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A socialização das relações contratuais:

A função social do contrato ante o fenômeno da constitucionalização do direito civil

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Agenda 11/01/2019 às 12:20

3 FUNCIONALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES CONTRATUAIS

Na seara contratual, pode se dizer que a Constituição veio relativizar as obrigações, mitigando a aplicação do pacta sunt servanda. Outras características do Direito Civil contemporâneo, dadas por efeito constitucional, são a despatrimonialização, com a conseqüente repersonalização das relações civis, e a função social do contrato.

Nesse contexto, o contrato deixa de ser apenas um meio de intercâmbio econômico entre indivíduos, onde vontade impera amplamente. A constitucionalização traz para o Direito Civil novos paradigmas renovadores dos institutos privados, que impedem que as relações contratuais sejam consideradas em tão estreita visão.

A doutrina aponta três princípios clássicos da teoria liberal do contrato: o da liberdade contratual, onde verifica-se, dentro dos limites legais, a possibilidade de pactuar na forma como quiserem as partes; o da obrigatoriedade do contrato, que nada mais é do que a força de lei atribuída às convenções (pacta sunt servanda) e, por fim, o princípio da relatividade dos efeitos do contrato, pelo qual a convenção vincula as suas partes, não atingindo terceiros nem para os prejudicar, nem para os beneficiar.

Com o advento do Estado Social de Direito, três novos princípios surgem no cenário das relações contratuais, são eles: boa-fé objetiva, equilíbrio econômico e função social do contrato.

Ressalte-se que tais princípios não surgiram em substituição aos princípios clássicos. Como muito bem leciona Antônio Junqueira de Azevedo, “os anteriores não devem ser considerados abolidos pelos novos tempos, mas certamente, deve-se dizer que viram seu número aumentado pelos três novos princípios”. [36]

 Todavia, tais princípios, além de exercer função de integração e complementação, ainda exercem função modificadora da tradicional teoria contratualista, mitigando, sobretudo, a interpretação dada até então ao princípio da relatividade dos efeitos do contrato.

Seria esse o ponto de partida para a inserção da função social nas relações contratuais e o desenvolvimento da pesquisa como um todo.          

3.1 NOVA PRINCIPIOLOGIA DAS RELAÇÕES CONTRATUAIS

O Novo Código Civil traz, em seu bojo, três novos princípios que informarão, junto com os princípios clássicos, a nova ordem contratual.

Por princípios clássicos podemos entender o da liberdade contratual, o da obrigatoriedade do contrato –  pacta sunt servanda – e o princípio da relatividade dos efeitos do contrato.

O princípio da liberdade contratual enunciava que o contrato era o palco onde a autonomia da vontade das partes sempre deveria predominar, barrada apenas por matérias de ordem pública. Para Cláudia Lima Marques o princípio da liberdade contratual pode ser assim resumido:

A liberdade contratual significa, então, a liberdade de contratar ou de se abster de contratar, liberdade de escolher o seu parceiro contratual, de fixar o conteúdo e os limites das obrigações que quer assumir, liberdade de poder exprimir a sua vontade na forma que desejar, contando sempre com a proteção do direito. [37]

Verifica-se, dentro dos limites legais, a possibilidade de pactuar na forma como quiserem as partes, podendo, o contrato estabelecer a lei entre as partes, o que remete ao princípio seguinte.

O princípio da obrigatoriedade do contrato, ou pacta sunt servanda, sempre figurou como um corolário do direito das obrigações, praticamente inatacável. Segundo o princípio do pacta sunt servanda, os contratos devem ser cumpridos, independentemente de qualquer fator ou circunstância porventura superveniente no interregno entre a celebração do pacto e o seu adimplemento. Essa foi por muito tempo uma regra muito forte no Direito das Obrigações, e nada mais é do que a força de lei atribuída às convenções.

Claro que tal perspectiva já não permanece a mesma na atual ordem jurídica, mitigada pela cláusula rebus sic stantibus e pela função social.

Finalizando os princípios clássicos, tem-se o princípio da relatividade dos efeitos do contrato, pelo qual a convenção vincula as suas partes, não atingindo terceiros nem para os prejudicar, nem para os beneficiar.

Na verdade o que se observa é que muitas vezes um contrato celebrado por duas partes acaba por atingir uma terceira, ou mesmo toda uma coletividade. Assim, percebe-se que, as vezes, o contrato escapa à observância de tal princípio, restando à função social o papel de inibir efeitos maléficos à sociedade, observando-se uma abstenção, ou de impor uma função ao instrumento contratual, consumado pela realização de um dever.

Essa principiologia informou o direito das obrigações durante muitos anos, e, com o advento do Estado Social de Direito, três novos princípios surgem no cenário das relações contratuais, são eles: boa-fé objetiva, equilíbrio econômico e função social do contrato.

A nova principiologia não veio abolir os princípios clássicos, como anteriormente asseverado, mas sim exercer uma função de integração e complementação e modificação da tradicional teoria contratualista, trazendo, sob sua ótica, uma nova maneira de reler-se as relações contratuais.

Os novos princípios informadores das relações contratuais são: princípio da boa-fé objetiva, do equilíbrio econômico do contrato e o da função social do contrato.

Pelo princípio da boa-fé objetiva, insculpido no art. 422 do Código civil, “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, princípios de probidade e boa-fé”.

A boa-fé objetiva é concebida como uma regra de conduta fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração de que todos os membros da sociedade são juridicamente tutelados, antes mesmo de serem partes nos contratos. O contraente é pessoa e como tal deve ser respeitado.

Como o dispositivo do artigo 421 se reporta a boa-fé objetiva, é importante que se faça a distinção entre esta e a boa-fé subjetiva. Nesta última o manifestante de vontade acredita que sua conduta é correta, tendo em vista o grau de conhecimento que possui acerca de um negócio.

Por outro lado, a boa-fé objetiva tem outra dimensão. O intérprete parte de um padrão de conduta comum, do homem médio, naquele caso concreto, levando em consideração os aspectos sociais envolvidos. Desta maneira, a boa-fé objetiva se traduz de forma mais perceptível, como uma regra de conduta, um dever de agir de acordo com determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos.

A boa-fé objetiva teve seu conceito oriundo do BGB (Bürguerliches Gesetzbuch), que em seu parágrafo 242 já determinava um modelo de conduta. Cada pessoa deve agir como homem reto: com honestidade, lealdade e probidade. Leva-se em conta os fatores concretos do caso, não sendo preponderante a intenção das partes, a consciência individual da lesão ao direito alheio ou da regra jurídica. O importante é o padrão objetivo de conduta.

Para finalizar, acerca dos padrões de conduta, cabe destacar a doutrina de Humberto Theodoro Júnior, que enuncia a não previsão legal desses padrões, visto que são variáveis no espaço e no tempo. [38]

Quanto ao princípio do equilíbrio econômico do contrato visa resguardar os contratantes de eventos que possam alterar a equação econômico-social da avença. Protege, em verdade contra a lesão e contra a onerosidade excessiva, institutos com previsão a partir da nova codificação. É esse também o entendimento de Humberto Theodoro Júnior ao se referir que “o sinalagma contratual leva a ordem jurídica a proteger o contratante contra a lesão e a onerosidade excessiva”. [39]

Em caso de lesão, torna-se possível a anulação do contrato pela parte que age sob premente necessidade ou por inexperiência. No caso de onerosidade excessiva, o princípio do equilíbrio econômico do contrato permite a resolução do contrato ou sua revisão a fim restabelecer o equilíbrio econômico contratual.

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Acerca do princípio da função social do contrato, que será adiante melhor explicitado posto que um dos principais objetos do presente estudo, cabe por hora tratar, em linhas gerais, em que consiste.

Ao estabelecer, como um dos fundamentos da república, o valor social da livre iniciativa, – art 1º, IV – a Constituição trouxe a idéia de função social do contrato. Para Antônio Junqueira de Azevedo, a referida disposição constitucional “impõe, ao jurista, a proibição de ver o contrato como um átomo, algo que somente interessa às partes, desvinculado de tudo mais. O contrato, qualquer contrato, tem importância para toda a sociedade”. [40]

É por essa razão que Humberto Theodoro Júnior assevera que:

O princípio da função social, nessa perspectiva, não se volta para o relacionamento das partes contratantes, mas para os reflexos do negócio jurídico perante terceiros (isto é, no meio social). É o que se deduz do próprio nome com que o princípio se identifica. [41]

Ou seja, o contrato deixa de ser inerente apenas às pessoas dos contratantes, passando a influenciar na órbita de terceiros, de maneira positiva ou negativa.

É de se apontar que a autonomia privada não desaparece, e continua sendo um dos sustentáculos do Direito Privado. Ocorre que o poder individual que emana da autonomia privada agora é limitado em função de idéias como justiça e solidariedade social, que passam a ostentar a condição de princípios informadores da nova ordem contratual, intrumentalizados pelo princípio da boa-fé e da função social, respectivamente.

A função social do contrato assume importante papel na atual conjuntura do Direito Privado, pois é ela quem, na prática, fornecerá os subsídios para o cumprimento do princípio da solidariedade social insculpido na Constituição da República.

Resta entender em que consiste a funcionalização dos institutos jurídicos e qual seu âmbito de abrangência e aplicação, a fim de tornar a compreensão da função social algo mais inteligível.

3.2 FUNCIONALIZAÇÃO DOS INSTITUTOS JURÍDICOS

Por razões metodológicas, deve-se investigar do que se trata a funcionalização dos institutos jurídicos e a que se propõe no contexto jurídico contemporâneo.

A sociabilidade dos institutos jurídicos, carro chefe da filosofia culturalista de Miguel Reale e que influenciou, sobremaneira, a nova moldagem assumida pelos modelos jurídicos privados contemporâneos, é a pedra de toque da reconstrução e evolução e repersonalização do Direito Privado, surgindo em substituição ao individualismo, humanizando as relações sociais a partir do conceito de função social.

Não se pode olvidar que os direitos são outorgados ao homem para permitir que este preencha sua função na sociedade, não existindo razão para que seu exercício possa subtrair da fruição comum bens considerados úteis a todas as pessoas. 

Articula-se, nesse contexto, a função social enquanto categoria de status constitucional e como cláusula geral prevista no Código Civil, vislumbrando Eros Roberto Grau [42], uma natureza de princípio jurídico na função social, princípio este informador de toda a ordem econômica nacional.

As relações jurídicas entabuladas sob o espaço que o Estado reserva à autonomia privada devem atender à categoria da função social, favorecendo o entrelaçamento dos institutos do direito privado com o direito público.       

A funcionalização dos institutos jurídicos é de fundamental importância no contexto de reconstrução do direito privado, relendo-o à luz da Constituição.

Funcionalização pode ser compreendida como a atribuição ao instituto jurídico uma finalidade ou impor-lhe um papel social. Pode ser entendido também como a quebra da auto-suficiência do Direito, permeando-o ou “oxigenando suas bases” com elementos provenientes de outras ciências, como a Sociologia, Economia, Filosofia, etc.[43]

Funcionalizar é atribuir um papel a desempenhar; é uma obrigação a cumprir por parte de um indivíduo ou instituição.

Contudo, não é a funcionalização dos institutos jurídicos, teoria fácil de ser desenvolvida ante o dogmatismo arraigado em nosso Direito Privado. Porém, sua fundamentação torna-se mais palpável partindo-se da idéia de solidariedade social como condicionante da autonomia privada.

Na prática, como anteriormente ressaltado, o instrumento de aplicação da solidariedade social é justamente a função social, tanto da propriedade quanto do contrato.

3.3 PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO

O Princípio da função social do contrato, ou princípio da livre iniciativa e de seu valor social, emana de mandamento constitucional, daí a razão deeo que a ucional, daí poristado pela burguesia de outrora se fazer necessário todo o estudo da Constituição e seus efeitos no Direito Privado, mais notadamente no Direito Civil.

Na Constituição de 1988 ainda é visível o espaço de liberdade econômica outrora conquistado pela burguesia e mantido pelo sistema capitalista atualmente em voga. Desta maneira, atribui-se às pessoas um espaço livre da ingerência do Estado – e de outras pessoas, haja vista a eficácia horizontal das normas constitucionais, anteriormente vista – no que toca às atividades econômicas empreendidas, entre elas o contrato.

Entretanto, por força dos influxos sociais que passaram a permear os valores das Constituições do início do século XX, há um claro compromisso da nossa Lei Maior em não admitir a ingerência do Estado no espaço de liberdade econômica conferido às pessoas se e enquanto não se ferir qualquer outro valor constitucional, sobretudo os valores atinentes à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e à construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), que visa a erradicação da pobreza e das desigualdades sociais (art. 3º, III).

Logo, a livre iniciativa deve atender a seu valor social (art. 1º, IV). Impõe a Constituição de 1988 que o princípio da livre iniciativa seja, na doutrina de Eros Roberto Grau,

[...] tomada no quanto expressa de socialmente valioso; por isso não pode ser reduzida, meramente, à feição que assume como liberdade econômica, empresarial [...]; pela mesma razão não se pode nela, livre iniciativa, visualizar tão-somente, apenas, uma afirmação do capitalismo. [44]

Assim, contempla-se na Lei Maior a função social do contrato, pois admitindo-se, desde a Constituição de Weimar de 1919, que a propriedade deve ter uma função social (a propriedade “obriga”), o seu instrumento, o contrato, deve-lhe seguir a sorte. Daí se dizer, segundo Roberto Rosas, que o “princípio da função social da propriedade aplica-se às obrigações, aos créditos e aos contratos”. [45]

No mesmo sentido, Arnoldo Wald:

[...] a partir do momento em que o direito constitucional brasileiro considerou que a propriedade tinha uma função social (art. 5º, XXIII), tendo a palavra propriedade uma conceituação ampla, o mesmo princípio haveria de ser aplicado aos direitos de créditos, ou seja, às obrigações e, conseqüentemente, aos contratos.[46]

A função social do contrato surge da constatação de que “o contrato tem um impacto que transcende a ‘privacidade’ das partes” [47], pois ele passa a ter efeitos distributivos [48], ou seja, visa, mediante a circulação das riquezas produzidas pela sociedade, ser um instrumento democrático de acesso a bens ou à riqueza, de sorte que é “o contrato que proporciona a subsistência de toda a gente. Sem ele, a vida individual regrediria, a atividade do homem limitar-se-ia aos momentos primários” [49].

Assim, a livre iniciativa não deve atender tão-só os interesses privados e egoísticos dos contratantes, mas constituir em fator de incremento na produção e circulação das riquezas, fomentando, com isto, o acesso de todos a bens.

O novo Código Civil, em seu artigo 421, impõe, agora expressamente, que a contratação se dê nos limites e em razão da função social do contrato. Impôs, com efeito, uma orientação com duplo enfoque: função social como limite à liberdade de contratar e função social como vetor a ser observado no exercício da liberdade de contratar. Com efeito, a liberdade de contratar deve não só abster-se de criar embaraço a outras liberdades (v.g., de concorrência) ou direitos (v.g., direitos do consumidor, direito de todos ao meio ambiente equilibrado etc.), como também orientar-se positivamente a “cumprir seu papel” no fomento da atividade econômica (e.g., celebrar um contrato de locação para efetivamente ocupar um imóvel, e não contrair obrigação de se abster de locá-lo por determinado tempo).

É bem visível, também, a íntima relação que há entre os princípios constitucionais, pois a liberdade de iniciativa é a alavanca da livre concorrência, pois, quanto maior a proteção à liberdade de estabelecer empresa, contratar, se associar etc., maior será o fomento à concorrência que, em última análise, facilitará o acesso de todos a bens, serviços, dignificando, portanto, a pessoa humana e reduzindo as desigualdades de ordem material.

No que concerne à cláusula geral da função social, estatui o novo Código no art. 421 que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, conforme Anteriormente asseverado.

A inovadora regra de abertura das disposições gerais dos contratos decorre, como já observado, da incidência da socialidade que, juntamente com a eticidade e operabilidade, constituem os três princípios fundamentais que inspiraram a elaboração do novo Código Civil brasileiro.

Tratando-se de um princípio estruturante é apropriado sustentar que o mesmo constitui o fundamento de todo o Código.

Na prática, a expressão liberdade de contratar deve ser interpretada em sentido amplo. Atina tanto com a possibilidade de escolher com quem contratar, como também com a liberdade de discutir o conteúdo, as cláusulas do contrato, em igualdade de condições com a outra parte, tudo na conformidade com a cláusula geral da função social.

O dispositivo mitiga o princípio de que o contrato é entabulado para operar apenas entre as partes, na medida em que dirige sua preocupação para os terceiros (sociedade em geral), que embora não participando da avença, de um modo ou de outro, podem ter que suportar os seus efeitos.

Abranda-se a força obrigatória dos contratos para o fim de repugnar a ilicitude e o abuso de direito, afastando-o também dos domínios das obrigações. Conforme acentua Humberto Theodoro Júnior [50], não seria mesmo possível consentir que a liberdade de contratar redundasse em prejuízos injustos para a sociedade e terceiros, que sofreriam os “efeitos externos das obrigações” sem que a elas tivessem aderido.

Incidindo sobre a autonomia privada, a cláusula geral da função social afasta o caráter individualista do contrato, impedindo a veiculação do abuso de direito e da vantagem excessiva, ao passo que reafirma a necessidade de atendimento aos deveres laterais ou anexos de conduta, em especial os de cooperação e solidariedade, decorrentes do princípio da boa-fé objetiva, que o art. 422 do Código impõe a todos os contratantes para, sob a ótica deste estudo, não causar danos a terceiros.

A função social, vista sob outro enfoque, atenua consideravelmente os princípios do pacta sunt servanda e o da relatividade dos efeitos do contrato, na medida em que este tem eficácia social, repercute na sociedade e não apenas inter alios acta.

Essa cláusula geral, por outro lado, reafirma os princípios do equilíbrio contratual e da preservação do pacto, permitindo ao juiz, optar pela solução que melhor prestigie a ética, o interesse do contratante vulnerável e a finalidade do ajuste.

Portanto, na atual conjuntura e reforçando o que foi explanado anteriormente, o contrato não pode ser reduzido à ótica exclusiva dos contratantes. Não se limita a tão-somente favorecer a circulação de riquezas. Destina-se também a promover os valores da solidariedade, da justiça social, da livre iniciativa e, fundamentalmente, o princípio da dignidade da pessoa humana, entendendo-se, por essa razão, que o contrato não pode ser nocivo à sociedade, sob aspecto algum.

E, ao contrário do que alguns doutrinadores entendem, a cláusula da função social não constitui regra inútil e tampouco não pode fazer do contrato espaço para sua aplicação. Pelo contrário, tão relevante é a presença da função social do contrato no sistema de direito privado, que essa cláusula pode até ser elevada ao nível de requisito de validade do negócio jurídico e a sua inobservância pode acarretar a nulidade do ajuste, como será visto a seguir.

Com tal eficácia, a função social, pode ensejar que o julgador ingresse no âmbito interno do contrato, decidindo diversamente da vontade das partes, com o propósito de assegurar o atendimento da função social e do equilíbrio dos pactos.

3.3.1 Função Social Como Princípio Limitador da Autonomia Privada

De tudo que se expôs até o presente momento, pode-se concluir que o princípio da função social funciona como uma espécie de cláusula geral limitadora da autonomia privada.

Abandonada a ótica individualista e puramente patrimonial da velha codificação, com a passagem do Estado liberal para o Estado social, deve o operador do direito servir-se da cláusula geral da função social como instrumento apto a promover a in concreto os valores fundamentais, de modo a impedir abusos e limitar excessos de proveito econômico que cerram as relações jurídicas entre dois sujeitos, deixando à margem o interesse geral que o direito tem de servir, conforme a teoria da função social.

A ultrapassada concepção segundo a qual os particulares, no âmbito da disposição de suas vontades, tudo podem estipular, desde que tenha objeto lícito e não vedado em lei, não se coaduna com o atual estágio de desenvolvimento do Direito Civil. Atualmente, a autonomia privada, a liberdade de iniciativa e a liberdade contratual, encontram limite no interesse social, que se sobrepõe ao interesse dos indivíduos.     

Na lição de Miguel Reale, o Direito existe na sociedade e não pode ser concebido fora dela, por isso, a socialidade constitui uma das características da realidade jurídica. E o Direito que se pretende operativo e realizador dos valores fundamentais inseridos no texto constitucional não pode desprezar as exigências da solidariedade social. [51]

Partindo-se dessa perspectiva, tanto a atividade econômica, como o negócio jurídico facilitador da circulação de riqueza devem observar os limites impostos pela função social, de modo a cumprir seu estrito objeto, no interesse das partes diretamente envolvidas, sem perder de vista, contudo, o dever de não lesar a sociedade e de promover o bem estar geral.

Esse é o papel que a cláusula geral da função social deve desempenhar no atual sistema de direito civil, permitindo o adequado equilíbrio entre a realização do interesse econômico e a preservação do interesse social.

3.4 CONSEQÜÊNCIAS DA INOBSERVÂNCIA DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO

Não é difícil perceber que alguns contratos exercem claramente sua função social, como é o caso do contrato de locação de imóveis. Ele torna possível o a moradia de pessoas em imóvel do qual não detém a propriedade. É possível observar, todavia, que, em casos outros, a função social é desviada. No mesmo exemplo, conforme ensina Humberto Theodoro Júnior, “alugar imóvel em zona residencial para fins comerciais incompatíveis com o zoneamento da cidade”, ou, “alugar quartos de apartamento de prédio residencial, transformando-o em pensão” são figuras contratuais cuja função social está prejudicada pelo abuso na liberdade de contratar. [52]

Identificado em que consiste a função social, sua importância, abrangência e aplicação, cabe discutir, agora, as conseqüências de sua inobservância, seja pelo não cumprimento de uma função social, ou por estar essa prejudicada pelo abuso das partes na manifestação de suas vontades.

A doutrina pátria pouco se manifesta a respeito da hipótese de inobservância da função social nas relações contratuais. Nota-se que muitos juristas mencionam e defendem aplicação da função social do contrato, mas deixam de fornecer subsídios para sua aplicação in concreto e quedam-se silentes acerca do descumprimento do princípio. Talvez seja este o motivo pelo qual muitos doutrinadores sustentem a inaplicabilidade do instituto.

Das manifestações doutrinárias destaca-se o trabalho abalizado de Paulo Nalin a respeito da inobservância do princípio da função social do contrato. Toda a problemática se dá em razão do fato de a norma que impõe a observância da função social nas relações contratuais não estabelece sanção pela sua inobservância.

Ora, ainda que não haja previsão legal de qualquer tipo de sanção, cabe ao operador do direito investigar de forma hermenêutica, valendo-se de princípios gerais de direito, uma saída plausível dentro dos limites da lei.

A respeito do tema colaciona-se a doutrina de Paulo Nalin:

Interessa, pois, analisar as conseqüências, ou inconseqüências, eficaciais do contrato que não cumpre sua função social, sendo de alta relevância o tema, pois caberá ao magistrado, uma vez identificada a patologia agressora da ordem constitucional, determinar seu alcance, não obstante a falta de previsão legal para tanto. E o que, justamente, instiga mais o debate é a ausência de previsão legal quanto ao desrespeito dos operadores à regra da função social do contrato [...]. [53]

Deve-se partir, portanto, do que já desenvolveu a doutrina para casos semelhantes. A teoria da inexistência dos atos jurídicos foi desenvolvida justamente para suprir uma lacuna no direito.

Destaca-se, por oportuno, a aproximação entre a inexistência e invalidade dos atos jurídicos, que se mostra evidente quando parte-se da premissa de que apenas negócios existente podem ser declarados inválidos. A esse respeito a doutrina de Paulo Nalin:

Somente o negócio existente pode ser declarado inválido. Partindo-se desta conclusão, entende-se a proximidade entre a inexistência e a invalidade, pois, independentemente do grau da patologia do negócio, ele será ineficaz.[54]           

Outra análise hermenêutica deve ser feita para avaliar a solução mais adequada no que concerne à contratos que não cumprem sua função social. Desta maneira, toma-se como ponto de referência a produção de efeitos jurídicos, pois é a partir daí que o contrato vai interessar ao direito.

Assim, se o contrato que não observou o princípio da função social não foi capaz de produzir efeitos jurídicos, seja v.g pela falta de materialidade, a solução é considerá-lo inexistente.

Porém, se o contrato, ainda que não cumpridor de seu dever social, chegou a ser valorado de forma que produzisse efeitos jurídicos, a solução será encontrada no âmbito da invalidade jurídica, compreendida nesta a nulidade ou a anulabilidade como saídas plausíveis.

Na doutrina de Paulo Nalin, assim se expressa a solução para o problema:

O contrato que não cumpre a sua função social, em um primeiro momento, como negócio jurídico já foi reconhecido por meio da valoração social, gera efeitos jurídicos (atributivos, circulatórios e existenciais), de modo a ter suplantado o estrato da inexistência. Todavia, os efeitos que proporciona acabam sendo nocivos aos operadores contratuais, ou, ao menos, a uma das partes ou, ainda, à coletividade, esquadrinhado-se no campo da invalidade jurídica (nulidade ou anulabilidade).[55]           

Ante a manifesta contrariedade legal e ao próprio texto constitucional, não é forçoso concluir pela nulidade em vez da anulabilidade do contrato que não cumpre sua função social. Há clara violação a princípio de ordem pública, o que merece a decretação de nulidade.

Porém, vige na dogmática da civilística brasileira o princípio do pás de nulittés sans texte, que preceitua que somente será declarada a nulidade expressamente prevista em lei. É a chamada nulidade textual.

Novamente, a falta de previsão legal para a nulidade de contrato pactuado em inobservância ao princípio da função social leva à falta de solução adequada para o problema.      

Para resolver o problema, Paulo Nalin propõe que se utilize a nulidade virtual.[56] Assim, solução pode vir através da nulidade virtual, que ao contrário da textual, pode ser deduzida através do espírito da norma.

A doutrina diferencia a nulidade textual, objeto de previsão explícita no texto legal, da nulidade virtual, que está “implícita, depreendendo-se da função da norma na falta de sanção explícita”. [57]

Necessário se faz um exercício hermenêutico por parte do operador do direito a fim de investigar quais são os valores amparados pela norma e se a inobservância do princípio da função social é motivo apto a ensejar a aplicação da nulidade virtual.

Ora, vez que se trata de imperativo constitucional, matéria essencialmente de ordem pública, esta claramente verificada a contrariedade ao espírito da norma, sendo totalmente viável a aplicação da nulidade virtual ao contrato que carece de função social.

Trata-se de violação à preceitos que são basilares do Estado brasileiro, cuja violação implica em grandes prejuízos à solidariedade social, almejada pelo ordenamento, e que pautou todo o desenvolvimento da moderna doutrina de repersonalização das relações privadas.

Todo esse percurso interpretativo conduz à conclusão de que o contrato que não cumpre sua função social está eivado de nulidade, por atentar contra a lei e contra a constituição, podendo esta ser declarada partindo-se do conceito de nulidade virtual.

Necessário faz-se reconhecer o mérito da solução apontada por Paulo Nalin, cujo reconhecimento pela comunidade jurídica pode resultar na visão sob outro prisma da função social do contrato, desta vez sob o enfoque prático, e não meramente doutrinário.

Uma vez mais a doutrina mostra que não só é possível, mas necessária, a aplicação da função social aos contratos. Seja por imperativos de ordem legal ou constitucional, seja pela necessidade pela qual passa a sociedade contemporânea de ter valores sociais introjetados em seu cotidiano.

Acredita-se que a função social pode exercer o papel que lhe é consagrado pelo ordenamento jurídico, cabendo aos operadores do Direito fornecer os meios necessários para que isso ocorra.        

Sobre o autor
Rodrigo Binotto Grevetti

Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2004). Especialista em Direito Civil e Empresarial pela PUC-PR (2005). Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar (2009). Licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Paraná - UFPR (2010)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GREVETTI, Rodrigo Binotto. A socialização das relações contratuais:: A função social do contrato ante o fenômeno da constitucionalização do direito civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5672, 11 jan. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65447. Acesso em: 2 nov. 2024.

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