A DEMONIZAÇÃO DO AUXÍLIO-MORADIA DOS JUÍZES.
Por José Batista de Andrade[1]
A Constituição Federal garante aos juízes que seus salários (subsídios) não podem sofrer redução. Essa garantia é extensiva à remuneração dos servidores públicos em geral (art. 37, inciso XV). Resta saber se se trata de proteção do valor nominal ou do valor real de compra. Quem diferencia um do outro é a inflação, que consiste na elevação dos preços de produtos e serviços, como forma de compensar a desvalorização da moeda. Por conseguinte, sempre que houver inflação sem a correspondente reposição salarial, os juízes sofrem redução de salário.
A Constituição também assegura que os servidores públicos em geral, aí incluindo os juízes, têm direito à revisão geral anual de salários, desde que estabelecida em lei específica (art. 37, inciso X). Ou seja, todo ano. Para que não haja redução de salários, deve haver reposição das perdas decorrentes da inflação. No entanto, ela não é automática, porque depende da existência de lei específica que a autorize.
Baseado nessas duas normas, o Supremo Tribunal Federal entendeu que, se não houver lei que estabeleça revisão salarial, a simples manutenção do valor nominal dos salários assegura a garantia de sua irredutibilidade.
Acontece que, os juízes atualmente acumulam uma perda salarial de 41,30%, se comparados seus subsídios de 2006 com os registrados em 2017, segundo estudo realizado pelo próprio Supremo Tribunal Federal[2]. Ou seja, os juízes vivem hoje com pouco mais da metade do valor de compra que tinham em 2006.
Eles, assim como os cidadãos em geral, têm filhos em idade escolar, cujas mensalidades aumentam anualmente em proporções acima da inflação; compram livros frequentemente, cada vez mais caros, necessários ao exercício de suas funções constituídas; o combustível de que necessita para seus deslocamentos habituais está cada vez mais caro. Só em 2017, o preço médio da gasolina aumentou 9,16%, de acordo com site G1[3]. Além disso, devem fazer e custear de seu próprio bolso cursos de atualização e aperfeiçoamento, bem ainda como participarem de congressos e encontros técnicos com frequência, cujos custos, geralmente superam a inflação. Há ainda muitas outras despesas, também necessárias, que a essas se somam, a exemplo da compra de peças da vestimenta, como ternos e sapatos, dentre outras, para garantir a formalidade do exercício da função que exercem.
Aí alguém pode dizer: ah, mas os juízes ganham muito bem, o suficiente para custear tudo isso e ainda lhe sobra dinheiro para luxar!
Trata-se de simples percepção, quando comparado com a média salarial da massa dos trabalhadores em geral. No entanto, a grande maioria desses trabalhadores não contam com muitas dessas despesas, as quais custam muito caro, e os juízes não têm como excluí-las de seus orçamentos familiares.
Por outro lado, vale ressaltar que os juízes não podem receber qualquer das verbas trabalhistas que as demais categorias de trabalhadores têm direito, como adicional noturno, adicional de insalubridade, adicional de periculosidade, participação nos lucros, FGTS, honorários advocatícios, bônus por produtividade, auxílio-educação, indenização para aprimoramento profissional, hora-extra trabalhada, dentre outras[4]. Também não podem exercer atividades comerciais, nem receber qualquer outra remuneração, salvo uma de simples professor.
Essa situação de empobrecimento do poder de compra dos juízes, frente às suas despesas necessárias e crescentes, e sem expectativa de conseguir uma justa reposição salarial, tornou-se imperioso recorrer a um direito consagrado na Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar nº 75/1979), que lhes assegura a percepção de auxílio-moradia, quando não existir residência oficial (imóveis do Poder Judiciário destinados à moradia dos juízes) nas localidades onde trabalham.
Com isso, entendendo que os juízes estão vivenciando situação de grave redução do valor de compra de seus salários, o Supremo Tribunal Federal, através de decisão liminar (provisória) do Ministro Lux Fux, datada de 15.09.2014, resolveu conceder a todos os juízes, inclusive os Ministros dos Tribunais Superiores, o recebimento mensal do conhecido auxílio-moradia.
Se é justo ou não, a grande impressa (Rede Globo, Revista Veja, Jornal Folha de São Paulo, Jornal Estado de São Paulo, etc.) nunca falou para a sociedade que o recebimento dessa ajuda de custo é ilegal, imoral ou engorda[5]. Pelo contrário, passou a endeusar os juízes, a partir daqueles que estavam à frente da Operação Lava Jato, que deslumbrou também a partir de 2014.
Com isso, os juízes Sérgio Moro e Marcelo Bretas se tornaram pot star, em especial, aquele, que figurou na capa de revista da Veja, edição do dia 22.05.2017, com direito a uma reportagem exclusiva, intitulada “Ele sabia de tudo”. Seu principal foco era a corrupção do PT na Petrobras. A revista Isto É não deixou por menos, e elegeu o Juiz Sérgio Moro o “Brasileiro do ano” em 2016.
A operação Lava Jato atingiu em cheio o PT e a maioria de seus aliados, culminando com o impeachment da presidente Dilma Roussef e a condenação do ex-presidente Lula, seu principal líder, em segunda instância, e como tal, encontra-se na iminência de ser preso, de acordo com o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal.
O PT alçou ao poder em 2003 com um projeto político (de poder) focado no combate à fome e distribuição de renda. Para tanto, procurou resgatar, nas circunstâncias atuais, o projeto trabalhista de Getúlio Vargas e João Goulart, baseado na tentativa de criação da estatal do Pré-sal, do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), os programas Luz para Todos e Minha Casa Minha Vida, a Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológico, a Política Nacional de Desenvolvimento Produtivo, e outro mais[6]{C}.
Nada disso interessava ao grande capital internacional, aos poderosos internos, representados pelos bancos (banqueiros), a grande indústria (Federação das Indústrias de São Paulo - FIESP) e a grande mídia nacional, imprescritível à sua legitimação perante à opinião pública, porque o desenvolvimento social passa pela distribuição de renda, defendido pelo governo trabalhista, exige do Estado intervenção na economia. Por isso, tornou-se imperioso o surgimento de um novo governo, que seja alinhado ao projeto neoliberal.
O impeachment da presidente Dilma foi arquitetado pelos donos do poder, que queriam a liberdade plena do mercado, e materializado pelo Congresso Nacional, ganhou a chancela do Judiciário e a legitimação da sociedade conquistada graças a um eficiente trabalho da mídia. O passo seguinte foi tirar do ex-presidente Lula a possibilidade de ele se candidatar a presidente da República nas eleições deste ano. Sua prisão pouco interessa.
Com a queda do governo trabalhista, o novo governo logo cuidou de fazer as reformas que ele diz serem necessárias para o crescimento econômico. Isso abriu espaço para implementação das tratativas de privatização da EMBRAER, extinção da Reserva Nacional do Cobre e Associados, na divisa do Amapá com o Pará, acabando com as nove unidades de proteção permanentes, alteração do conceito de trabalho escravo, permitindo com isso que os ruralistas mantenham escravos em suas fazendas, reforma trabalhista, deixando o trabalhador sujeito aos caprichos dos patrões, através da famosa livre negociação, privatização do aquífero guarani (maior reserva de águas subterrânea do mundo), dentre outras alterações de interesse do mercado internacional, ainda que comprometam a segurança nacional. Some-se a estas, a reforma da previdência, que, embora necessária, seu modelo interessa, principalmente às empresas de previdência privada. Isso tudo tem um nome: entreguismo.
O móvel de toda essa transformação foi a operação Lava Jato, que teve o seu lado glorioso: o desbaratamento do esquema de corrupção montado pelo governo do PT e seus aliados, responsável pelo desvio de bilhões de reais dos cofres públicos, a partir da Petrobras. Isso foi muito valioso para o povo brasileiro.
Acontece que a Lava Jato estava indo muito longe. Já tinha atingiu grandes empresas como a Odebrecth e a JBS, todas envolvidas nesse esquema de corrupção. No entanto, ela ainda não chegou a nenhum banqueiro, alto industrial, ou empresas multinacionais (donos do poder).
Será que não chegou porque eles são tão íntegros, ao ponto de nunca ter usado dinheiro público de forma ilícita, ou mesmo lícita, porém, com prejuízo aos cofres públicos? Provavelmente, não! Se a Lava Jato avançar mais um pouco, é muito possível que os alcance, pois, como dizia o Ministro Teori Zavascki, à época responsável pela Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, “na lava jato, toda vez que se puxa uma pena, vem uma galinha”.
Para evitar que isso possa acontecer, e como não há mais espaço para o PT voltar ao poder, houve uma mudança de foco, desviando a atenção da opinião pública. Aí entrou em campo a grande mídia, agora, atacando quem ela tanto endeusou: os juízes, porque eles não interessam mais aos donos do poder.
Como conseguir isso? Fazendo uma grande campanha midiática contra o auxílio-moradia que os juízes recebem, fazendo com que o povo passe a odiá-los. Com isso, hoje, é só em que se fala nas redes sociais, nos transportes coletivos, nos supermercados, e até nas igrejas, onde alguns padres, durante seus sermões, pregam a demonização dos juízes, dizendo que o auxílio-moradia que eles recebem é responsável pela miséria daquelas pessoas que não têm onde morar. Esse mesmo assunto também tem sido objeto de debate na academia (universidade).
Por incrível que pareça, numa grande coincidência, essa campanha começou justamente contra os dois juízes que há tão pouco foram endeusados pelo combate à corrupção na operação Lava Jato: Sérgio Moro, em Curitiba, e Marcelo Bretas, no Rio de Janeiro. Os meios de impressa divulgaram massivamente que aquele recebe auxílio-moradia mesmo tendo residência própria, e que o segundo e sua esposa, que também é juíza, e moram juntos, ambos recebem auxílio imoral. Só isso já foi o suficiente para o povo condenar sumariamente todos os juízes.
Assim, como diz o poeta Augusto dos Anjos, em seu poema “Versos íntimos”: “O beijo, amigo, é a véspera do escarro, a mão que afaga é a mesma que apedreja”. Ou seja, como a atuação do herói do combate à corrupção já não interessava mais aos donos do poder, seu braço direito, a grande mídia, passou a desqualificar os juízes, pelo fato de eles receberem auxílio-moradia.
Essa mesma mídia que hoje escracha os juízes é a mesma que não conta para o povo que os seis brasileiros mais ricos concentram riqueza igual à metade da população mais pobre, cerca de 100 milhões de pessoas, segundo estudos realizados pela Oxfam (confederação de 20 organizações presentes em 94 países, que tem a finalidade de reduzir a pobreza, erradicar a fone e as desigualdades). São eles: Jorge Paulo Lemann (AB Inbev), Joseph Safra (Banco Safra), Marcel Hermmann Telles (AB Inbev), Carlos Alberto Sicupira (AB Inbev), Eduardo Saverin (Facebook) e Ermínio Pereira de Morais (Grupo Votorantim). Segundo o jornal El País, se esses bilionários gastassem, junto, um milhão de reais por dia, levavam 36 anos para gastou todo o seu patrimônio{C}[7].
Será que todo esse patrimônio foi acumulado sem qualquer aporte lícito ou ilícito de dinheiro público? Será que se ele fosse melhor distribuído, teríamos 13,5 milhões de desempregados (de acordo com o IBGE)[8], 33 milhões de pessoas sem moradia (de acordo com estudo realizado pelo Programa da Nações Unidas para Assentamento Humano)[9] e 11,8 milhões de analfabetos (de acordo com o IBGE, citado pelo Jornal Valor Econômico)[10]. Ou tudo isso existe por causa do auxílio-moradia pago aos 18 mil juízes (de acordo com o CNJ)[11]?
Na seara do serviço público, a mídia não diz à população que os 3 mil funcionários do BNDES receberam 4,5 salários de dinheiro público de participação nos lucros do banco, mesmo sendo esse banco pródigo em conceder financiamentos subsidiados com dinheiro público às grandes empresas, como a JBS, por exemplo, onde a obtenção de lucro é bastante duvidosa. Deveria também informar ao povo que os 13 mil advogados públicos da União recebem, além de seus bons salários, que chegam a 25 mil reais por mês, remuneração extra mensal de até 6 mil reais por mês, proveniente de honorários advocatícios das causas judiciais em que a União é parte vencedora. E o pior é que esse valor ainda não está sendo informado no Portal da Transparência. A Ministra Chefe da Advocacia Geral da União (Grace Mendonça) também recebe esse valor, além de seu salário de R$ 34.200,00 por mês. Com isso, no mês de setembro de 2017, seu salário mensal chegou a R$ 43.503,00,[12].
Vale ressaltar que o recebimento desses honorários não conta para o teto salarial do serviço público. Isso significa dizer que os advogados públicos da União podem receber remuneração mensal muito acima do valor de R$ 33.763,00, sem que haja qualquer imoralidade nisso.
A grande mídia também não informa à população que os Parlamentares recebem, por mês, salários de R$ 33.763,00, auxílio-moradia de R$ 4.253, e verba de gabinete de 92.000,00, para contratarem até 25 funcionários, e até R$ 45.240,67, para gastarem com alimentação, aluguel de veículos e escritório, divulgação do mandato, passagem de avião para seus Estado de origem, dentre outras despesas. No total, um deputado custa ao contribuinte mais de 2 milhões de reais por ano (de acordo com o congresso em foco)[13].
Ela também não informa o valor do salário mensal dos ministros do governo Temer, os quais, boa parte deles ultrapassa em muito o já citado teto salarial. Dentre eles, destacam Dyogo Oliveira (Planejamento), Henrique Meireles (Fazenda), Elizeu Padilha (Casa Civil), Helder Barbalho (Integração Nacional), Ilan Golfajn (presidente do Banco Central) e Grece Mendonça (Advocacia Geral da União). Eles recebem, respectivamente, R$ 52,2 mil, R$ 39,89 mil, R$ 38,89 mil, R$ 39,12 mil, R$ 36,52 mil, e 34,22 mil (de acordo com o Portal da Transparência)[14]. Lembrar que esta inda recebe honorários provenientes das causas judiciais ganhas pela União.
Acrescente-se ainda que alguns desses ministros, a exemplo de Henrique Meirelles, Elizeu Padilha e Helder Barbalho, ainda recebe auxílio-moradia no valor de R$ 7.000,00 por mês. E não para por aí. Outros ministros do governo, a exemplo de Blairo Maggis (Agricultura), o mais rico deles, com um patrimônio de 458 milhões de reais declarado à Justiça Eleitoral em 2010, também recebem essa ajuda de custo por mês[15].
Tudo isso acontece à revelia da opinião pública, que se posta como um cego guiado por seu cão guia, no caso, a grande impressa. Com uma diferença: ela somente avisa o que lhe interessa. É o caso do auxílio-moradia dos juízes, no valor de R$ 4.377,00 por mês, no momento.
Diante de tudo isso, é de se perguntar: quem é mais vítima da manipulação midiática, os juízes, porque recebem auxílio-moradia, ou a população que é usada e abusada pela grande mídia, como massa de manobra? Por isso, é sempre bom que cada cidadão passe a desconfiar, toda vez que a mídia começa a endeusar ou demonizar alguém!