O Princípio da Presunção de Inocência não é novo neste século, pois, segundo alguns autores, o seu surgimento data do século XVIII, tendo como postulados fundamentais o pensamento da revolução liberal desse século. O acolhimento de tal princípio foi uma reação contra a Inquisição.
A Presunção de Inocência está disciplinada na Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, LVII, que estabelece: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Essa garantia vem proteger a dignidade das pessoas de não se tornarem rés, nos termos exatos da palavra, embora tenham tal denominação no decorrer do processo, quando têm contra si a denúncia oferecida pelo Órgão do Ministério Público, que é o dominus litis da Ação Penal. Fundamentando-se no princípio da inocência, o denunciado não está obrigado a provar sua inocência, nem a cooperar na produção de provas contra si.
Dessa forma, ele não está obrigado a responder às perguntas que lhe são formuladas pelo Delegado de Polícia, que é o encarregado da apuração dos fatos tidos como delituosos através do Inquérito Policial, e da mesma forma pode permanecer silente, durante o seu interrogatório, diante do Magistrado.
A tramitação processual é acobertada pelas garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, que são os pilares do devido processo legal.
Consiste o contraditório no dever que é imposto ao juiz de dar ciência às partes de todos os atos praticados no processo. No processo penal o contraditório se faz com mais rigor do que no processo civil, pois neste, como se sabe, os direitos são geralmente disponíveis, enquanto naquele os direitos são indisponíveis. A reação do réu, no entanto, não é obrigatória, de vez que esta não é a finalidade do contraditório, que se contenta, apenas, com a comunicação através da citação ou de outros atos ordinatórios.
A Presunção de Inocência, em nosso modesto ponto de vista, deve ser interpretada e aplicada tão-somente com relação ao processo penal, porque não havendo uma decisão definitiva, ou, melhor dizendo, enquanto não forem esgotados todos os recursos previstos na legislação processual, o denunciado ou condenado, na primeira instância, não poderá carregar em sua vida em sociedade a pecha de condenado.
Entretanto, a presunção de inocência vem sendo interpretada, em nosso sentir, data venia, pelo Supremo Tribunal Federal de maneira temerária e perigosa, pois os fatos têm sido encarados tão-somente quanto aos termos estritos da lei, protegendo e privilegiando uma classe de pessoas, em detrimento da sociedade.
Essa classe, em sua maioria, é constituída pelos políticos, principalmente alguns deputados e senadores que exercem funções legislativas no Congresso Nacional. Quando esses parlamentares ferem o decoro parlamentar, ou se são envolvidos num sistema de corrupção, em razão de suas funções, instaura-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito para a apuração desses determinados fatos.
Acontece, porém, que “na constituição das Mesas e de cada Comissão, é assegurada, tanto quanto possível, a representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam da respectiva Casa” (art. 58, § 1º, da Constituição Federal).
Como se vê, os senadores ou deputados são julgados pelos seus próprios pares – que, na maioria dos casos, são corporativistas –, a Comissão de Justiça dificilmente entende que houve desvio de conduta do parlamentar, e o inquérito é arquivado. Ao contrário, quando o caso é levado ao plenário de uma das Casas, este os absolve.
Quando, para apuração de fatos determinados, o Senado ou a Câmara Federal os encaminham ao Ministério Público para que se promova a responsabilidade civil ou penal dos infratores – hipótese difícil de acontecer, de vez que o Tribunal para processar e julgar é o Supremo Tribunal Federal, que é um Tribunal Constitucional e, por isso mesmo, está sobrecarregado de ações sob a sua apreciação, não dispondo de uma estrutura para julgamento das ações penais desse tipo –, a ação poderá levar de cinco a dez ou 15 anos, como aconteceu com a ex-Ministra Zélia Cardoso de Melo, que durou quase 15 anos. Admitindo a hipótese de que houvesse condenação, se eleita deputada ou senadora no período em que aguardava o julgamento, ela poderia ter exercido mandatos por mais de três legislaturas, no primeiro caso, e por quase duas, no segundo caso.
Como a Justiça é morosa. E aqui não se tem o objetivo de criticá-la, neste particular, tampouco de enumerar as múltiplas causas que a envolvem, e sim constar os fatos que são do conhecimento de todos.
Ora, para exercer qualquer cargo público, a pessoa deve ter probidade, que é norteada pelos princípios da moralidade e honestidade administrativas.
Infelizmente, assim não entende o STF, que aplica a presunção no sentido geral, interpretando o texto constitucional sob o ângulo estritamente da legalidade, ao fundamento de que não seria possível dar outra interpretação, a menos que a Constituição fosse modificada nesse ponto.
Em nosso modesto ponto de vista, o STF deve interpretar o artigo já mencionado adotando a inversão do ônus da prova da seguinte maneira: se a produção das provas nas Ações Penais cabe ao Ministério Público, de vez que o denunciado não está obrigado a provar sua inocência, nem a cooperar com a produção de provas contra ele, para preenchimento de cargos públicos deve haver, outrossim, a inversão do ônus da prova, isto é, o candidato deverá provar sua inocência: moralidade e honestidade, corolários da probidade administrativa.
Este critério é o também adotado pelo Poder Judiciário, que não admite em seus quadros pessoas de condutas duvidosas, as quais são eliminadas ao se submeterem ao concurso para juiz, não por estes motivos e sim por outros meios, como, por exemplo, através de provas orais, exames psicotécnicos e entrevistas.
O STF julgou improcedente a Ação proposta pela Associação dos Magistrados, que propugnavam que candidatos suspeitos de corrupção ou que tivessem sendo processados fossem impedidos, pela Justiça Eleitoral, de se candidatarem a cargos legislativos. O Relator do processo foi o eminente ministro Celso Melo, que, com a sua vastíssima cultura jurídica, encantou não somente os seus pares, mas a todos os espectadores que assistiram à leitura de seu relatório, por mais de duas horas, para, no final, votar pela improcedência do pedido, no que foi acompanhado pelos sete ministros do Supremo.
Esse julgamento prestou um desserviço à democracia brasileira, e, sobretudo, à governabilidade do País, de vez que a impunidade incentiva cada vez mais a corrupção dos políticos antiéticos que apostam no corporativismo, na morosidade da Justiça e no fórum privilegiado.
Nenhum país resiste por muito tempo à corrupção. A modificação do texto constitucional não seria possível, por não existir interesse, pelos menos, da maioria dos legisladores. Inexistindo punição, os crimes contra o erário tendem a aumentar de maneira incontrolável. E o pior de tudo, se o exemplo dessa ambição desmedida que as pessoas têm de “levar vantagem em tudo” parte lá do alto da pirâmide, quando chegar à base, todos poderão argumentar: se eles lá em cima, que têm altos subsídios, podem, por que nós que temos baixos salários não o podemos? Isto, sem dúvida, seria fatalmente a desintegração da democracia brasileira. Dessa forma, somente o STF pode repensar o seu posicionamento a fim de salvar a democracia.
Ora, interpretar a lei tão-somente no seu sentido literal, data venia, é muitas vezes dar maior ênfase a sua forma do que ao conteúdo.
Segundo as lições do renomado jurista Celso Ribeiro Bastos, “o intérprete deve evitar o rigorismo da interpretação e usar da ponderação”, e citando as lições de Canotilho “que chama a atenção de que todo o rigorismo da interpretação levaria à conclusão da própria inviabilidade da antecipação de medidas de investigação de medidas cautelares”.
Aplicando as lições do eminente constitucionalista, no caso em comento, o rigorismo na interpretação do art. 5º, LVII, da Constituição Federal (presunção de inocência) é, data venia, um atentado ao Estado Democrático de Direito, que é a maior garantia que se encontra nele, a proteção do cidadão para viver em sociedade. Entretanto, a garantia individual não está acima da garantia da sociedade, que é o bem maior. Assim, se a sociedade estiver em jogo, deve-se protegê-la, em detrimento da garantia individual, que é um bem menor.
Ademais, baseando-se nesse princípio, algumas pessoas são prejudicadas até mesmo com risco de sua própria vida, como, por exemplo, ao se submeterem a um tratamento médico. Como se sabe, quando um medicamento é testado, e lançado no mercado para comercialização, a sua aprovação não atinge 100% de segurança para a cura da doença. Certamente, uma parcela de doentes, ainda que seja mínima, terá reações adversas ao medicamento chegando até a morte. Diante disso, pergunta-se: o medicamento deve ser suspenso porque causou vítimas num percentual mínimo, embora tenha beneficiado a milhares de pessoas?
Cite-se, ainda, o seguinte exemplo: a Constituição Federal protege, em seu art. 5º, XX, a imagem das pessoas. Ao interpretar restritivamente este artigo, chega-se à conclusão de que a instalação de câmeras, nas vias públicas, para policiar o comportamento das pessoas, por motivo de segurança, é inconstitucional...
O Brasil é um país essencialmente surrealista. Há uma distância imensa entre a interpretação do citado texto sobre a administração pública e o comportamento da administração privada, quanto à seleção de seus funcionários e também no dia-a-dia das pessoas. Nenhuma atividade comercial admite em seus quadros uma pessoa apenas suspeita de furto, assim como uma dona de casa não admite uma empregada doméstica pelo mesmo motivo e nem um jardineiro suspeito de ter praticado estupro ou um assalto.
Assim, enquanto vai caminhando a vida real dos brasileiros, os políticos, em sua maioria, que constituem uma casta privilegiada, que tudo possuem e tudo podem, que movimentam milhões de reais ou de dólares – transportados em ambulâncias das sanguessugas, em peças íntimas, disfarçados em bois pagando suas contas, sem que haja interesse de se descobrir a origem do dinheiro, que provavelmente provém do cidadão contribuinte-eleitor –, esses políticos são absolvidos por seus pares.
O mais preocupante de tudo isso é a passividade com que todos os setores da sociedade assistem a esse degradante espetáculo, como se nada estivesse acontecendo. E, à medida que a sociedade se cala, não reage e nem contesta, umas pessoas vão ocupando os lugares das outras, e desta maneira fazem surgir os regimes totalitários.
A nossa Justiça, representada pelos seus membros, age como os fariseus, que se julgavam pessoas superiores, pregavam uma coisa e praticavam outra, colocando pesados fardos nos ombros dos cidadãos.