Usa-se o jargão popular “como Pilatos no Credo” para expressar o fato de uma pessoa ter sido posta numa situação qualquer sem que sua presença fosse útil ou necessária. O “Credo” cristão (do latim, “creio”) é uma oração por meio da qual o crente declara sua confiança no poder de Deus. Em certo ponto, ao falar da via-crúcis do filho do Criador, a oração diz “padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado” etc. Bastaria dizer “padeceu, foi crucificado etc” e, mesmo assim, a oração conservaria a sua beleza[1]. A alusão ao nome de Pilatos é totalmente desnecessária.
A figura do preposto de empresa na Justiça do Trabalho é mais ou menos idêntica à de Pilatos. Onde está escrito na CLT ou em alguma lei aplicável ao processo do trabalho que o presentante do patrão deve ser empregado da sociedade empresária demandada pelo ex-empregado, pelo sindicato ou pelo Ministério Público do Trabalho nas causas em que atuam como autores?
Em lugar nenhum!
Pior: onde está escrito que o representante da empresa somente pode ser aceito em audiência, nessa condição, se apresentar ao juiz uma “carta de preposto”?
Em lugar nenhum!
A origem histórica do preposto, e da também inexigível “carta de preposto”, está no Direito Comercial[2]. Como sabem, o Direito Comercial é fortemente costumeiro. Antigamente, como as praças de comércio eram distantes umas das outras, e de comunicação difícil, o auxiliar de comércio que, em nome do comerciante, se aventurava na mercancia em outras praças tinha de apresentar aos clientes da praça visitada um documento escrito, uma “carta”, por meio da qual o comerciante visitado soubesse que aquele sujeito era preposto do comerciante longínquo, e podia falar por ele, obrigando-o com seus atos. Essa tal “carta de preposto” desembocou no processo do trabalho, mas a partir de quando, e pelas mãos de quem, não se sabe.
O art.9°, §4°, da L.9.099/95[3], diz:
Art. 9º Nas causas de valor até vinte salários mínimos, as partes comparecerão pessoalmente, podendo ser assistidas por advogado; nas de valor superior, a assistência é obrigatória.
§4o O réu, sendo pessoa jurídica ou titular de firma individual, poderá ser representado por preposto credenciado, munido de carta de preposição com poderes para transigir, sem haver necessidade de vínculo empregatício.
O §1° do art.843, da CLT, diz:
“§ 1º - É facultado ao empregador fazer-se substituir pelo gerente, ou qualquer outro preposto que tenha conhecimento do fato, e cujas declarações obrigarão o proponente”.
Como visto, a CLT em momento algum exige que o representante da empresa seja empregado. Como não é omissa, nenhuma outra legislação é aplicável sobre o ponto.
A Súmula n° 377, do TST, porém, diz:
“Preposto. Exigência da condição de empregado.
Exceto quanto à reclamação de empregado doméstico, ou contra micro ou pequeno empresário, o preposto deve ser necessariamente empregado do reclamado. Inteligência do art. 843, §1°, da CLT e do art.54 da Lei Complementar n° 123/2006. (ex-OJ n° 99 - Inserida em 30.5.1997).
Na redação da súmula n° 377, o raciocínio do TST — equivocado, por sinal — para exigir que o preposto do empregador seja necessariamente empregado partiu da seguinte lógica: se o §1° do art.843 da CLT diz que o empregador pode ser representado pelo gerente ou qualquer outro preposto que tenha conhecimento dos fatos, e o gerente é necessariamente empregado, então esse “qualquer outro preposto” deve ser lido como “qualquer outro empregado”. O erro é palmar porque o gerente de empresa não precisa ser necessariamente empregado. E a CLT, não sendo omissa, não pode ser complementa por nenhuma outra legislação acessória. O TST parte de uma premissa falsa, de uma falácia[4].
A L.n° 13.467/2017[5], que entrou em vigor em 11 de novembro de 2017, ao dar nova redação ao §3° do art.843, da CLT, diz:
“O preposto a que se refere o §1º deste artigo não precisa ser empregado da parte reclamada.”
Pois bem: para as ações ajuizadas após 11/11/2017, vale a lei nova e o representante da empresa não precisa ser empregado. Para as ações trabalhistas ajuizadas antes da L.n 13.467/2017, o representante legal da empresa deve ser necessariamente empregado se a audiência foi realizada até a entrada em vigor da nova lei. Se, embora ajuizada antes da lei nova, a audiência se realizar depois de sua publicação, o preposto não precisa ser empregado da empresa porque vigora entre nós o princípio do isolamento dos atos processuais. Explico melhor: nosso ordenamento jurídico adota a máxima “tempus regit actum”, isto é, o tempo rege o ato. Em regra, as leis dispõem para o futuro. Para saber se uma lei também dispõe para o passado, a doutrina costuma adotar três sistemas:
1o – Sistema da Unidade Processual;
2o – Sistema das Fases Processuais;
3o – Sistema do Isolamento dos Atos Processuais.
Pelo primeiro sistema (unidade processual), o processo é um todo, encadeado para um único fim: a sentença. Assim, ainda que o processo esteja em curso, a lei nova o apanha nesse estado e passa a disciplinar as suas fases, tornando ineficazes os atos praticados na constância da lei antiga. Para o segundo sistema (fases processuais), o processo é uma soma de fases autônomas (postulatória; probatória; decisória e recursal) e cada fase constitui-se de um conjunto inseparável de atos. Para o último sistema (isolamento dos atos processuais), o processo é uma unidade que busca um fim (sentença), mas seus atos podem ser considerados isoladamente para a aplicação da lei nova e, assim, como a lei nova tem efeito imediato e geral e apanha o processo em seu desenvolvimento, mas respeita a eficácia dos atos já praticados na constância da lei velha, apenas os atos processuais que ainda tiverem de ser praticados serão alcançados pela lei nova.
É o sistema adotado pelo nosso ordenamento.
Portanto, se a audiência já se realizou antes da L.n° 13.467/2017, o preposto deve ser empregado porque a jurisprudência uniformizada pelo TST assim o exigia, embora contra a lei. Se a audiência ainda não se realizou, ainda que a ação tenha sido ajuizada antes da L. n° 13.467/2017, o preposto não precisa ser empregado (CLT, art.843, §3°, com a redação da L.n° 13.467/17).
Comecei este artigo com um jargão e finalizo com outro: “cautela e caldo de galinha nunca mataram ninguém”. Se me permitem um bom conselho, enquanto isso não se pacifica na jurisprudência, ou no próprio TST, se vocês são empresários e foram demandados na Justiça do Trabalho, credenciem prepostos que sejam empregados.
Nos meus trinta anos de judicatura já vi de tudo no foro.
Notas
[1] Pôncio Pilatos foi prefeito (prefectus) da província romana da Judeia de 26 d.C. a 36 ou 37 d.C., e, dizem os doutores, com sua omissão (“lavo minhas mãos no sangue do justo”) condenou Jesus à morte.
[2] O Código Comercial Brasileiro é de 1850. A primeira parte foi revogada pelo Código Civil de 2002.
[3] Lei dos Juizados Especiais
[4] O termo “falácia” vem do verbo latino “fallere”, enganar. Em Lógica, designa-se por falácia um raciocínio errado com aparência de verdadeiro.
[5] Reforma Trabalhista