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A (in)constitucionalidade das prisões disciplinares e criminais dos militares das Forças Armadas

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Agenda 02/03/2018 às 12:24

Exame da previsão constitucional da aplicação das penas privativas de liberdade aos militares, nas esferas disciplinar e criminal, e o princípio da dignidade da pessoa humana, com escopo de verificar se há (in)compatibilidade.

1. INTRODUÇÃO 

O presente artigo, originalmente meu trabalho de conclusão de curso da pós-graduação em Direito Militar, tem como tema a previsão constitucional da aplicação das penas privativas de liberdade aos militares, nas esferas disciplinar e criminal, bem como sua harmonia com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Realiza um estudo da adequação deste questionamento, por meio de premissas como: a conceituação das bases da organização militar, da contextualização do surgimento das punições disciplinares militares, da análise do regime administrativo da atividade militar, dos dispositivos constitucionais e da legislação castrense, especialmente no que tange às transgressões e contravenções disciplinares e às prisões, também a compreensão dos crimes militares próprios e impróprios.

O objetivo norteador foi a verificação se o sistema normativo brasileiro é capaz de harmonizar os princípios que orientam a manutenção do regime administrativo militar, consoante a finalidade das Forças Armadas prevista na Constituição Federal, bem como se o mesmo consegue proporcionar aos militares a garantia contra violações de seus direitos.

O resultado obtido foi a constatação de que a existência da privação da liberdade, pelas vias penal e disciplinar, está respaldada no comando legal e a sua aplicação deve se adequar às imposições decorrentes da observância do princípio da dignidade da pessoa humana. Dessa forma, as regras disciplinares já existentes devem ser reinterpretadas a partir do caso concreto, balanceando-se constantemente os fundamentos da disciplina exigida na caserna e a necessidade de se garantir, ao máximo, a preservação de direitos constitucionais.


2. DESENVOLVIMENTO

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, consagra em seu artigo 5º, inciso LXI, que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.”[1] Diante dessa expressa salvaguarda realizada pelo constituinte originário, verifica-se possível a decretação de prisão disciplinar pela prática de transgressões e contravenções militares, fora das hipóteses excepcionais previstas no dispositivo constitucional, por autoridade administrativa.

Supracitada exceção também encontra guarida em outros dispositivos da Carta Magna, em virtude da hierarquia e disciplina, isto é, em razão da especificidade da relação de militar, conforme demonstra o artigo constitucional 142, o qual descreve a especial estrutura das Forças Armadas:

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.[2]

O referido dispositivo estabelece a missão precípua das organizações militares, bem como a estrutura castrense que tem por bases fundamentais a hierarquia e a disciplina, nas quais se constata a exigência do estabelecimento de regras específicas, manifestamente rigorosas, sob pena de as organizações militares virem a se aniquilar[3]. Nesse diapasão, muito bem explica De Plácido e Silva, em sua obra sobre o vocabulário jurídico, que tais pilares institucionais podem ser compreendidos como:

(...) hierarquia militar é a ordem disciplinar que se estabelece nas forças armadas decorrente da subordinação e obediência em que se encontram aqueles que ocupam postos ou posições inferiores em relação aos de categoria mais elevada. Na ordem militar, a obediência hierárquica constitui princípio fundamental à vida da instituição.”[4]

(...) disciplina militar é a soma de preceitos que devem ser obedecidos por todos os componentes de uma corporação militar, em virtude dos quais todos devem respeito aos modos de conduta que deles decorrem. As transgressões às regras disciplinares dizem-se crimes e delitos disciplinares.”[5] (grifos nossos).

Expostas essas conceituações, é possível verificar a existência, no que tange à hierarquia, de uma ordem de graduação e de poderes ou de autoridades, constituindo um todo disciplinar, formado pelos círculos militares, os quais se caracterizam por categorias ou classes sucessivas, onde cada indivíduo ocupa uma posição de menor ou maior poder, de maior ou menor autoridade. A disciplina, por sua vez, indica a existência de uma série de deveres morais ou de bons costumes, aliados a preceitos ou princípios que impõem a maneira pela qual cada indivíduo deve agir, dentro e fora da organização.[6]

Nesse sentido, consoante entendimento do Promotor de Justiça Militar do Estado de São Paulo, Dr. Clever Rodolfo Carvalho Vasconcelos, a presença das referidas orientações é constante na vida dos militares e, sobretudo, nas organizações militares. A hierarquia e a disciplina são elevadas à categoria de bens jurídicos basilares, tamanha a importância e o caráter de imprescindibilidade conferido a estas instituições[7], aplicando-se às Forças Armadas e Auxiliares, conforme preceitua os artigos 42 e 144, parágrafo 6º, da Lei Maior:

Art. 42. Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: (...) § 6º As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.[8]

Estes dispositivos da Carta Constitucional dizem respeito aos militares estaduais e distritais, sendo estes os membros das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares, submetidos a regime especial definido por lei estadual específica, que prescreverá normas sobre o ingresso na corporação, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade (reserva e reforma), os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades.[9]

Nesse contexto, a disciplina e a hierarquia são os maiores valores das Forças Armadas e Auxiliares, instituídos nos supramencionados artigos 142 e 42, sendo constitucionalmente protegidos. Essa circunstância elementar das instituições militares pressupõe um dever de obediência, calcado, principalmente, na obrigação que tem o subordinado de obedecer ao seu superior, salvo quando a ordem deste for manifestamente criminosa.[10]

Também é possível depreender, a partir da leitura de José Luiz Dias Campos Júnior, estudioso da Justiça Castrense, na passagem de sua obra na qual aduz que “(...) aliás, não é por outro motivo, portanto, que a obediência hierárquica é, no consenso geral, o princípio maior da vida orgânica e funcional das forças armadas.”[11], sendo estes preceitos os sustentáculos para a vida na caserna e, segundo o entendimento deste autor, “o ataque a esse princípio (obediência hierárquica) leva à dissolução da ordem e do serviço militar”.[12]

O Estatuto dos Militares, publicado por meio da Lei nº 6.880, em 09 de dezembro de 1980, pelo então Presidente da República João Figueiredo, regula a situação, obrigações, deveres, direitos e prerrogativas dos membros das Forças Armadas, sendo de suma importância seu conhecimento por parte de todos os combatentes. Esta diretriz regulamentadora traz expressamente, em seu bojo, a importância dos princípios da hierarquia e da disciplina no artigo 14 e parágrafos, que dispõem:

Art. 14. A hierarquia e a disciplina são a base institucional das Forças Armadas. A autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico.

§1º A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro de um mesmo posto ou graduação se faz pela antiguidade no posto ou na graduação. O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à sequência de autoridade.

§2º Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo.

§3º A disciplina e o respeito à hierarquia devem ser mantidos em todas as circunstâncias da vida entre militares da ativa, da reserva remunerada e reformados.[13]           

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Sendo assim, estes conceitos estão intimamente ligados de tal forma que um instituto não sobrevive sem o outro, nas palavras de José Afonso da Silva, “Não se confundem, como se vê, hierarquia e disciplina, mas são termos correlatos, no sentido de que a disciplina pressupõe relação hierárquica. Somente é obrigado a obedecer, juridicamente falando, a quem tem poder hierárquico”.[14]

Tais bases normativas também estão contempladas nos regulamentos disciplinares das três Forças Armadas, quais sejam: o Decreto nº 88.545, de 26 de julho de 1983[15], da Marinha; Decreto nº 4.346, de 26 de agosto de 2002[16], do Exército, e o Decreto nº 76.322, de 22 de setembro de 1975[17], da Aeronáutica, cujos textos têm por propósito a especificação e a classificação das contravenções e transgressões disciplinares – aqui cabe a ressalva de que, apesar de sinônimos, o termo “contravenção” é utilizado no estatuto da Força Marítima apenas, e o vocábulo “transgressão” está presente nos regimentos das Forças Terrestre e Aérea –, o estabelecimento das normas relativas à amplitude e à aplicação das penas e punições disciplinares, bem como à classificação do comportamento militar e à interposição de recursos contra as penas e, por fim, as recompensas concedidas aos militares.

  Feitas essas considerações iniciais, é possível partir para o escopo do presente artigo, que é o aprofundamento da análise sobre as punições disciplinares e criminais impostas aos militares e a posterior investigação sobre sua compatibilidade (ou não) com a Constituição Federal. Para tanto, é necessária, preliminarmente, a contextualização do surgimento das mesmas, tendo sido de grande valia o estudo do artigo publicado por Jocleber Rocha Vasconcelos[18], do qual é possível se extrair os elementos para a interpretação constitucional da prisão disciplinar militar. De acordo com este talentoso teórico:

As penas restritivas de liberdade sempre compuseram o cabedal de punições militares no Brasil. Desde a utilização das ordenações do Reino de Portugal, que vigeram até a instituição dos artigos de Guerra do Conde de Lippe, em 1763, e de outras normas punitivas sucessivas até o presente momento, experimentou-se uma gama extensa de punições rigorosas que incluíam, desde a morte e castigos físicos, à privação da liberdade. Em tempos recentes as penas físicas, cruéis, de banimento, de trabalhos forçados e de caráter perpétuo foram extirpadas de todo o ordenamento jurídico, assim como a pena de morte somente passou a ser aplicada em caso de guerra declarada. Persistem, todavia, as penas de restrição da liberdade na esfera penal. Uma outra particularidade no direito constitucional é a manutenção da restrição da liberdade por meio de punições administrativas disciplinares militares.[19]        

Consoante descrito anteriormente, da disciplina expressa no artigo 5º, inciso LXI, da Constituição Federal infere-se a possibilidade de prisão nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar. Mantém-se, assim, como particularidade do Direito Constitucional, a manutenção da restrição da liberdade por meio de punições administrativas disciplinares militares, ainda que o status libertatis seja condição plena de cidadania.

 Vasconcelos, ao explanar sobre o regime administrativo especial aplicado aos militares, ressalta que existem peculiaridades na atividade desses agentes públicos capazes de diferenciá-los, em direitos e deveres, dos servidores públicos (civis), sendo, portanto, o regime jurídico do militar sui generis, dotado de características únicas. Este sistema de normas tenta adequar as peculiaridades militares, em face das necessidades trabalhistas, administrativas, previdenciárias e operacionais, ao mesmo tempo em que cria regras de responsabilização para o caso de violação dos padrões estabelecidos.[20]

Nos dizeres do oficial, esta gerência de organização pressupõe a dedicação integral e exclusiva ao serviço militar, a qual pode ser traduzida pelas seguintes situações: a proibição ao militar da ativa de exercer comércio, a vedação à sindicalização, greves ou qualquer outro tipo de reinvindicação; a proibição de participar de atividades políticas; a obrigatoriedade de mobilidade geográfica pela necessidade do serviço; a participação em atividades militares insalubres como campanhas, exercícios e manobras sem contrapartida financeira; os serviços (plantões) de escala em período integral sem remuneração extra; dentre outras restrições. Nessa perspectiva, aduz o estudioso que:

A atividade militar é caracterizada por grande empenho psicológico do indivíduo, em que se sobressaem o risco de morte, a agressividade e o desenvolvimento de atributos que formulam um perfil de combate inerentes à condição de preparo para a guerra. Estas características têm a sua finalidade funcional, mas podem gerar graves distorções se mal empregadas. Para assegurar a eficiência das forças militares e garantir a sua permanência coesa ao longo dos tempos, lhes é imposto um sistema rígido de controle e de concepção da atividade militar, quer seja na esfera moral, ética, ideológica ou jurídica. Por isso as ciências militares possuem um objeto de estudo que não se reduz a um saber único. É um ramo científico multidisciplinar, que agrupa noções de vários campos do conhecimento, dada a multifária gama de atividades que permeiam a vida militar.[21]

Ainda sob o aspecto das particularidades da sistematização e administração militares, cabíveis mencionar os ensinamentos de Sérgio A. de A. Coutinho, cuja obra dispõe que a experiência do comando, no Exército Brasileiro, tem raízes profundas, sendo um legado intelectual, institucional e moral transmitido por gerações, conforme suas palavras, em uma “escola de vivência profissional”[22]. A problemática do comando, tal como compreendido pelos militares, é o tema de seu livro, trabalho que muito contribui para o aprimoramento profissional dos oficiais, nas responsabilidades de liderança e chefia, podendo-se citar a passagem que segue:

O Exército, como componente das Forças Armadas do país, é instrumento político do Estado e, ao mesmo tempo, é instituição nacional. É um aparelho voltado para a guerra, organizado, equipado e treinado para aplicação da violência. A sua natureza e destinação bélicas impõem que esteja submetido a valores éticos que lhe confiram finalidades morais, que tornem legítimo o uso da violência e que deem limites toleráveis à sua ação, sem o que, quando empregado, poderá se transformar em um instrumento letal indiscriminado, inescrupuloso e fora de controle da Nação a que serve.[23]         

Sendo a estrutura de comando militar o mecanismo diferenciador dos cargos do serviço público civil, o já mencionado Estatuto dos Militares dispõe, em seu artigo 34, que o comando “é a soma de autoridade, deveres e responsabilidades de que o militar é investido legalmente quando conduz homens ou dirige uma organização militar.”[24] Portanto, as supracitadas disciplina e a hierarquia militares estão respaldas na existência dessa prerrogativa, cujos detentores possuem uma gama de atribuições morais, administrativas e legais; sendo que o poder legal de impor ordens, conferido aos comandantes militares, e a consequente subsunção dos militares comandados ao dever irrestrito de obediência e à observância ferrenha de um código de ética rígido e amplo, capaz de regular, inclusive, situações da vida privada do militar, que afetem a eficiência da instituição[25], são o apanágio que permite o cumprimento da sua missão constitucional conferida às Forças Armadas. São oportunas aqui duas citações:

Por sua própria natureza, um Exército é diferente de outras instituições sociais. Como principal agente da violência do Estado, destaca-se e possui características especiais como organização social. Um Exército é uma instituição total, no sentido do termo empregado por Erving Goffman; seus membros distinguem-se de outros que seguem estilos de vida diferentes. Uma “característica central das instituições totais” é a ruptura das barreiras que separam as três esferas da vida – sono, lazer e trabalho – por meio do controle de onde, quando e como elas ocorrem.[26]

A ideia de sanção está diretamente ligada à de coercibilidade. Na medida em que o ordenamento jurídico alberga uma organização capaz de aplicar as sanções, estas podem ser tidas como instrumentos de eficácia jurídica, vale dizer, as sanções funcionam como instrumentos com os quais o Direito pretende impor-se aos inadimplentes.”[27]

Diante disso, retomando a lição do Dr. Clever Vasconcelos, este instrui que, em sede específica do poder punitivo do Estado, a consequência é a previsão, nos diplomas legais, de um sistema disciplinar mais severo, inclusive no que tange às punições. A restrição da liberdade deixa de ser, portanto, sob uma ótica mais ampla, uma simples violação de garantia individual, para se tornar um mecanismo necessário de eficiência da força militar.[28]

A disciplina é o fundamento jurídico que permite aos comandantes, em variados níveis, ter como apoio seus poderes de mando, conforme ministra o referido Promotor. Por conseguinte, na esfera criminal, há proteções das instituições militares que tutelam os bens jurídicos necessários à sua manutenção. E, em havendo infração às normas garantidoras do cumprimento do dever militar, enseja a caracterização de crime militar, passível de ser punido judicialmente.

Nessa feita, é exigível a existência de normas de caráter administrativo que possibilitem às autoridades punir condutas violadoras do dever militar, a fim de reprimi-las efetivamente. Embora sejam esferas distintas de responsabilização jurídica no cenário atual, as punições penal e administrativa (disciplinar) militares são vertentes do poder punitivo do Estado e adotam pontos de contato, pois possuem as mesmas raízes históricas e o mesmo fundamento de proteção.[29]

Por esses motivos, tanto no procedimento punitivo judicial, quanto no administrativo, resta necessária e imprescindível a adoção de medidas que visem a impedir a indisciplina militar, por exemplo, a restrição da liberdade, sendo essas providências de suma importância para desestimular condutas futuras, a fim de manter status quo das Forças Armadas.

No que diz respeito aos delitos que ensejam prisões criminais, dispõem o Código de Processo Penal Militar[30] (CPPM) e o supramencionado Estatuto dos Militares acerca da possibilidade de prisão penal nos casos de crime propriamente militar e nas hipóteses de prisão disciplinar em razão do cometimento de transgressões militares, respectivamente, consoante à expressa disposição constitucional que autoriza a aplicação da sanção privativa de liberdade desvinculada da necessidade de mandado judicial, nesses casos, já referida no início deste artigo.

Nesse contexto, observadas as preceituações do Código Penal Militar[31] (CPM), ainda que haja divergência doutrinária a respeito da classificação, para Vasconcelos, “são considerados crimes propriamente militares aqueles que só podem ser praticados por militares, ou, no mesmo sentido, os que exigem do atuante a qualidade de militar.” Assim, no entendimento do professor, “somente a pessoa do militar pode cometer tal delito, vez que tal conduta versa em infração de deveres militares”[32].

Já na disciplina de Adriano Alves-Marreiros, a partir da denominada “Teoria do Cubo Impossível”[33], que diz respeito à essência do inciso I do artigo 9° do CPM e às controvertidas definições de crime propriamente militar (militar próprio, essencialmente militar, puramente militar, impropriamente militar, militar impróprio, acidentalmente militar ou de quando a taxonomia é mais necessária), não é permissível, ao Direito brasileiro atual, a conceituação do que seriam tais delitos. Dentre alguns paradigmas dispostos no CPM, os quais a maioria dos autores caracteriza como crimes propriamente militares, citam-se os delitos de deserção (art. 187), abandono de posto (art. 195), covardia (art. 363), desacato a superior (art. 298) e dormir em serviço (art. 203).

Em contrapartida, há os denominados crimes impropriamente militares, isto é, aqueles que, comuns em sua natureza, podem vir a ser cometidos por qualquer agente, seja civil ou militar, cabendo ressalvar que, ao serem cometidos por militar, em determinadas condições, são caracterizados legalmente como crimes militares, consoante previstos no referido código. Como exemplos desses delitos, também previstos na legislação criminal comum, Renan Francisco Paiola[34] aponta o furto (art. 240), o homicídio (art. 205) e o constrangimento ilegal (art. 222).

De outra banda, encontram-se expressas as contravenções ou transgressões disciplinares, as quais se caracterizam pela violação do dever militar, na sua manifestação elementar e simples, havendo previsão a seu respeito no Estatuto dos Militares e nos regulamentos disciplinares das Forças Armadas, abaixo colacionados e referenciados:

Art. 47. Os regulamentos disciplinares das Forças Armadas especificarão e classificarão as contravenções ou transgressões disciplinares e estabelecerão as normas relativas à amplitude e aplicação das penas disciplinares, à classificação do comportamento militar e à interposição de recursos contra as penas disciplinares.[35]

Art. 6º. Contravenção disciplinar é toda ação ou omissão contrária às obrigações ou aos deveres militares estatuídos nas leis, nos regulamentos, nas normas e nas disposições em vigor que fundamentam a Organização Militar, desde que não incidindo no que é capitulado pelo Código Penal Militar como crime.[36]

Art. 14.  Transgressão disciplinar é toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos estatuídos, no ordenamento jurídico pátrio, ofensiva à ética, aos deveres e às obrigações militares, mesmo na sua manifestação elementar e simples, ou, ainda, que afete a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe.[37]

Art. 8º Transgressão disciplinar é toda ação ou omissão contrária ao dever militar, e como tal classificada nos termos do presente Regulamento. Distingue-se do crime militar que é ofensa mais grave a esse mesmo dever, segundo o preceituado na legislação penal militar.[38]

Tendo em vista estas definições, toda violação aos deveres militares – dentre eles os encargos funcionais, éticos, de valorização da cultura, honradez, fidelidade, probidade, moral, espírito de camaradagem, bondade e benevolência para com os companheiros – constituirá transgressão disciplinar, podendo esta ser conceituada, na doutrina do professor Vasconcelos, como uma “infração administrativa, nem sempre típica, mas sempre antiética e quase sempre passível de acarretar a aplicação de uma pena administrativa disciplinar, ou seja, uma sanção disciplinar ao policial transgressor”[39]. Restando evidenciado, dessa forma, que o cometimento de qualquer contravenção/transgressão disciplinar, acarreta em ofensa ao ordenamento, constituindo-se infração administrativa.

Dando continuidade a seus ensinamentos, o Dr. Clever Vasconcelos menciona, no estudo, que as modalidades de privação da liberdade de locomoção, do direito de ir, vir e ficar em determinado local, por motivo de cometimento de algum crime ou por ordem legal, estão presentes, quando são cometidos crimes propriamente militares, bem como ao se verificar a prática de transgressões disciplinares[40].

Nessa seara, cumpre ressaltar que as prisões provisória, em flagrante delito e preventiva estão dispostas expressamente ao longo do CPPM, conforme se pode observar na leitura dos artigos 220, 243 e 254, por exemplo:

Art. 220. Prisão provisória é a que ocorre durante o inquérito, ou no curso do processo, antes da condenação definitiva.

Art. 243. Qualquer pessoa poderá e os militares deverão prender quem for insubmisso ou desertor, ou seja encontrado em flagrante delito.

Art. 254. A prisão preventiva pode ser decretada pelo auditor ou pelo Conselho de Justiça, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade encarregada do inquérito policial-militar, em qualquer fase deste ou do processo(...).[41]

Relativamente às transgressões disciplinares, no entendimento do Major Vasconcelos, a restrição da liberdade, em nível administrativo é conveniente ao princípio da intervenção mínima do Direito Penal Militar, sendo este a ultima ratio, uma vez que se destina a aplicar uma resposta eficaz com menor lesividade social.[42] Com efeito, a utilização das penas disciplinares, sobretudo as restritivas de liberdade, produz bons resultados, não necessariamente havendo a necessidade do ajuizamento de ação penal por parte do Estado, devidamente representado pelo Ministério Público Militar.

Em verdade, a incriminação de condutas e aplicação de punições, por meio de coerção pessoal, deve acontecer quando todos os mecanismos repressivos tenham sido exauridos. Constata-se, desse modo, que a legislação criminal deve ser imposta apenas quando as mazelas sociais carecem de uma solução mais eficaz. Discriminando-se a esfera disciplinar da jurisdição penal, é possível observar que a pena privativa de liberdade seria uma afronta ao Estado Democrático de Direito. No entanto, se equilibrada aos princípios aplicáveis ao Direito Penal comum e, subsidiariamente, à lei castrense, torna-se responsável pela coerência e harmonia do sistema punitivo militar, assegurando-se uma harmonização social[43].

Nessa conjuntura, entende-se cabível citar os dizeres do penalista Fernando Capez, segundo o qual “a intervenção mínima e o caráter subsidiário do Direito Penal decorrem da dignidade humana, pressuposto do Estado Democrático de Direito, e são uma exigência para a distribuição mais equilibrada da justiça.”[44], tendo em vista que há previsão constitucional garantindo que a liberdade do cidadão, somente pode ser violada nos casos de flagrante delito ou por ordem judicial devidamente fundamentada. Noutro viés, a própria Constituição Federal, em seu artigo 142, reservou às transgressões disciplinares e aos crimes militares um regime jurídico diferenciado, no qual não se exige a flagrância, tampouco se estabeleceu como necessária a ordem judicial para validar a prisão disciplinar militar.

Tal regime jurídico específico, previsto na Magna-Carta, de acordo com a sabedoria de Walter Santos Peniche, tem o condão de resguardar a ordem disciplinar na carreira militar, pois de nada valeria organizá-la com fundamento na hierarquia e na disciplina, conforme dispõe o caput do artigo 142 do texto constitucional, se não houvesse meio de garantir a efetividade desses institutos[45]. A prisão disciplinar, desse modo, é o recolhimento do militar infrator antes do desenvolvimento de um procedimento disciplinar, constituindo-se como forma de cerceamento da liberdade deste indivíduo.

Seguindo essa lógica, é razoável inferir que a ressalva estabelecida pelo constituinte originário somente enquadra os militares, tendo em vista que, segundo alguns doutrinadores, apenas estes agentes públicos estão sujeitos ao cometimento de transgressões e crimes propriamente militares, assim estabelecidos, respectivamente nos regulamentos disciplinares da Marinha, Exército e Aeronáutica, bem como no CPM. Tal diferenciação desse tratamento excepcional, cujas bases são a hierarquia e a disciplina, acaba por afastar, sobretudo, a impetração de habeas corpus, no que tange a punições disciplinares, como preceitua o parágrafo 2º do artigo 142 da Lei Maior, que diz “Não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares.”[46]

Em discordância com a disposição do não cabimento do remédio constitucional, na hipótese supramencionada, constata-se polêmica doutrinária, à medida que poderiam existir ameaças à restrição da liberdade, ante à apuração de eventual falta disciplinar. Nesse sentido, Jorge Cesar de Assis[47] aponta o estabelecimento de três correntes distintas de entendimentos quanto ao cabimento do habeas corpus: a primeira posição, extremamente rígida em virtude da proteção conferida aos conceitos de hierarquia e disciplina, inadmite o cabimento desta ação constitucional; a segunda, intermediária e mitigada, concorda com o não cabimento da ordem nas punições disciplinares, contudo, sustenta que a vedação deve ser dirigida apenas ao mérito do ato disciplinar, o qual possui natureza administrativa, não havendo impedimento do exame quanto à legalidade da punição a ser aplicada; e, finalmente, a terceira corrente, considerada liberal, concorda com a possibilidade de concessão de habeas corpus em relação às transgressões disciplinares, permitindo, desse modo, analisar não apenas os aspectos legais do ato disciplinar atacado, mormente, o próprio mérito daquele ato administrativo essencialmente militar.[48]

Vale destacar que o Supremo Tribunal Federal adota o entendimento trazido pela segunda corrente, qual seja, do cabimento de habeas corpus para questionamento quanto à legalidade do ato somente, não em relação ao mérito. Para exemplificar, segue parte da ementa da decisão proferida pelo Ministro Joaquim Barbosa, relator no julgamento do HC n° 97058, o qual tornou-se precedente para inúmeras outras decisões:

HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. WRIT SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. NÃO CABIMENTO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. REAPRECIAÇÃO DE PROVA. DOSIMETRIA. IMPOSSIBILIDADE. 1. O Habeas Corpus, instrumento de tutela primacial de liberdade de locomoção contra ato ilegal ou abusivo, tem como escopo precípuo a liberdade de ir e vir. 2. Deveras, a cognominada doutrina brasileira do habeas corpus ampliou-lhe o espectro de cabimento, mercê de tê-lo mantido como instrumental à liberdade de locomoção. 3. A inadmissibilidade do writ justifica-se toda vez que a sua utilização revela banalização da garantia constitucional ou substituição do recuso cabível, com inegável supressão de instância. 4. Consectariamente, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é assente no sentido de que não cabe habeas corpus: a) Nas hipóteses sujeitas à pena de multa (Súmula 693 do STF); b) Nas punições em que extinta a punibilidade (Súmula 695 do STF); c) Nas hipóteses disciplinares militares (art. 142 § 2º da CRFB), salvo para apreciação dos pressupostos da legalidade de sua inflição; d) Nas hipóteses em que o ato atacado não afeta o direito de locomoção, vedada a aplicação do princípio da fungibilidade; (...) Precedentes (HC 97058, Relator(a): Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, julgado em 01/03/2011; HC 94073, Relator(a): Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, julgado em 09/11/2010)[49] [grifo nosso].

Já se encaminhando para o desfecho, é oportuna a referência à reforma do Poder Judiciário, lembrada por Vasconcelos, advinda com a Emenda Constitucional n° 45 de 2004, a qual trouxe a ampliação da competência da Justiça Militar dos Estados[50] que, em primeira e segunda instâncias, passaram processar e julgar os crimes militares praticados pelos policiais e bombeiros (art. 125, §§ 3º e 4º da CF). Ademais, ampliou-se a competência da judicatura castrense para processar e julgar as ações judiciais contra atos disciplinares militares estaduais.

Pela sabedoria do Dr. Ronaldo João Roth, juiz de auditoria militar, possível é a constatação de que, ao respectivo Tribunal de Justiça Militar, além da competência recursal naquelas matérias, possui a competência originária de decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.[51] Nessa senda, após a reforma trazida pela referida emenda constitucional, a jurisdição beligerante estadual acumulou a competência civil e administrativa para as ações judiciais contra atos disciplinares.

Sobre a autora
Larissa Oliveira Sudário Diniz

Bacharela em Ciências Sociais e Jurídicas, graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (2012-2016), aprovada no XIX Exame da OAB. Especialista em Direito Militar e pós-graduanda em Direito Administrativo pela Faculdade Venda Nova do Imigrante - FAVENI. Iniciou sua formação superior, em 2011, na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), transferindo-se para a UFSM no ano seguinte. Foi pesquisadora bolsista do Centro de Ciências Sociais e Humanas da UFSM, no projeto de pesquisa "Acompanhamento do egresso cotista: uma avaliação no âmbito do curso de Direito". Foi estagiária bolsista no Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, na 3ª Promotoria de Justiça Cível e na 8ª Promotoria de Justiça Criminal e no Núcleo de Assistência Judiciária Gratuita da UFSM.

Informações sobre o texto

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