3. TUTELA DA CONFIANÇA
A entidade familiar constitucionalizada, como base da sociedade, protegida de forma especial pelo Estado, por ser vocacionada à proteção “da dignidade e a realização da personalidade de seus membros, integrando sentimentos, esperança e valores”[18], impõe novos contornos aos comportamentos de seus membros, vedando condutas egoísticas e abusos de direito, “privilegiando, o ambiente propício, para o desenvolvimento da personalidade humana em busca da felicidade pessoal”[19].
Tratando-se de núcleo de afeto e solidariedade, propulsor da dignidade, mesmo diante da existência de desavenças, a família ainda é o lugar desenvolvimento da personalidade de seus membros, que devem perceber que suas condutas individuais repercutem sobre todo o seio familiar.
Necessário, portanto, dar efetividade à solidariedade familiar, protegendo a legítima confiança existente entre os indivíduos, de modo que, condutas autocentradas sejam afastadas. Impõe-se, ademais, a supremacia normativa constitucional, condicionando os atos individuais ao atendimento dos valores já consagrados, de modo a “propiciar a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos constitucionais, fazendo com que eles passem do plano abstrato da norma jurídica para a realidade concreta da vida”.[20]
Sob a ótica da família funcionalizada, que não mais possui um fim em si mesma, é imperioso reconhecer que os diferentes comportamentos criam legítimas expectativas que devem ser condizentes com os objetivos dessa entidade. Assim, a tutela dos comportamentos individuais passa a ser analisada sob um enfoque intersubjetivo, ou seja, nas consequência e interesses despertados.
A postura ética e cooperativa deve ser tida como regra a ser seguida no núcleo familiar. As condutas passam a ser orientadas pela solidariedade social, sendo a valorização da confiança um limitador da autonomia privada, como preceitua Anderson Schreiber:
[...] inserida no amplo movimento de solidarização do direito, vem justamente valorizar a dimensão social do exercício dos direitos, ou seja, o reflexo das condutas individuais sobre terceiros. Em outras palavras, o reconhecimento da necessidade de tutela da confiança desloca a atenção do direito, que deixa de se centrar exclusivamente sobre a fonte das condutas para observar também os efeitos fáticos da sua adoção.[21]
Elemento balizador de todo o ordenamento civilista, a confiança é galgada a um patamar de destaque no Direito de Família. Isso porque é condição essencial para as relações familiares pautadas na comunhão de vida e para a plena realização do indivíduo.
Nesse contexto, Cristiano Chaves esclarece que no âmbito familiar a confiança assume diferentes feições[22]. Em uma vertente patrimonial, apresenta-se como boa-fé objetiva. Por outro lado, tratando-se da vertente existencial, ela se materializa pelo afeto.
Não obstante não se possa obrigar alguém a amar, a afetividade é tutelada como dever de cuidado, respeito à individualidade e assistência. Lado outro, a boa-fé objetiva se expande para além das relações patrimoniais, sendo vista como critério de controle de legitimidade da autonomia privada nas relações existenciais[23]. É nesse sentido que Cláudia Lima Marques sustenta que a “boa-fé é cooperação e respeito, é conduta esperada e leal, tutelada em todas as relações sociais”[24]. Portanto, como valor ético, a boa-fé objetiva deixa de estar adstrita somente às relações contratuais, para ser elemento garantidor de eticidade em todas as relações jurídicas.
4. A BOA FÉ OBJETIVA
A boa-fé objetiva é vista como um padrão de comportamento, impondo às partes de uma relação jurídica o dever de agirem de forma honesta, transparente e leal, vedando-se o abuso de direito e condutas contraditórias.
Nesse sentido, a doutrina atribui à boa-fé três funções: interpretativa, integrativa e de controle ou restritiva.
A primeira, função interpretativa, impõe o dever de se analisar os comportamentos, manifestações de vontade e negócios jurídicos com padrões de lealdade e retidão, proibindo-se condutas fraudulentas e simulações. É nesse sentido que dispõe o art. 113 do Código Civil, “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.
A função integrativa estabelece deveres anexos, que surgem independentemente da vontade das partes[25]. Daí nascem os deveres de transparência, informação, cooperação, probidade, entre outros.
Por último, a função restritiva, da qual decorre a limitação no exercício de qualquer direito subjetivo[26]. Assim, vedam-se comportamentos que, a princípio lícitos, ultrapassam os padrões éticos, refletindo no direito alheio.
4.1 A BOA FÉ OBJETIVA PROCESSUAL
De acordo com o novo regramento processual, todos aqueles que de alguma forma participam do processo devem comportar-se de acordo com a boa-fé, entendida esta como norma de conduta, ou seja, boa-fé objetiva[27], considerada independentemente de boas ou más intenções.
Nesse sentido elucida o professor Arruda Alvim:
É de se esperar, em um contexto ético, que os sujeitos do processo não deverão apresentar comportamento desleal uns para com os outros. Não obstante, o ambiente processual é notadamente o de um conflito de interesses; autor e réu têm, quase que invariavelmente, vontades antagônicas, e se um sagra-se vence dor, o outro sucumbirá. Entre a proibição de atitudes antiéticas e a impossibilidade de se exigir que uma parte auxilie os interesses da outra diretamente, há no CPC de 2015 a exigência de que ·aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa fé.[28]
Com efeito, em consonância com toda a doutrina civilista, a cláusula geral da boa-fé processual impõe o dever das partes de não frustrarem a confiança legitimamente depositada, criando situações jurídicas ativas e passivas[29] relacionadas à honestidade, lealdade e transparência.
Assim, irradiando para o Código Processual, vemos a possibilidade da tutela de evidência diante do abuso do direito de defesa ou do manifesto propósito protelatório (art. 311, I), a condenação em litigância de má-fé (art. 80), entre outros.
Fredie Didier[30] expõe como o princípio da boa-fé se concretiza no Processo Civil, entre outras formas, como uma proibição de criar dolosamente posições processuais, bem como a proibição de abuso de direitos processuais. Assim ele exerce uma função limitadora, vedando a prática de certos atos. Evidentemente a necessidade de lealdade entre as partes ganha maior relevo quando aliada à solidariedade, inerente às relações familiares, de modo que o exercício de direitos processuais se condicionam aos próprios princípios do direito material tutelado
Nesse sentido é ímpar a lição de André Luiz Maluf de Araújo:
Não obstante as fortes disputas doutrinárias, ainda existentes, não podemos duvidar que o dever de veracidade e completitude, bem assim o de colaboração, podem ser perfeitamente demarcados dentro da amplitude do conceito da boa-fé processual. Dizer a verdade, sem omitir detalhe(s) relevante(s), é uma conduta que, em um conflito judicial, é considerada como social e eticamente correta, apesar de parecer utópica. Atua lealmente quem narra os fatos de forma verídica e completa, assim como o litigante que introduz ao processo todos os elementos de convicção necessários para a prolação de uma sentença justa, colaborando para por fim ao processo de forma correta.
[...]
Em veras, basta precisar o conteúdo do dever de veracidade e completitude na narrativa dos fatos. Segundo a doutrina, o dever de veracidade consiste em não alegar como existentes fatos os quais se sabe serem inexistentes, e, ao mesmo tempo, não negar fatos que se sabe que são verdadeiros. Por outro lado, o dever de completitude consistiria em alegar todos os fatos relevantes para a correta resolução do conflito, sem omitir dado algum que esteja sob o domínio da parte. Este dever pode ser violado simplesmente ao se omitir de dizer qualquer fato que faça parte do patrimônio cognitivo do litigante.
[...]
É evidente, que se um dos litigantes narrou de maneira parcial os fatos, omitindo outros que são incompatíveis com a sua posição subjetiva, falta com a verdade, mesmo sem falar mentiras, pois que gera o mesmo efeito como se efetivamente as tivesse dito. Estes deveres de veracidade e completitude estão em estreita relação com uma pretendida socialização do processo civil.[31]
De fato, o que não se pode tolerar é a visão do processo, sobretudo no Direito de Família, como um procedimento onde é possível utilizar todo tipo de arma[32]. Assim a defesa de uma parte não pode prejudicar o direito de defesa de outra, tampouco levar o órgão jurisdicional ao erro.
De fato, não se desconhece o posicionamento daqueles de afirmam ser inexigível que parte faça afirmações que poderia lhe prejudicar[33], contudo, a própria relação de direito material subjacente, impõe que o princípio da legitima defesa se conforme à tutela das relações familiares.
4.2 A BOA FÉ OBJETIVA E AS RELAÇÕES FAMILIARES
Não obstante a boa-fé objetiva tenha como campo maior de aplicação cotidiana as relações contratuais, sendo positivada nesse sentido, parece razoável considerá-la como uma cláusula geral, fundante de todo o ordenamento jurídico, limitando a autonomia privada no âmbito privado e existencial.
Vista como diretriz para o exercício de quaisquer direitos, e orientadora de condutas, a boa-fé, atingindo relações jurídicas contratuais ou não, “desempenha função elementar para uma vida em sociedade harmônica e equilibrada”.[34]
É nesse sentido que se posiciona Flávio Tartuce:
Mas, se percorrermos outro caminho por três premissas ou justificativas, também podemos afirmar que o art. 422 do novo Código Civil pode ser perfeitamente aplicável aos institutos familiares, particularmente ao casamento e à união estável. Primeiro, porque, como vimos, os baluartes do novo Código Civil são a eticidade, a socialidade e a operabilidade, princípios com os quais a boa-fé objetiva mantém relação. Dessa forma, a referida cláusula geral deveria ser aplicada a todos os institutos de Direito Privado. Segundo, porque seria inconcebível aplicar os arts. 113 e 187 da atual codificação aos institutos de Direito de Família, afastando a aplicação do art. 422 diante de um óbice formal. Vale repetir que a nova codificação privada não se apega ao formalismo, sendo essa a melhor expressão do princípio da operabilidade, da simplicidade. Entender que, no Direito de Família, a boa-fé teria dupla e não tripla função é, para nós, totalmente inconcebível. Terceiro, por fim, lembramos que a principal função da boa-fé é justamente suprir e corrigir os negócios jurídicos em geral.[35]
Por conseguinte, a tutela da boa-fé objetiva no núcleo familiar assume a feição de proteção da assistência[36] e lealdade[37] recíprocas, impondo aos membros da família o encargo de colaborar, seja no âmbito patrimonial ou pessoal.
Os vínculos familiares, de onde nascem deveres e direitos mútuos, fixam, também, obrigações anexas que não decorrem de qualquer manifestação de vontade, mas surgem de cada caso concreto.
4.3 BOA-FÉ OBJETIVA E OS ALIMENTOS
Como obrigação jurídica decorrente de um vínculo de parentesco ou afetivo, os alimentos são fixados de modo subsidiário, haja vista que a todos é dado o dever de se sustentar.
Certo disso, a obrigação alimentar surge, primeiramente, com a necessidade do beneficiário, conjugada à possibilidade do credor. Assim sendo, diante de uma relação jurídica pautada em um direito subjetivo, é imprescindível perceber que existem deveres anexos vinculados à obrigação principal (de pagar, prontamente, a pensão).
Pode-se trazer à baila o dever do credor de não postergar o estado de carência, largando-se ao ócio para prolongar propositalmente a situação geradora da obrigação alimentar. Assim, continuando o filho a receber alimentos do genitor, mesmo após ter completado a maioridade por ainda estar cursando a faculdade, é dever seu implementar todos os esforços para alcançar a independência financeira.
Findada, pois, a carência financeira do então alimentando, nasce para ele o dever de prontamente informar ao alimentante, para que este cesse os pagamentos, em privilégio da colaboração e lealdade entre as partes.
Nesse sentido, corrobora Rolf Madaleno:
Portanto, é da essência de todo acordo de alimentos, ou de sua fixação judicial, que o credor realmente careça da pensão alimentar, como real necessitado, não dispondo de renda alguma como resultado de seu próprio trabalho. Ausente a dependência, por óbvio não mais se prorroga o direito a crédito alimentar, pois o destinatário da pensão guarda, por conduta moral e por princípio de direito, o dever de lealdade e da boa-fé, não apenas quando obtém a fixação judicial dos alimentos, mas durante a prestação deles.[38]
Por tais razões, a ex-cônjuge que contrai nova sociedade conjugal, o filho que se mantém inerte nos estudos ou não informa aos pais que já se inseriu no mercado de trabalho, incorrem em falta aos padrões éticos de conduta. A eles foi imposta a legítima expectativa de que desfrutariam do trabalho alheio tão somente enquanto existente a impossibilidade do próprio sustento, devendo a confiança depositada pelo alimentante ser satisfeita.