistema, mas não apuradas em decorrência de erros de medição no curso normal da operação do gasoduto; e (c) as ‘perdas operacionais’, assim entendidas as quantidades de gás empregadas para manutenção do curso normal da operação do gasoduto e aquecimento e resfriamento de equipamentos do sistema.
É facilmente perceptível que o GUS é insumo imprescindível para a prestação dos serviços de transporte. Porém, o direito de aproveitamento do crédito do ICMS relativo ao GUS demanda esclarecimentos, tendo em vista a deficiência da legislação hoje em vigor para disciplinar os serviços de transporte de gás natural.
Com efeito, como um breve passar de olhos pelo ordenamento jurídico vigente revela, as normas que hoje disciplinam a incidência do ICMS sobre serviços de transporte de gás natural foram, a princípio, elaboradas para disciplinar o transporte rodoviário de bens e passageiros. Dessa forma, embora normas esparsas venham sendo editadas para alcançar outros modais, o tecido normativo relativo ao serviço de transporte de gás natural ainda é insuficiente.
A despeito dessa realidade normativa, há de ser reconhecido o direito de crédito relativo ao ICMS sobre o GUS adquirido por transportadoras. Isso porque, na ausência de disciplina específica acerca da peculiaridade do transporte de gás, o direito ao aproveitamento de crédito de ICMS pelas transportadoras deve ser balizado à luz do desenho constitucional do ICMS como imposto não cumulativo (CRFB, art. 155, § 2º, I,) e das regras gerais da Lei Complementar 87/1996 (arts. 19 e 20).
A Constituição da República Federativa do Brasil, ao conceder aos Estados poder tributário para instituir e exigir o ICMS dentro de suas competências territoriais, definiu a estrutura geral desse imposto — plurifásico e não cumulativo. Ou seja, ela assegurou a compensação do imposto devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores (CRFB, art. 155, II). É o chamado princípio da não-cumulatividade, que informa a dinâmica da tributação do ICMS, nos moldes delimitados por lei complementar federal (Lei Complementar 87/1996arts. 19, 20 e 23).
Ademais, conforme já pacificado na doutrina e na jurisprudência, o transportador (contribuinte) tem o direito de escriturar em sua contabilidade fiscal os créditos de ICMS que resultem de entradas (tributadas pelo ICMS) em seu estabelecimento de insumos (serviços e mercadorias) pertinentes (não alheios) e diretamente empregados em sua operação regular. O conceito de ‘insumos’ não se confunde com ‘bens de uso e consumo, de modo que àqueles não se aplica a restrição do art. 33, I, da Lei Complementar 87/1996, mas, de forma geral, a regra de compensação contida no art. 20 da referida lei.
Assim sendo, como as transportadoras de gás prestam serviços de transporte sujeitos ao pagamento do ICMS, deve lhes ser reconhecido, em obediência ao princípio da não-cumulatividade, o direito ao crédito de ICMS relativo aos insumos que são atrelados à realização de suas atividades e que entram em seu estabelecimento por operações sujeitas a incidência desse imposto (CRFB, art. 155, II, e da Lei Complementar 87/1996, art. 2º, II).
O GUS é inegavelmente associado à realização da atividade de transporte de gás natural. Como já acima ressaltado, somente mediante o uso do GUS é possível movimentar equipamentos (turbinas, compressores e auxiliares) vitais para a impulsão do gás em direção ao ponto de entrega.
Ou seja, o GUS é intrínseco à operação regular de transporte de gás. Todas as parcelas componentes do GUS são fundamentais e inerentes à prestação do serviço de transporte de gás. São elas previstas e calculadas (medidas) como insumos normalmente empregados na operação das instalações de transporte, necessários ao recebimento, movimentação e entrega das quantidades de gás requeridas (inclusive a filtragem, a regulação da pressão, a adequação da temperatura para evitar formação de líquidos, a medição e o registro de volumes, pressões e temperaturas do gás, dentre outras tantas atividades específicas compreendidas no contexto peculiar do serviço de transporte de gás).
À luz da realidade operacional do serviço de transporte de gás natural é imperioso, portanto, o reconhecimento do direito das transportadoras de se creditarem do ICMS incidente no fornecimento de GUS, sob pena de frontal violação ao princípio da não-cumulatividade, que informa toda a dinâmica de tributação do imposto.