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A sociedade em midiatização e os novos aspectos da fundamentação das decisões judiciais

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Agenda 21/01/2018 às 20:55

4. A midiatização da sociedade e a nova ambiência de legitimação do discurso jurídico

Nos tópicos anteriores me esforcei para demonstrar que a história e a tradição que ambientaram a conformação do campo do Direito no Brasil proporcionaram a construção de um imaginário que, entre outras características, induz uma percepção da figura do juiz como um agente público que deve dialogar exclusivamente com os atores processuais e nos limites do processo que preside.

Esta tradição de tão arraigada foi traduzida no artigo 36, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LC 35/1979), o qual proíbe os magistrados de manifestarem-se fora dos autos nos quais atuam, excepcionando apenas a atuação no magistério.

É possível perceber que a realidade que impôs restrição da palavra e que sugeriu a manutenção das interações dos magistrados exclusivamente no circuito institucional se conforma com a chamada sociedade dos meios, a qual se caracteriza pela prevalência das lógicas da mídia que, no dizer de BRAGA (2015) envolvem a profissionalização (especialização dos saberes), a prevalência de padrões empresariais[16] estabelecidos por grupos econômicos que monopolizam a função de mediação entre os diversos campos sociais, a busca de maximização do público, a tentativa de regulação e controle da exposição de conteúdos, o agenciamento dos sentidos a eles atribuídos pelos receptores e, por fim, a imposição do silêncio como sanção para o rompimento de suas pretensões regulatórias.

Dessarte, a ambiência idealizada na comunicação de massa mesmo diante deste enclausuramento do produtor do conteúdo jurisdicional daria conta de proceder aos ajustes de sintonia e à redução dos ruídos que a linearidade do processo até então existente produziria. Daí as configurações institucionais preocupadas em formar corpos técnicos que pudessem se encarregar desta mediação inclusive no âmbito interno do Poder Judiciário, ou seja, o fortalecimento das assessorias de imprensa e a instituição de órgãos próprios de produção e distribuição de conteúdo, como, por exemplo, a TV Justiça. Vale dizer: se o juiz não pode falar, a não ser através da sentença e exclusivamente se dirigindo às partes, caberia aos outros agentes especializados no discurso midiático fazê-lo.

Ocorre que estamos diante de uma nova ambiência -  a midiatização.

Nesse novo cenário, que não se resume à perspectiva de penetração das lógicas dos media nos demais campos sociais (BRAGA, 2015), observa-se uma articulação complexa de processos sociais e midiáticos realizada no âmbito dos dispositivos, o que, nas lições de ROSA (2016), significa dizer que os conteúdos comunicacionais (textos, fotografias, vídeos) são produzidos e permutados a partir de dispositivos midiáticos sejam integrantes do corpo de peritos do campo dos media ou não.

Logo, o ambiente propiciado pela evolução tecnológica, mas não limitado a ela, possibilita a circulação de produtos de vários campos sociais por suas bordas, ou seja, pelo terreno onde o saber especializado não predomina e onde este saber é tensionado pelo saber vindo de outros campos, bem como pelo saber amador. O movimento que não é mais linear, não permitindo falar em retroalimentações e dificultando as tentativas de agenciamento, promove um fluxo comunicacional que não encontra limites espaciais ou temporais seguindo sempre adiante. (FAUSTO NETO, 2010)

Ana Paula Rosa (2016) nos alerta para o fato de que os monopólios informativos ainda continuam operantes, idealizando suas pretensões regulatórias e insistindo na tentativa de prever e limitar atribuições de sentidos, mas o que nos parece é que o cenário em que a delimitação territorial e temporal da circulação de conteúdos não mais é possível, torna totalmente imprevisíveis os sentidos que serão atribuídos aos conteúdos originais, obrigando o operador dos campos especializados a buscar uma espécie de retorno às interações de co-presença que eram típicas de momentos históricos em que os media sequer haviam construído sua autonomia.

Isso pode ser observado nas situações em que percebemos não só os representantes das partes nos processos judiciais se apresentando para a interlocução direta com sua audiência em entrevistas coletivas ou outras formas de interação, mas também, quando os Juízes (limitados na sua liberdade de expressão por força de Lei complementar 35, de 1979) utilizam o espaço da sentença e dos demais atos processuais decisórios para demonstrarem que estão atentos aos aportes recebidos da comunidade que se manifesta na WEB ou nos veículos de comunicação.

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Conforme alerta, ainda, FAUSTO NETO (2015) o hiato entre o tempo de produção de uma obra e o da circulação gera inevitáveis efeitos, particularmente, quando se reflete sobre os usos e apropriações que dela serão feitos. Logo, considerando que a emergência da midiatização provoca mutações complexas na arquitetura comunicacional, segundo o esforço interacional que se desloca do modelo conversacional (comunicação de ida e volta) para um processo de fluxo continuo, sempre adiante (BRAGA, 2012 apud FAUSTO NETO, 2015), não se pode afastar a possibilidade de os atos enunciativos das decisões judiciais, especialmente as sentenças, trazerem marcas de um diálogo que extrapola o circuito endoprocessual e que conversem também com os novos espaços e de recepção de seu conteúdo. Tratar-se-ia de uma contingência na qual o operador jurídico reconhece a debilidade dos diversos media para a regulação da recepção e busca uma espécie de retorno à imediação (como dito acima, à interação de co-presença), a qual, pelo menos ao nosso aviso, não pode ser qualificada como positiva ou negativa, mas apenas ser objeto de uma tomada de consciência necessária à manutenção da autonomia do campo do Direito e, em especial, das instituições responsáveis pela jurisdição, obviamente sem o comprometimento dos princípios constitucionais determinantes de um processo justo (equidistância do juiz em relação às partes, ampla defesa, contraditório e isonomia).

Por fim, convém ressaltar que, em que pese, os limites temporais não terem permitido uma ampliação da base empírica a ser acionada para tensionamento da hipótese que dá nome ao artigo, parece-nos que, na sentença prolatada pelo Juiz Federal Sérgio Moro na ação em que o ex-Presidente Luiz Inácio Lula foi réu, há indícios dos reflexos da midiatização nas práticas judiciais com a identificação de novos espaços de legitimação, pois é possível perceber que o magistrado não se a dirige somente às partes. Ele claramente revela ao público que tem acompanhado o desenrolar do processo pelas redes sociais alguns de seus pontos de vista, inclusive justificando seu sentimento de desconforto ao condenar um ex-presidente da nação (sendo esse sentimento verdadeiro ou não), atitude que seria totalmente desnecessária se estivesse discorrendo apenas para o público especializado.


5. À guisa de conclusão.

Como ressaltado acima, as pretensões desta pequena resenha são mínimas. Em verdade o que se buscou aqui foi lançar um olhar um pouco mais acurado e questionador sobre uma prática que vem sendo repetida no terreno do Poder Judiciário, que é o manejo das decisões judiciais como instrumento de interlocussão com a sociedade.

As impressões iniciais revelam que nossa matriz jurídica impõe resistência no campo especializado a aceitar os aportes tanto conceituais como fáticos que provém de outros campos sociais.

Esta resistência é típica da ambiência configurada na chamada sociedade dos meios, na qual o saber especializado ganhou corpo.

Ocorre que rápida evolução do campo da comunicação especialmente as possibilidades geradas a partir dos incrementos tecnológicos, de duas décadas para cá, tem permitido uma mudança de paradigma que faz prevalecer novas lógicas  que, reunidas, nos permitem identificar uma sociedade em processo acentuado de midiatização.

Nessa sociedade em vias de midiatização, os processos interacionais se caracterizam como tentativos, e ao se caracterizarem como tal, vão delineando o espaço social como um esforço por parte de todos os agentes - de ordem subjetiva, de mediação e tecnológica - em se comunicar. E isso leva à constatação de que há uma "aceleração e diversificação de modos pelos quais a sociedade interage com a sociedade" (Braga, 2012, p. 5). Por processos diferidos e difusos, portanto, a sociedade vai tentativamente se organizando, testando possibilidades e gerando circuitos múltiplos.

Verifica-se, na ambiência da sociedade em vias de midiatização, uma "ampliação quantitativa do espaço de interações midiatizadas, tanto para o debate público como nas atividades de ordem privada. Crescentemente tudo passa a circular segundo processos midiáticos" (Braga, 2015), uma vez que a sociedade procura interagir cada vez mais com a sociedade; e assim "constituem-se circuitos em que não só as fronteiras se tornam vagas, como também as lógicas de cada um desses âmbitos tensionam e invadem o outro".

Esta circulação, entendida como processo de produção de sentido que se realiza o intervalo nas instâncias da produção e do reconhecimento (VERON, 2004), mesmo demandando aprofundamento em seus estudos, pode ser vista como traço característico desse ambiente em que os campos sociais perdem seus referentes.

Assim, partindo do incômodo causado pela percepção de que o campo do direito também está sendo atravessado pelas lógicas dos media, procuramos encontrar nas matrizes de nosso pensamento jurídico, bem como nas lições sobre campos sociais deixadas por Adriano Duarte Rodrigues eventuais motivações para esta sensação.

Ao final desta digressão pudemos constatar que os atores jurídicos já não tem como evitar o processo de midiatização de suas práticas, especialmente quando lidam com causas de grande repercussão, mas ainda fazem um esforço argumentativo para criticar um movimento que parece ser irrefreável.

A tomada de consciência de que estão surgindo novos espaços que consomem e  resignificam conteúdos típicos da cena judicial pode acarretar uma mudança de paradigma no discurso jurídico.

Ao invés de insistirmos nas críticas quanto aos atores jurídicos que se entregam à midiatização, devemos abrir espaço para perceber que estamos diante de um quadro social que demanda novos fazeres, novos princípios, novas formas de resolver velhos problemas que se relacionam à busca de aceitação e, nessa medida, a abertura do espaço decisório judicial a novas  bases argumentativas deve ser construída sem perda da proteção ao princípios que formam o tegumento protetor dos indivíduos contra os abusos do Estado.


6. Referências

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PARTIDO DOS TRABALHADORES. Moro ignora provas de Lula e cita jornais em sua sentença. Disponível em: http://www.pt.org.br/moro-ignora-provas-de-lula-e-cita-jornais-em-sua-sentenca/. acesso em 20 Ago.2017.

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva. 27. ed., 2005.

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ROSA, Ana Paula da. Imagens em proliferação: a circulação como espaço de valor. In; V Colóquio Semiótica das Mídias, 2016.

THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Trad. Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 2011.

VERON, Eliseo. Fragmentos de um tecido. São Leopoldo:Editora Unisinos, 2004.

Sobre o autor
Wesley Wadim Passos Ferreira de Souza

Doutorando em ciências da comunicação-UNISINOS; Mestre em Direito e Instituições Politicas- FUMEC; especialista em Direito Processual Penal e Direito Penal. Ex-Oficial da PMMG, ex Promotor de Justiça de Minas Gerais, Juiz Federal do TRF da 1a Região.

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