Na linha do que já vem sendo sustentado, não é novidade a afirmação no sentido de que a Lei de Organizações Criminosas, mormente no que toca ao instituto da colaboração premiada, ainda tem causado diversos questionamentos, os quais, ao que a prática parece indicar, estão longe de pacificidade.
Por meio do presente artigo, porém, trar-se-ão, alinhando prática e teoria, algumas reflexões no tocante à problemática que figura como título deste texto. Isso porque, como se verá mais adiante, diversos acordos de colaboração premiada têm estabelecido como cláusula de rescisão a prática de novo crime, após a homologação judicial da avença.
Ocorre, no entanto, que as cláusulas contratuais, tal como vêm sendo postas nos pactos premiais formulados entre colaborador e Ministério Público[1], dada a amplitude semântica e a indeterminação conceitual, têm causado certa preocupação, justamente em razão da margem interpretativa que fornecem aos contratantes, bem assim ao intérprete dos negócios jurídicos processuais.
Veja-se, por exemplo, o multicitado acordo de colaboração premiada de Paulo Roberto Costa[2], formulado no bojo da “Operação Lava Jato”, o qual, na “Parte X – Rescisão”, estabeleceu, mais precisamente na letra “f” da cláusula 23, que “o acordo perderá efeito, considerando rescindido ipso facto, se o colaborador vier a praticar qualquer outro crime, após a homologação judicial da avença”.
No mesmo sentido, cite-se o famigerado pacto premial de Alberto Youssef[3], constante da mesma operação, em que, na “Parte X – Rescisão”, também na letra “f”, fez constar que o acordo perderia seus efeitos “se o colaborador vier a praticar qualquer outro crime doloso, após a homologação da avença”.
O questionamento que se apresenta parece evidente: o que se entende por prática de qualquer outro crime doloso? Qual o momento se constata a prática de crime?
Primeiramente, impõe-se consignar que o fenômeno social “crime” comporta diversas acepções, não sendo correta a simplificação do termo. Guilherme de Souza Nucci, a propósito, leciona que “o conceito de crime é artificial, ou seja, independe de fatores naturais, constatados por um juízo de percepção sensorial, uma vez que se torna impossível classificar uma conduta, ontologicamente, como criminosa”. [4]
Nesse panorama, dada a complexidade que situação envolve, ao abordar-se a temática, devem-se levar em conta, no mínimo, três aspectos. Num primeiro momento, sob o ponto de vista material ou substancial, o crime nada mais seria, segundo observa Gustavo Junqueira, do que uma “ação humana que, consciente ou voluntariamente, lesa ou expõe a risco de grave lesão bem jurídico vital para a vida em sociedade, que de outra forma, que não a intervenção penal, não poderia ser protegido”.[5]
Num segundo aspecto, conceitua-se o fenômeno crime de um viés legal, através do qual, em síntese, é aquilo que assim o entender o legislador. Veja-se, aliás, que, a despeito de o Código Penal não contar com nenhum dispositivo explicitando o que seja crime, o artigo 1º, da Lei de Introdução ao Código Penal – Decreto-lei 3.914/1941 –, dispõe que “Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa”.
Por fim, porém não menos importante, tem-se a perspectiva do conceito analítico, formal ou dogmático de crime, segundo a qual, na visão majoritária[6] das doutrinas nacional e internacional, seria uma conduta típica, ilícita e culpável [corrente tripartite].
A toda evidência, parece elementar que somente será válida a rescisão do acordo de colaboração premiada, com base na prática de crime, quando estiver comprovado, de fato, que um crime foi praticado. Tal afirmação pode parecer lógica, mas a reflexão se faz necessária.
A questão que se coloca, portanto, é: em qual momento se pode afirmar que o crime foi cometido?
Nesse tocante, deve-se ter em mente que, conquanto a Lei 12.850/2013 tenha dado certa margem negocial aos contratantes no que diz respeito às cláusulas contratuais, a negociação há de observar os parâmetros legais e, sobretudo, os constitucionais, dentre os quais se destacam o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a presunção de inocência, etc., sob pena de sufragar verdadeiras “inconstitucionalidades-contratuais”.
Dessa forma, a valer a máxima nulla poena, nulla culpa sine iudicio, fica evidente a necessidade do processo, a fim de atestar se a dita prática da conduta criminosa existiu, de fato, uma vez que, segundo Aury Lopes Jr., “O processo, como instituição estatal, é a única estrutura que se reconhece como legítima para a imposição da pena”.[7]
Deveras, certo é que a sanção penal, para ser legitimamente imposta, deve observar o devido processo legal, de modo que não se afigura “possível a aplicação da reprovação sem o prévio processo, nem mesmo no caso de consentimento do acusado, pois ele não pode se submeter voluntariamente à pena, senão por meio de um ato judicial (nulla poena sine iudicio)”. [8]
De mais a mais, esclarece-se que não basta, para a comprovação da prática delitiva, assegurar-se apenas a existência de um processo; necessita-se de mais! Deve-se garantir um devido processo legal – due process of law –, o qual vem a ser, de acordo com as palavras de Gustavo Badaró, “um princípio síntese, que engloba os demais princípios e garantias processuais assegurados constitucionalmente”.[9]
Note-se, assim, que, ao se falar em sanção como consequência jurídica da prática de crime, há a imperiosidade de observância ao devido processo legal e todos os seus corolários, dentre eles, o princípio da presunção de inocência, o qual traduz-se no:
[...] direito de não ser declarado culpado senão mediante sentença transitada em julgado, ao término do devido processo legal, em que o acusado tenha se utilizado de todos os meios de prova pertinentes para sua defesa (ampla defesa) e para a destruição da credibilidade das provas apresentadas pela acusação (contraditório). [10]
Nesse panorama, parece revelar-se sensata a afirmação de que, para poder haver a quebra do acordo de colaboração premiada em razão da prática de crime posterior à homologação do contrato processual, tal conduta deve ser passada pelo crivo do poder judiciário, dada a cláusula de jurisdicionalidade, observando-se, sempre e a todo custo, o devido processo legal, o contraditório e ampla defesa, sob pena de indevida punição (seja a pena do crime em si, seja a rescisão do acordo pela pratica de posterior à homologação).
Em outras palavras, não pode uma cláusula meramente contratual dizer quando se dá a prática de crime para fins de “rescisão”, como consta de muitos acordos. Há que se obedecer, dentre tantos, o comando constitucional da presunção de inocência, sob pena de a cláusula constante do acordo de cooperação ser totalmente inconstitucional e, de via direta, inválida e ineficaz.
Mas não é só!
A fim de proporcionar uma análise verticalizada do tema, indaga-se como ficariam tais clausulas – “o acordo perderá efeito, considerando rescindido ipso facto, se o colaborador vier a praticar qualquer outro crime, após a homologação judicial da avença” – no caso de infrações de menor potencial ofensivo, em que se admitem a composição civil dos danos, bem assim a transação, e naquelas de médio potencial ofensivo, nas quais se oportuniza a suspensão condicional do processo [sursis processual – art. 89, 9.099/95]?
Ora, a composição civil dos danos, como se sabe, implementa um direito penal de terceira via, “em que se erige a reparação do dano como um dos objetivos primordiais da persecução penal (fenômeno da “privatização do direito penal)”.[11] Portanto, mais que a punição do agente delitivo, busca-se a reparação do dano à vítima da conduta criminosa.
Compostas as partes, nos casos de ação penal pública de inciativa privada ou pública condicionada à representação, extingue-se o direito de queixa ou representação, respectivamente, operando-se a extinção da punibilidade do agente, em tese, delitivo, mesmo sem sequer ter havido processo, uma vez que o instituto incide na fase preliminar, em momento anterior ao oferecimento da denúncia.
Situação parecida ocorre com a transação penal, a qual, na dicção de Renato Brasileiro, “consiste em um acordo celebrado entre o Ministério Público (ou querelante, nos crimes de ação penal privada) e o autor do fato delituoso, por meio do qual é proposta a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, evitando-se, assim, a instauração do processo”.[12]
Observe-se, por pertinente, ainda com supedâneo nos escólios do precitado autor, que a “decisão que homologa a transação penal não gera reincidência, reconhecimento de culpabilidade, nem tampouco efeitos civis ou administrativos, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de 5 (cinco) anos”.[13]
Nesse mesmo sentido, a corroborar a ausência de admissão de culpa nos casos de transação penal, veja-se paradigmático precedente em que a terceira turma do Superior Tribunal de Justiça, no bojo do Recurso Especial 1.327.897 - MA (2012/0118056-8), de relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, in verbis:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. TRANSAÇÃO PENAL. REALIZAÇÃO. RECONHECIMENTO DE CULPA. IMPOSSIBILIDADE. ART. 535 DO CPC/1973. SÚMULA Nº 284/STF. FUNDAMENTOS. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO. SÚMULA Nº 283/STF. DEMONSTRAÇÃO DE NEXO DE CAUSALIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. SÚMULA Nº 7/STJ.
1. Cinge-se a controvérsia a saber se a transação penal disposta na Lei nº 9.900/1995 importa reconhecimento de culpabilidade do réu a ensejar a pleiteada indenização por danos morais.
2. O instituto pré-processual da transação penal não tem natureza jurídica de condenação criminal, não gera efeitos para fins de reincidência e maus antecedentes e, por se tratar de submissão voluntária à sanção penal, não significa reconhecimento da culpabilidade penal nem da responsabilidade civil. Precedentes.
3. O recurso especial que indica violação do artigo 535 do Código de Processo Civil de 1973, mas não especifica a omissão, contradição ou obscuridade a que teria incorrido o aresto impugnado e qual sua importância no desate da controvérsia, é deficiente em sua fundamentação, atraindo o óbice da Súmula nº 284/STF.
4. Não havendo impugnação dos fundamentos da decisão atacada, incide na espécie a Súmula nº 283/STF.
5. O Tribunal estadual concluiu pela ausência de comprovação do nexo causal e de culpa do recorrido, não sendo possível a esta Corte rever tal entendimento, sob pena de esbarrar no óbice da Súmula nº 7/STJ.
6. Recurso especial não provido.
Com efeito, ainda que tenha ocorrido a prática de um ato, em tese, criminoso, se o agente delitivo aceitar, por exemplo, a transação penal, não será possível falar-se em crime e, portanto, incabível será, por evidente, a rescisão do acordo de colaboração premiada.
Tal situação, a propósito, se repete nos casos em que se tem a figura do intitulado sursis processual, previsto no artigo 89, da Lei 9.099/95, que se aplica a todos os crimes previstos, tanto no Código Penal quanto na legislação penal extravagante.
De acordo com tal dispositivo, “nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena”.
Veja-se que acordo de colaboração premiada poder prever o perdão judicial, de modo que não há(verá) qualquer efeito extrapenal da condenação, na medida em que, em sintonia com a Súmula 18, do Superior Tribunal de Justiça, “A sentença concessiva do perdão judicial é declaratória da extinção da punibilidade, não subsistindo qualquer efeito condenatório”.
Dessa forma, mesmo que o agente tenha praticado vários delitos – abarcados pelo acordo de colaboração –, é perfeitamente possível a suspensão condicional do processo, a impedir, inclusive, a quebra do acordo, tendo em vista que, tal qual a transação, a suspensão condicional do processo não implica em admissão de culpa, não havendo que se falar, assim, em prática de crime.
Nesse sentido:
PROCESSO CIVIL E CIVIL. INDENIZAÇÃO. FINANCIAMENTO BANCÁRIO. AQUISIÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. ADULTERAÇÃO DE DOCUMENTO ÚNICO DE TRANSFERÊNCIA POR FUNCIONÁRIO DO BANCO. ILEGITIMIDADE PASSIVA. NÃO OCORRÊNCIA. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. DENÚNCIA POR CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO. ACEITAÇÃO DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO QUE NÃO IMPLICA CONFISSÃO DE CULPA. DANO MORAL CARACTERIZADO. QUANTUM. REDUÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. EXPEDIÇÃO DE NOVO CRV E DUT. DEVER DO BANCO. HONORÁRIOS. MANUTENÇÃO.
1) Estará caracterizada a legitimidade das partes quando constatada a existência de um vínculo entre o autor da ação e a parte contrária, sendo parte passiva legítima aquele a quem caiba a contrapartida obrigacional relativa ao direito material objeto da ação;
2) É solidária a responsabilidade na reparação do dano quando estabelecida a relação triangular entre consumidor e fornecedores [art. 7º do CDC];
3) Configura-se o dano moral suscetível de responsabilizar quem lhe deu causa a adulteração de documento único de transferência do veículo - DUT por funcionário do Banco financiador de empréstimo, ainda mais quando isso implica na apreensão do veículo e documento do proprietário - consumidor - e propositura de Ação Penal por prática do crime previsto no art. 304 do CP contra ele;
4) A aceitação da proposta de suspensão condicional do processo [art. 89 da Lei nº 9.099/1995] não implica confissão de culpa por parte do acusado nem exime o causador do dano de sua responsabilidade civil;
5) Tendo em vista a sua natureza compensatória da dor, o valor da indenização por dano moral, para além da subjetividade que lhe é própria, deve ser fixado com base nas seguintes circunstâncias objetivas, pelo menos: gravidade do ato ilícito que está em sua base; consequências desse ato na esfera íntima ou de relação da pessoa ofendida; condições socioeconômicas da vítima e porte econômico do ofensor, não se havendo falar em redução quando o valor fixado pela origem mostra-se justo e adequado aos fatos e ao direito;
6) A instituição financeira é responsável pela entrega ao arrendatário do certificado de registro de veículos CRV, permitindo que o departamento de trânsito promova a transferência para o atual proprietário;
7) Honorários advocatícios arbitrados moderadamente, com base na natureza e importância da causa, bem como no grau de zelo e no tempo expendido pelo causídico em sua execução, não merecem mitigação; 8) Recurso do réu Banco Itauleasing S/A desprovido e prejudicado o apelo da ré Aragão veículos LTDA.
(TJ-AP - APL: 00087804520128030002 AP, Relator: Desembargador RAIMUNDO VALES, Data de Julgamento: 30/09/2014, CÂMARA ÚNICA)
Como se nota, de acordo com a atual sistemática processual penal, cujos fundamentos respaldam-se na Constituição Federal, ninguém poderá ser considerado culpado senão depois do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Destarte, antes da preclusão do decisum condenatório, descabe falar-se em prática de crime, o que, por evidente, impede, como dito, a rescisão de acordo de colaboração premiada com base nesse tipo de cláusula [inconstitucional].
Na mesma senda, em havendo aceitação das medidas despenalizadoras, previstas na Lei 9.099/95 [composição civil dos danos, transação penal e sursis processual], resta obstada a constatação da prática delitiva, porquanto tais institutos, à evidência, não implicam em admissão de culpa, de modo que também seria equivocado rescindir-se o acordo de colaboração com base em suposta prática de crime que teve sua persecutio abortada.
Ademais, defende-se, igualmente, que a cláusula “prática de qualquer crime após a homologação do acordo”, tal como grafada nos [muitos] “contratos colaboracionais”, extrapola qualquer parâmetro de bom senso, fere frontalmente a ordem constitucional, além de causar inefável insegurança jurídica, não encontrando qualquer finalidade lógica.
Assim se argumenta, na medida em que a dita “prática de crime” deve guardar "pertinência delitiva”, correlação com aqueles delitos objeto da colaboração, haja vista que seria um verdadeiro absurdo sustentar-se a quebra de um acordo de colaboração premiada, o qual abarcou uma estruturada organização criminosa, porque o colaborador praticou uma infração totalmente desconexa com os crimes apurados.
À guisa de conclusão, tem-se que a quebra do acordo de colaboração premiada pela prática de novo crime até pode se justificar, desde que os delitos sejam conexos àqueles constantes do pacto, vale dizer, que possuam a mesma natureza jurídica[14], e que seja observada a presunção de inocência, respeitando-se o disposto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição.
Destarte, para concluir, defende-se que a rescisão do acordo de colaboração premiada, calcada na “prática de novo crime”, deve ser interpretada como “prática de novo crime doloso, após a homologação do pacto premial, desde que tenha a mesma natureza dos fatos albergados no contrato de cooperação” e – o mais importante – somente após a devida formação da culpa, ou seja, após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, sob pena de a cláusula padecer de insuperável inconstitucionalidade.