Sumário: RESUMO. INTRODUÇÃO. CAPÍTULO I – ANÁLISE DAS NORMAS DE DIREITO PENAL, DIREITO PROCESSUAL PENAL E CONSTITUCIONAL 1 – Considerações Preliminares. 1.1 – A Norma Penal. 1.1.1 – A Lei Penal no Tempo. 1.2 – A Norma Processual Penal . 1.3 – A Norma Constitucional . CAPÍTULO II – O ORDENAMENTO JURÍDICO. 2.1 – O Sistema de Direito Positivo. 2.1.1 – Os Princípios no Âmbito do Direito Positivo. 2.1.2 – A Unidade do Sistema. 2.1.3 – Edição de Normas. 2.2 – As Antinomias e a Auto-integração das Normas. CAPÍTULO III – O ORDENAMENTO JURÍDICO..3.1 – Disposições Gerais. 3.2 – Modos de Aplicação da Norma Híbrida. 3.2.1 – Jurisprudência. CONCLUSÃO.. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
RESUMO: O presente trabalho tem como escopo desenvolver análise concernente a aplicação das normas penais-processuais penais híbridas em face do magno princípio constitucional da retroatividade da lei benéfica ao agente. Eis que, da aplicação de referida norma aparentemente resulta certa antinomia, a qual por certo deve ser expurgada do sistema de direito positivo. Com efeito, a análise levará em conta o caráter da norma penal singularmente considerado, bem como da norma processual penal e da norma constitucional, para ao final ser atribuído tratamento específico à categoria das normas híbridas, a fim de solucionar a pergunta problema.
Palavras chave: Norma Penal, Norma Processual Penal, Norma Constitucional, Princípios, Antinomia, Direito Positivo.
INTRODUÇÃO
O escopo fundamental deste trabalho é oferecer suporte aos operadores do Direito, suscitar a reflexão por parte de acadêmicos, bem como analisar a jurisprudência predominante no que concerne às normas penais e processuais penais e a questão do princípio constitucional segundo o qual a lei penal benéfica deverá retroagir para favorecer o agente da prática de uma conduta tipificada em norma penal.
Como considerar referido postulado constitucional em relação às normas híbridas (de natureza penal e processual penal) quando confrontadas com o princípio da retroatividade benéfica? Eis que, referido questionamento ganha relevância, na medida em que é cediço que às normas processuais não retroagem tal qual a norma de direito material.
Para responder a este questionamento, a pesquisa a se desvelar baseia-se nos escólios doutrinários, analisando seus entendimentos sobre o tema, mostrando a divergência sobre certos aspéctos, assim como em legislação e jurisprudência.
Ora, desde já cabe estabelecer em linhas gerais a espécie normativa com a qual se pretende escalpelar neste artigo, todavia, antes disso, convém assinalar que no âmbito do Ordenamento Jurídico, há um conjunto de normas (entendidas estas como um complexo estrutural de regras e princípios, editadas pelas autoridades competentes, em estrita observância ao procedimento legislativo vigente, as quais sujeitam seus destinários por meios de comandos genéricos e abstratos, impondo comportamento ou abstenção de fato).
Com efeito, referidas normas integrantes do Ordenamento Jurídico, são, por assim dizer seu substrato e, em uma concepção mais ortodoxa do jurista Hans Kelsen, são normas de um modo geral, sem distinção entre si, salvo no que diz respeito à sua hierarquia.
Cabe ressaltar, outrossim, que às normas jurídicas são válidas para uma determinada sociedade, num dado momento histórico e estão incumbidas da função de disciplinar condutas humanas, de estabelecer organização social e evitar a ocorrência de conflitos intersubjetivos e, quando verifiados, resolvê-los através do manejo das técnicas de composição de litígios encartadas pelas referidas normas. Contudo, para tanto é imperioso evitar a ocorrência de antinomias.
Nessa linha de raciocínio, a cisão entre norma processual (norma de direito processual) e norma material (norma de direito substantivo), para o presente estudo, respectivamente, norma processual penal e norma penal é meramente didática, haja vista que no plano hierárquico das normas, ambas possuem o mesmo patamar, não havendo entre ambas sujeição, mas sim coordenação no plano horizontal.
Neste contexto, portanto, é imperioso encetar a ideia de sistema, que pode ser entendido de forma singela como um conjunto unitário integrado por diversas subpartes, as quais se interrelacionam harmoniosamente com base em certos princípios, os quais as mantém integradas.
Deveras, as normas jurídicas como um todo, compõem o sistema normativo, no caso do Brasil, às leis válidas e vigentes integram o Ordenamento Jurídico brasileiro. Assim, no âmbito de referido sistema é que se pretende desvendar a melhor solução para a pergunta problema, ao analisar o tema a luz da estática e da dinâmica na qual às normas jurídicas se relacionam no âmbito desse sistema.
Desta forma, o trabalho será realizado com uma introdução, seguida de três capítulos e ao final haverá uma conclusão.
CAPÍTULO I – ANÁLISE DAS NORMAS DE DIREITO PENAL, DIREITO PROCESSUAL PENAL E CONSTITUCIONAL
1 – Considerações Preliminares
Conforme já apresentado na introdução, três categorias de normas jurídicas serão consideradas no presente estudo, a saber: a norma penal, a norma processual penal e a norma constitucional, máxime a norma principiológica.
Deste modo, nos tópicos subsequentes segue-se a análise de cada uma dessas modalidades específicas.
1.1 – A Norma Penal
A norma penal compõem a tríade normativa a ser considerada no presente estudo, sua índole notadamente é de direito material, substancial, justamente por referir-se ao direito propriamente dito. E, para se ter uma ideia mais clara a respeito, importa trazer a lume o conceito de direito penal. Assim, segue abaixo o conceito suscinto e bastante adequado do professor Von Liszt, para quem “o direito penal é o conjunto das prescrições emanadas do Estado que ligam ao crime, como fato, a pena como consequência” (apud JESUS, 2015, p. 47).
Eis que, em matéria de direito penal, o direito tutelado é o da sociedade, na medida em que as normas penais protegem bens jurídicos com o escopo de proteger a harmonia e a paz sociais, protegendo por meio da tutela jurídica os bens jurídicos mais importantes do meio social, como também constitui-se um direito subjetivo[1] do Estado, o jus puniendi, que consiste no direito-dever-poder de punir o infrator da norma.
Insta salientar que, em matéria de direito penal, é imperioso conceituar o binômio “direito penal objetivo” e “direito penal subjetivo”. Para o professor Paulo José, tais categorias podem ser conceituadas da seguinte forma: “o direito penal objetivo é o conjunto de normas que descrevem os crimes os crimes, cominando sanções por sua infração”, e “o direito penal subjetivo é o direito de punir (jus puniendi). Só o Estado poderá exercê-lo, em função do seu poder de império” (COSTA JR. et all, 2010, p. 46).
1.1.1 – A Lei Penal no Tempo
Assentes tais premissas, convém aduzir que o tema está relacionado à retroatividade da norma penal, a qual, por sua vez encontra-se albergada no instituto da aplicação da lei penal no tempo.
Desta forma, necessário se faz examinar no Ordenamento Jurídico o instituto da lei penal no tempo. Assim, verifica-se no bojo do Decreto-Lei nº 2.848 de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), artigo 4ª, a seguinte disposição: “considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado.”
Evidentemente, o Código Penal adota a teoria da atividade, pois, o momento do crime é definido no instante da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado.
Acresce-se, ainda, que, no mesmo diploma legal, em seu artigo 3º, encontra-se a previsão da lei excepcional ou temporária, que consiste na “norma cuja vigência é previamente fixada pelo legislador. Findo o período para o qual foi promulgada, deixa de existir, sem necessidade de uma nova lei ab-rogatória” (COSTA JR., 2010, p. 81).
Já o artigo 2º trata especificamente da lei penal no tempo, com efeito, observe o que preconiza referido dispositivo:
Art. 2º Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. (Grifo acrescido)
Parágrafo único. A lei posterior que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que já decididos por sentença condenatória transitada em julgado.
Não obstante a clareza do dispositivo em apreço, é cediço que hodiernamente não está mais em voga o velho brocardo in claris cessat interpretatio, pois, a interpretação gramatical não é a única forma de se interpretar um dispositivo, bem como, pode haver imperfeições quanto ao sentido e alcance da terminologia empregada.
Deste modo, passando-se a elucidação do dispositivo, verifica-se, na análise de Manzione que: “o caput do artigo estabelece a irretroatividade da lei penal, que não poderá ser aplicada a fatos anteriores a sua vigência” (MANZIONE, 2001, p. 22) e segue aduzindo em relação ao parágrafo único deste mesmo dispositivo, que:
O parágrafo único no entanto, admite uma exceção, a de que a lei retroagirá quando trouxer benefício para o agente. Assim, frente a norma mais benéfica prevalecerá o princípio da retroatividade da lei mais favorável. (sic) (MANZIONE, 2001)
Ora, com base na interpretação sistemática da lei penal no tempo, observa-se que a norma excepcional ou temporária (artigo 3º), terá aplicação prefixada pelo legislador, já em relação à teoria adotada para o tempo do crime, o artigo 4º preconisa a teoria da atividade, e, o artigo central da temática – o artigo 2º - encampa dois princíos, quais sejam: o ‘princípio da irretroatividade da lei mais severa” e o da “retroatividade da lei mais benéfica”[2].
Há de se destacar em relação a estes dois princípio, que, para o professor Damásio, “esses dois princípios podem reduzir-se a um: o da retroatividade da lei mais benigna.” (JESUS, 2015, p. 115). Contudo, os professores Paulo José e Fernando José, adotam a antítese deste entendimento, ao aduzir que: “tentou-se debalde unificar ambos os princípios num só. São dois princípios similares, mas paralelos, que se conduzem rumo à justiça ideal. Impossível unificá-los (reductio ad unum), como se pretendeu.”
Em verdade, entende-se que as consequências da irretroatividade da lei mais gravosa e a retroatividade da lei mais benéfica redundam na conclusão de que a norma penal mais benéfica retroagirá ou até mesmo ultra-agirá para beneficiar o agente, ao passo que a norma penal mais gravosa, não retroagirá, como também não ultra-agirá. Com isso, depreende-se que a norma mais benéfica possui extra-atividade.
Não obstante, como referidas possibilidades são paralelas, também é possível concluir que igualmente hiperbólica é a assertiva atinente à impossibilidade de unificação dos dois princípios em um, dado o fato de que são correlatos. Entretanto, entende-se mais ortodoxo a adoção dos dois princípios, ainda que isto seja expletivo, a fim de se ampliar o alcance do instituto consagrado, bem como para não inferir de forma negativa (por exclusão) quanto ao princípio inverso.
Posto isto, resta assente que a norma penal mais benéfica possui extra-atividade (retroatividade e ultra-atividade) para beneficiar o agente, todavia, a lei mais severa não ultra-age e nem retroage.
1.2 – A Norma Processual Penal
Pondere-se, em matéria de norma processual penal que, não obstante o direito processual penal se caracterize pela aplicação da lei penal (direito formal ou adjetivo)[3], possui caráter instrumental, diferenciando-se da norma penal (de direito material ou substantivo), da qual se vale para que o Estado aplique o jus puniendi.
A vista do aduzido, imperioso se faz a menção do conceito de direito processual penal, e, para tanto, colaciona-se o conceito do saudoso professor Júlio Fabbrini Mirabete, que leciona o seguinte:
Este é o conjunto de atos cronologicamente concatenados (procedimentos), submetido a princípios e regras jurídicas destinadas a compor as lides de caráter penal. Sua finalidade é, assim, a aplicação do direito penal objetivo. - Grifos no original - (MIRABETE, 1997, p. 29)
Assentes o conceito do direito processual penal, bem como sua autonomia em face do direito penal, convém perquirir quanto a possibilidade da retroatividade ou não de suas normas. Haveria ou não alguma semelhança com o direito penal?
Certamente, a resposta mais clara para este questionamento se encontra na própria lei processual penal. Eis que, dispõe o artigo 2º do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), que: “A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.”
Com efeito, neste contexto nota-se a diferença entre a norma penal (substancial ou de direito material) e a norma (adjetiva ou de direito processual), porquanto, em relação à primeira opera-se o instituto da retroatividade da norma benéfica, ao passo que em relação a segunda, o mesmo não ocorre.
Contudo, o problema surge, na medida em que no sistema de direito positivo brasileiro, a despeito de sua harmonia e integridade, apresenta às normas penais-processuais penais (normas híbridas[4]) e, como confrontá-las em face do magno princípio constitucional da retroatividade da lei mais benéfica[5]?
Acresce-se, ainda, em relação à norma processual penal, a luz do artigo 2º em apreço, que, referido dispositivo consagra o princípio do tempus regit actum, segundo o qual, a lei processual penal terá aplicação imediata (princípio da aplicação imediata ou do efeito imediato). E, por pertinente à discussão, observe-se abaixo o ensinamento dos juristas Alexandre Cebrian Araújo Reis e Victor Eduardo Rios Gonçalves, referente ao princípio tempus regit actum, onde se consigna que:
De acordo com esse princípio, os novos dispositivos processuais podem ser aplicados a crimes praticados antes de sua entrada em vigor. O que se leva em conta, portanto, é a data da realização do ato (tempus regit actum), e não a da infração penal. - Destaque no original - (REIS & GONÇALVES, 2015, p. 38)
Posto isto, verifica-se que a norma processual penal pauta-se pelo princípio da aplicação imediata ou do efeito imediato, seja a norma posterior mais benéfica, ou não.
1.3 – A Norma Constitucional
A norma constitucional é a norma ápice do Ordenamento Jurídico, pois representa a lei fundamental do Estado. E, para o eminente jurista José Afonso da Silva, o direito constitucional configura-se “como Direito Público fundamental por referir-se diretamente à organização e funcionamento do Estado, à articulação dos elementos primários do mesmo e ao estabelecimento das bases da estrutura política[6].” - Grifos no original - (SILVA, 2011, p. 34)
Nesta seara do direito, convém lembrar que para o austríaco jurista Hans Kelsen, a Constituição è a “norma fundamental hipotética”, na medida em que serve de fundamento para às demais normas do sistema e por regulamentar o modo de produção das demais normas jurídicas, destarte, situa-se no plano mais alto do Ordenamento Jurídico. E, nas palavras do autor:
o pressuposto da norma fundamental [...] coloca a constituição na camada jurídico-positiva mais alta – tomando-se a Constituição no sentido material da palavra -, cuja função essencial consiste em regular os órgãos e o procedimento da regulamentação jurídica geral, ou seja, da legislação. (KELSEN, 2012, p. 132)
Ora, em face da supremacia da Constituição, corolário disso, suas normas – entendidas estas como às regras e princípios – se sobrepõe em relação às demais normas do Ordenamento Jurídico e, justamente por esta razão às normas ulteriores à Constituição são denominadas normas infraconstitucionais, haja vista a necessidade observancia ao eixo de compatibilização vertical, portanto, toda norma infraconstitucional deve se submeter a Lei Maior.
Com efeito, na aplicação da lei penal ou processual penal, bem como dos demais ramos do direito, há de se ter em vista a supremacia da Constituição. E, referido argumento se impõe, na medida em que o artigo 5º da Constituição contempla uma série de normas fundamentais, sendo que uma boa gama delas são de índole penal e processual penal, a exemplo, em materia de direito penal, destaca-se: (inciso XXXIX – princípio da legalidade; inciso XL – princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica; bem como os incisos XLI a XLVIII, entre outros) e em matéria de direito processual penal, tem-se (inciso LIV – princípio do devido processo legal; LV – princípio do contraditório e ampla defesa; inciso LVI – princípio da inadimissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos; inciso LVII – princípio da presunção de inocência; etc.).
Neste sentido, nota-se a aplicação do princío da lei penal benéfica, também prevista no citado artigo 5º, no inciso XL - conforme já destacado acima - constitui um princípio de acentuada importância quando da aplicação da lei penal. Entretanto, mais uma vez convém lembrar que há no sistema normas híbridas, de natureza penal e processual penal com as quais o jurista e o hermenêuta se deparará (o que será melhor apreciado no capítulo II, tópico 2.2).
Por ora, resta acente que às normas constitucionais são preponderantes, de modo que sua aplicação é inexorável, sob pena de inconstitucionalidade, portanto, normas penais híbridas ou não, desde que mais benéficas, deverão, tanto quanto possível observar o preceito constitucional, portanto, resta verificar de que modo isso ocorre em relação às normas híbridas (penal-processual penal).