1. A SOLIDARIEDADE FAMILIAR
Com o fim do Estado Liberal, centrado no individualismo e a proeminência dos direitos subjetivos, a dignidade da pessoa humana ascende ao posto máximo nos tempos contemporâneos. Nesse contexto, a Constituição de 1988 impõe por princípios fundamentais, fundantes de todo ordenamento jurídico a “dignidade humana, igualdade substancial e a solidariedade social”[1].
Consagrando força normativa constitucional através de princípios explícitos e implícitos, a nova ordem jurídica impõe grandes transformações nas relações familiares. Reconhece-se “de um lado, o valor da pessoa humana enquanto tal, e os deveres de todos para com sua realização existencial, nomeadamente do grupo familiar; de outro lado, os deveres de cada pessoa humana com as demais, na construção harmônica de suas dignidades”.[2]
As relações familiares contemporâneas são, assim, reestruturadas. Os princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade firmam o fim da patriarcalização do núcleo familiar, que passa a se assentar na igualdade, liberdade, pluralidade, convivência familiar e melhor interesse da criança. Antes matrimonializada, hierarquizada e autoritária, a nova família funcionalizada é democrática, corresponsável e tutelada de forma especial tanto enquanto intuição, como na individualidade de seus membros[3].
Nesse sentido que se expressa Maria Celina Bodin de Moraes:
Se todas as pessoas são igualmente dignas, nenhuma instituição poderá ter o condão de sobrepor o seu interesse ao dos seus membros. A família, portanto, não se acha mais fundada em rígidas hierarquizações, preocupadas com a preservação do matrimônio do casal e do patrimônio familiar, para se revelar como o espaço privilegiado de realização pessoal dos que a compõem. Como exemplos desta nova concepção, destacam-se, entre outros, a igualdade entre os cônjuges e a igualdade entre os filhos, a prevalência do melhor interesse da criança e do adolescente, pessoas em desenvolvimento, e o regime da prestação alimentícia, que deve ser determinado, não segundo qualquer avaliação de “culpa” na separação ou no divórcio, mas, obedecendo o binômio necessidade-capacidade, com expressão da solidariedade no domínio familiar.[4]
A submissão ao poder patriarcal é abandonada, dando lugar à autoridade parental na qual todos os membros passam a compartilhar afetos e responsabilidades, possuindo direitos e deveres recíprocos, principalmente a assistência moral e material[5]. Assim, o cuidado ganha valor jurídico, de modo que os vulneráveis passam a ganhar especial proteção (Estatuto do Idoso, da Criança e Adolescente, Lei Maria da Penha).
Na lição de Paulo Luiz Netto Lôbo:
O lar é por excelência um lugar de colaboração, de cooperação, de assistência, de cuidado. Em uma palavra, de solidariedade civil. O casamento, por exemplo, transformou-se de instituição autoritária e rígida em pacto solidário. A solidariedade em relação aos filhos responde à exigência da pessoa de ser cuidada até atingir a idade social.[6]
A solidariedade é, portanto, a diretriz orientadora da organização familiar, materializando-se na concorrência, por ambos os cônjuges, no sustento da família e na educação dos filhos; na tutela e curatela; na filiação socioafetiva e adoção; na união estável; e na obrigação alimentar; entre outros.
2. OS ALIMENTOS LEGÍTIMOS
2.1. CONCEITO
O próprio indivíduo, por óbvio, é o primeiro encarregado pelo seu sustento, valorizando-se, portanto, a liberdade deste em empregar seus recursos da melhor maneira que lhe convier. Ocorre que, em razão de fatos jurídicos, físicos ou mentais, nem todos são capazes de suprir as próprias necessidades, cabendo à família e, subsidiariamente ao Estado, o dever de prestar auxílio[7].
Desse modo, a família surge como meio de proteção do indivíduo, abandonando o até então caráter institucionalista e econômico-reprodutivo, para dar lugar a uma visão socioafetiva, de satisfação das necessidades e valoração da dignidade de seus componentes.
É o que completa Arnaldo Rizzardo:
Visa a prestação alimentícia justamente suprir as carências que impedem a geração de recursos próprios, com fundamento num princípio de solidariedade familiar ou parental que deve dominar entre as pessoas. Ou socorrer o membro da família que se encontra em situação de não prover a própria subsistência.[8]
Nesse contexto, os alimentos legítimos[9], aqueles que decorrem de uma obrigação legal (relação de parentesco, matrimônio ou união estável), em sentido amplo, englobam os meios materiais indispensáveis ao pleno desenvolvimento do indivíduo, abarcando, portanto, não somente o mínimo existencial, ou seja, as despesas ordinárias garantidoras das necessidades vitais (alimentos naturais), mas também, vestuário, cultura e lazer, educação, de modo a possibilitar uma vida digna e a devida inserção social do alimentando (alimentos civis).
Não se pode olvidar que, sendo pautados em um estado de premente necessidade, em valoração à solidariedade entre os sujeitos familiares, os alimentos não podem incentivar o ócio, a inércia, a vida desregrada do credor, de modo a ofender a moral social, subvertendo o próprio objetivo da família, para dar origem a um enriquecimento sem causa.
Portanto, os pressupostos da obrigação alimentar (vínculo jurídico, necessidade e possibilidade) devem ser analisados à luz da proteção da dignidade e da solidariedade familiar.
2.2. O DEVER DE SUSTENTO E A OBRIGAÇÃO ALIMENTAR
Baseado no poder familiar, o dever de sustento ou manutenção é imposto irrestritamente aos pais, biológicos ou afetivos. Este dever estende-se tão somente aos filhos menores ou incapazes. Já a obrigação alimentar é aquela existente entre cônjuges, companheiros, ou pais e filhos maiores de idade, uma vez que se extinguiu o poder familiar, perdurando, contudo, o vínculo de parentesco.
No seio do dever de sustento, a presunção de necessidade e possibilidade é quase que absoluta, isso porque, é dever dos genitores a manutenção irrestrita da prole, mesmo sendo precária sua condição financeira, sob pena de caracterização de crime de abandono material (CP, art. 244).
De igual modo, Luiz Felipe Brasil Santos sustenta:
O menor desfruta de presunção de necessidade, pois o que normalmente ocorre é que, por sua própria condição de dependência, e até mesmo impossibilidade legal de trabalhar antes dos 14 anos de idade (art. 227, §3º, I, CF) não dispõe de recursos próprios para manter-se. Em consequência, está dispensado de justificar sua necessidade, que decorre da condição de pessoa em formação. Não é, porém, absoluta esta presunção, admitindo prova em contrário, pois, embora incomum, poderá ocorrer que disponha de melhores recursos que os próprios genitores, o que se dará, por exemplo, se houver recebido um legado, ou desfrutar de renda como ator televisivo.[10]
Com o advento da maioridade e a cessação do poder familiar, a presunção de necessidade do descendente dá lugar à presunção de capacidade laborativa e de autossubsistência. Ocorre que, na atualidade, não raro, a maioridade não representa independência financeira, impondo a sociedade uma formação profissional superior cada vez mais ampla, muitas vezes em horário integral, de modo que a inserção no mercado de trabalho é postergada, sendo razoável que os pais arquem com as despesas dos filhos.[11]
Já os alimentos entre cônjuges e companheiros são pautados no dever de mútua assistência (art. 1.566, III, CC), de modo a concretizar a comunhão de vidas a que se propôs o casal. Destarte, rompida a relação conjugal, há um decréscimo na capacidade financeira dos envolvidos, que terão, por óbvio de suportar os encargos da nova vida, o que não implica, contudo, o fim da solidariedade familiar, que irradia seus efeitos mesmo após o fim do relacionamento.
Em que pese a isonomia estabelecida pela Constituição, ainda é comum em nossa sociedade encontrar relações em que a mulher abdicou da formação profissional para se dedicar integralmente à família, sendo razoável que o cônjuge/companheiro garanta a ela uma vida digna, findo o relacionamento, enquanto ainda não inserida no mercado de trabalho. Portanto, os alimentos originados da relação conjugal, nascem, em regram com termo certo (alimentos transitórios), sujeitando-se à cláusula rebus sic standibus.
Por fim, sendo pautada em relação de parentesco ou socioafetiva[12], a obrigação alimentar não se resume a pais e filhos maiores. Na impossibilidade dos primeiros[13] ela pode se estender aos avós e irmãos, sendo discutível, ainda, a obrigação dos tios para com os sobrinhos.
Yussef Cahali, se posiciona pela inexistência da obrigação para parentes colaterais além do 2º grau, “acena-se com a existência de um dever de socorro de natureza simplesmente moral, que, assim, não assegura pretensão à exigibilidade, mas que, prestado, desautoriza a repetição. ”[14]
Em sentido contrário está Maria Berenice Dias, que pugna da existência da obrigação:
Com relação aos parentes, a obrigação alimentar acompanha a ordem de vocação hereditária (CC 1.829). Assim, quem tem direito à herança tem dever alimentar. Quanto aos parentes em linha reta, como o vínculo sucessório não tem limite (CC 1.829 I e II), é infinita a obrigação alimentar entre ascendentes e descendentes (CC 1.696). A obrigação é recíproca, estabelecendo a lei uma ordem de preferência, ou melhor, de responsabilidade. Os primeiros obrigados a prestar alimentos são os pais. Na falta de qualquer dos pais, o encargo transmite-se aos avós, e assim sucessivamente. Esse dever estende-se a todos os ascendentes. Também não há limite na obrigação alimentar dos descendentes: filhos, netos, bisnetos e tataranetos devem alimentos a pais, avós, bisavós, tataravós, e assim por diante. Na ausência de parentes em linha reta, busca-se a solidariedade dos colaterais (CC 1.592).[15]
2.3. PRESSUPOSTOS DO DEVER ALIMENTAR
Conforme os arts. 1.694 e 1.695 do Código Civil, além da existência de um vínculo jurídico, seja o parentesco, casamento ou união estável, é necessário balizar a necessidade de uma vida digna de quem recebe e a possibilidade de arcar com o encargo por quem paga. Assim a fixação da prestação alimentos deve sempre analisada levando-se em conta as peculiaridades de cada caso
Necessidade
Dispõe o art. 1.695 do Código Civil que “são devidos os alimentos quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho, à própria mantença”. Portanto, a exigibilidade da obrigação alimentícia pressupõe a impossibilidade do credor de manter-se por seus próprios esforços.
Nesse sentido, os alimentos são devidos em caráter excepcional, a quem não possui capacidade para o trabalho ou condições de se sustentar, e tão somente enquanto perdurar a situação de carência.
Importante frisar que a impossibilidade de trabalhar e a própria carência financeira não podem ser vistas em termos absolutos. Devem ser analisadas de acordo com o contexto socioeconômico em que o indivíduo está inserido, sob pena de não lhe possibilitar uma plena inserção social.
Possibilidade
O mesmo regramento legal pugna na sua parte final que os alimentos são devidos por quem “pode fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu sustento”.
Ora, pautada na solidariedade e na proteção de dignidade humana, a obrigação alimentar deve ser imposta dentro dos limites da capacidade financeira do devedor, pois se assim não fosse seria ele privado do mínimo indispensável ao próprio sustento.
Ou seja, o encargo imposto deve ser condizente com possibilidades do alimentando, sob pena de ter-se uma verdadeira “partilha de misérias”.
2.4. IRREPETIBILIDADE DOS ALIMENTOS
Não há qualquer dispositivo de lei que impeça a restituição dos valores pagos a títulos de alimentos[16], sendo esta uma construção doutrinária e jurisprudencial, baseada na ideia de que, por terem um caráter subsistêncial, garantidor da vida, os alimentos seriam imediatamente consumidos.
É nesse sentido que leciona Maria Berenice Dias:
Talvez um dos princípios mais significativos que rege o tema dos alimentos seja o da irrepetibilidade. Como se trata de verba que serve para garantir a vida e a aquisição de bens de consumo, inimaginável pretender que sejam devolvidos. Esta verdade por tão evidente é difícil de sustentá-la. Não há como argumentar o óbvio. Provavelmente por esta lógica ser inquestionável é que o legislador não se preocupou sequer em inseri-la na lei. Daí que o princípio da irrepetibilidade é aceito por todos, mesmo não constando do ordenamento jurídico
A irrepetibilidade também se impõe para desestimular o inadimplemento. A exclusão dos alimentos ou a alteração para menor do valor da pensão não dispõe de efeito retroativo. O ingresso da demanda revisional intentada pelo alimentante não pode servir de incentivo para que deixe de pagar os alimentos ou proceda à redução do seu montante do modo que melhor lhe aprouver. […]a redução ou a extinção do encargo alimentar dispõe sempre de eficácia ex nunc, alcança somente as parcelas futuras.[17]
A intenção, portanto, é proteger o alimentando carente, que mesmo ao ter desconstituído o título que deu origem à obrigação, como a improcedência da ação de reconhecimento de paternidade ou a anulação do casamento, não será compelido a ressarcir os valores recebidos, configurando assim exceção a restituição do pagamento indevido (CC, art. 876). Nesse sentido, fixados os alimentos liminarmente, sua redução, ou mesmo o insucesso no provimento definitivo, não implicam que as verbas já pagas devam ser restituídas.
Sobre o tema vale transcrever decisão do Superior Tribunal de Justiça:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. CABIMENTO. REVISÃO DOS ALIMENTOS. MAJORAÇÃO, REDUÇÃO OU EXONERAÇÃO. SENTENÇA. EFEITOS. DATA DA CITAÇÃO. IRREPETIBILIDADE. 1. Os efeitos da sentença proferida em ação de revisão de alimentos - seja em caso de redução, majoração ou exoneração - retroagem à data da citação (Lei 5.478/68, art. 13, § 2º), ressalvada a irrepetibilidade dos valores adimplidos e a impossibilidade de compensação do excesso pago com prestações vincendas. 2. Embargos de divergência a que se dá parcial provimento.
(STJ - EREsp: 1181119 RJ 2011/0269036-7, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 27/11/2013, S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 20/06/2014)
Oportuno salientar, ainda, o voto vencido do Ministro Luís Felipe Salomão, que confere efeito retroativo somente à decisão que majora os alimentos fixados, de modo a não afetar a execução das parcelas não pagas que ainda estejam em curso, sob pena de entendimento diverso, encorajar o inadimplemento:
Nesse passo, em uma interpretação sistemática das normas e princípios constitucionais regentes, alinho-me à corrente avessa à retroação dos efeitos da sentença, mas apenas quando houver redução dos alimentos ou quando o alimentante for exonerado do dever de prestá-los. A meu ver, não é razoável considerar o mesmo termo inicial para a produção de efeitos da sentença que majora os alimentos, em relação àquela que os reduz ou que exonera o alimentante de tal encargo.
[...]
Nessa ordem de ideias, tem-se que, nas ações revisionais ajuizadas com o objetivo de majorar os alimentos, os efeitos da sentença devem retroagir à data da citação, a exemplo do que ocorre com os alimentos definitivos fixados, nos termos do art. 13, § 2º, da Lei n. 5.478/1968. Por sua vez, nas ações revisionais propostas com o escopo de reduzir os alimentos e nas exoneratórias, a sentença possui efeitos prospectivos, tendo eficácia apenas a partir do trânsito em julgado da demanda.
Enfim, não se pode olvidar que as especiais características conferidas aos alimentos se prestam a tutelar de forma especial aquele que se encontra em um estado fragilizado, sendo a garantia da renda mínima essencial ao desenvolvimento da sua personalidade.
Da mesma forma, por ser uma relação continuada de caráter excepcional, a obrigação alimentar propicia o surgimento de condutas objetivamente esperadas, sobretudo quando se perquire acerca da presença do binômio necessidade/capacidade. Nesse sentido, incabível que a prestação alimentar seja vista sob um prisma individualista, de tutela exclusiva do credor, sendo imprescindível observar que a solidariedade familiar impõe a valorização da dimensão social do exercício dos direitos no núcleo familiar, ou seja, a consequência de todas as condutas adotadas pelos membros da família.