5. A ATIVIDADE DE HOSPEDAGEM
Deixemos por ora em nossas mentes os conceitos constitucionais e legais expostos nos tópicos anteriores para, agora, nos atermos à realidade obrigacional que liga um cliente a uma empresa que pratica a hospedagem (hotel, motel, pensão etc.).
Habitualmente no exercício da atividade sub examine existe a seguinte relação cliente-empresa:
1. Determinado indivíduo, sentindo a necessidade de um imóvel para permanência temporária (geralmente por algumas horas ou por uma ou mais noites), procura uma empresa de hospedagem.
2. Ao chegar nesse estabelecimento, a empresa (na fase pré-contratual) sugere os imóveis que estão disponíveis (Unidades Habitacionais), esclarece as características do bem (com os móveis que o acompanham) e o custo do seu uso temporário.
3. Caso o indivíduo aceite as condições propostas pela empresa de hospedagem, ele firma o contrato (que geralmente não é documentado, mas verbal) com o estabelecimento empresarial.
4. Assim, o indivíduo (que passa a ser consumidor [22]) recebe da empresa de hospedagem um imóvel em perfeito estado de uso e tem a posse desse bem por um determinado tempo.
5. Encerrado o uso do imóvel, o cliente deve restituir a posse do bem à empresa de hospedagem e pagar o preço contratado.
Dessa maneira, as obrigações assumidas pelas partes que participam da relação são as seguintes:
1) A empresa de hospedagem: deve ceder temporariamente a posse de uma Unidade Habitacional – em perfeito estado de limpeza, higiene, segurança etc. – ao consumidor;
2) O consumidor: deve pagar o preço ajustado e restituir o bem, sem tê-lo danificado.
É importante destacar que a empresa de hospedagem não deve fazer (elaborar, construir, montar) o bem que vai ser cedido ao cliente. O imóvel, com os móveis que nele estão contidos, já estão prontos. O que ocorre é a simples transferência temporária da posse de um bem pronto, mediante remuneração.
Diante desse fato, verifica-se a precisão da descrição dos vocábulos motel, pensão e hotel no Dicionário Aurélio: "Motel: Hotel para encontros amorosos.", "Pensão: Pequeno hotel de caráter familiar." "Hotel: Estabelecimento onde se alugam quartos e apartamentos mobiliados". [23]
Ou seja, os contratos firmados pela empresa de hospedagem, apesar de não serem regidos pela lei especial [24], são considerados locações sui generis [25] de bem imóvel; nunca uma prestação de serviços.
Isso se dá em virtude da prevalência da cessão de um bem (obrigação de dar) sobre a execução de um serviço (obrigação de fazer).
Vejamos o que o Código Civil Vigente preceitua:
"Art. 565. Na locação de coisas, uma parte se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e o gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição."
"Art. 593. A prestação de serviços, que não estiver sujeita às leis trabalhistas ou a lei especial, reger-se-á pelas disposições deste capítulo."
"Art. 594. Toda a espécie de serviços ou trabalho lícito, material ou imaterial, pode ser contratada mediante retribuição."
Esclarecendo: Na locação predomina a cessão (obrigação de dar) do uso e gozo de coisa não fungível. Já na prestação de serviços, o que se sobressai é a obrigação de um trabalho humano (manual, intelectual, artístico, científico – material ou imaterial) que não esteja sobre o manto da relação empregado-empregador (obrigação de fazer).
Segundo Orlando Gomes, "o característico da locação é o regresso da coisa locada ao seu dono, ao passo que o serviço prestado fica pertencendo a quem pagou e não é suscetível de restituição". [26]
Enfim, as empresas de hospedagem operam suas atividades através da cessão do uso e gozo de um bem imóvel (locação sui generis), mediante certa retribuição, a um consumidor.
5.1. Necessidade de Esclarecimentos Acerca de Peculiaridades Inerentes à Atividade Apresentada
Para espancar eventuais dúvidas infundadas acerca da predominância da obrigação dar sobre a obrigação de fazer na atividade apresentada, mister se fazem os esclarecimentos de alguns pontos.
5.1.1. Fornecimento de mercadorias
Certamente, além da cessão temporária do uso e gozo de um bem imóvel, as empresas de hospedagem colocam à disposição de seus clientes o fornecimento de mercadorias que poderão ser adquiridas do estabelecimento – como alimentos, bebidas, preservativos etc.
A aquisição e revenda de bens móveis são uma atividade secundária desenvolvida pelos estabelecimentos examinados. Esse atrativo opera-se sob o manto das leis comerciais e é tributado pelo imposto estadual incidente sobre operações relativas à circulação de mercadorias (ICMS).
De fato, nenhum cliente de empresa de hospedagem iria nesse estabelecimento, pagaria uma diária, somente para adquirir os bens que são colocados à sua venda. Caso ele necessitasse de uma bebida, compraria em um bar ou mercado; uma comida, em um restaurante; um preservativo, na farmácia etc.
Por isso, esse acessório não desnatura o conteúdo da atividade de hospedagem. Além do mais, essa questão não faz parte do objeto em comento, visto que é atividade sujeita à tributação estadual.
Outrossim, outros atrativos que acompanham a cessão do uso e gozo do bem imóvel (o principal) na hospedagem são: a recepção e a limpeza.
5.1.2. Recepção
Em relação à recepção, verifica-se que ela é desenvolvida através de uma atividade humana. Ela se faz necessária para o contato humano entre o cliente e o estabelecimento hospedeiro.
No entanto, como é notório, em praticamente todo o fornecimento de produtos haverá uma prestação de serviços e, em quase toda a prestação de serviços, haverá o fornecimento de produto [27].
Um advogado, por exemplo, quando presta um parecer, fornece ao seu cliente o papel onde foi elaborado o estudo. Por outro lado, numa venda de mercadorias, existe a apresentação dos produtos através de um atendente (serviço humano).
Essa é uma realidade dominante no mundo empresarial. Todavia, sempre uma atividade será caracterizada pela prevalência de um bem ou de um serviço. Nos exemplos citados, o que domina na atividade do advogado é o conteúdo que existe no papel, que foi desenvolvido através de um serviço intelectual (dar o papel é mera conseqüência do fazer o parecer); já na venda de mercadorias, o que conta é o produto (fazer a apresentação é mera conseqüência do dar a mercadoria). É por isso que os serviços advocatícios são tributados exclusivamente pelo ISS e a venda de mercadorias pelo ICMS.
Sendo assim, considera-se a recepção de uma empresa de hospedagem somente um acessório necessário à atividade. Caso inexistisse esse item numa empresa dessa espécie não haveria meios de efetuar a cobrança, o controle de hóspedes etc.
O que prevalece é a cessão do uso e gozo da Unidade Habitacional!
5.1.3. Limpeza
Outro elemento indispensável na atividade de hospedagem é a limpeza.
Verdade seja, com a constante circulação de clientes nas Unidades Habitacionais desses estabelecimentos é forçoso que a empresa de hospedagem mantenha profissionais destinados a fazer a manutenção, limpeza e higienização dos imóveis.
Essa é mais uma atividade que, pela natureza do negócio, é imprescindível à existência do estabelecimento.
No entanto, convém frisar que não há nesse labor uma prestação de serviços ao cliente do estabelecimento. A limpeza não é prestada a terceiro. A conservação elaborada no interior dos imóveis locados é efetuada em momento anterior ao do uso do imóvel [28].
Utilizando novamente o método da comparação, é tão necessária a limpeza em uma empresa de hospedagem quanto a lavação de roupas na locação de trajes. Nenhum consumidor se hospedará em um lugar sujo e tampouco um indivíduo alugará um traje sórdido.
Logo, nas empresas de hospedagem, a limpeza não se opera mediante a obrigação de fazer (limpar) algo para terceiro. A obrigação que prevalece é a de ceder um imóvel (limpo) ao cliente [29].
5.2. Conclusão
Diante do exposto, tem-se que a atividade de hospedagem opera-se pela a cessão do uso e gozo de um bem imóvel, mediante certa retribuição, a um consumidor.
Além da cessão existem operações inerentes ao desenvolvimento da atividade praticada, como o fornecimento de mercadorias, a recepção e a limpeza.
Entretanto, essas práticas, necessárias e acessórias, não desnaturam a qualidade do principal desenvolvido por empresas que efetuam a hospedagem [30].
Nenhum hóspede contrataria com um hotel, motel etc. somente para consumir os produtos fornecidos; somente para consumir os serviços da recepção; ou, somente para ver a limpeza de um imóvel.
É certo que o cliente tem por escopo a posse temporária do imóvel e, para isso, pagará o preço acordado.
Fitando sob o mesmo prisma uma situação semelhante, analisemos uma locadora de veículos:
Quando um indivíduo vai locar determinado veículo, existe um profissional destinado a fazer a apresentação dos automóveis e a cobrança do preço acordado (como opera uma recepção de hotel); os veículos são locados limpos, encerados, polidos e com a mecânica em perfeito estado (como a conservação e a limpeza em um motel); e, certas vezes, também existe o fornecimento do combustível ao locatário (como o fornecimento de mercadorias numa pensão).
Contudo, apesar da existência de todos esses acessórios, a atividade principal é a locação de veículos – que, conforme posicionamento do STF, não é prestação de serviços por prevalecer a obrigação de dar em detrimento da obrigação de fazer.
Do mesmo modo, hospedagem também não é prestação de serviço e não pode ser passível de cobrança do imposto previsto no art. 156, III, da Constituição Federal (ISS).
Assim sendo, Aires F. Barreto, em lições que como uma luva se amoldam neste trabalho, conclui por nós pela não incidência do ISS na atividade de hospedagem com os seguintes dizeres:
"Se, como acabamos de ver, a locação de bens móveis é intributável, por via de ISS, com maior razão será a singela cessão de espaço em bem imóvel.
"Anote-se, de imediato, que cessão de espaço em bem imóvel é o contrato pelo qual, uma pessoa, titular de bem imóvel, mediante remuneração, cede a outra o direito de uso desse espaço. (...)
"Trata de contrato que tem por essência a obrigação de dar. Resulta do acordo de vontades pelo qual o cedente (titular do imóvel) cede a terceiros (o cessionário) o direito de uso (e, eventualmente, de gozo) de certo espaço em bem imóvel, mediante remuneração (aluguel).
"Sendo a cessão de espaço em bem imóvel negócio jurídico que, diante da nossa ordem jurídica, configura obrigação de dar, segue-se, necessariamente, que jamais pode refletir ‘prestação de serviços’ (que só pode alcançar obrigações de fazer).
"(...)
"Comparativamente, não se desnatura o contrato - que prossegue sendo de locação de imóvel - pela circunstância de o imóvel ser entregue mobiliado ou com alguns serviçais. Mesmo nessas hipóteses, não há falar em prestação de serviços, uma vez que trata de mero acessório (tarefa-meio, atividade-meio) do fim visado: a cessão de espaço em bem imóvel.
"É incogitável a incidência do ISS diante da hipótese na qual há mero requinte de sofisticação dispensável. Deveras, a cessão de espaço em bem imóvel (fim perseguido) não se transmuda em serviço pelo simples fato de, para viabilizar ou facilitar essa cessão, vir-se a fornecer determinada infra-estrutura, com ou sem recursos humanos. A obrigação segue sendo de dar e não de fazer. O eventual fornecimento desses recursos, materiais ou humanos, não altera o fim colimado: cessão de espaço em bem imóvel. E somente podem ser tomadas, para sujeição ao ISS, as atividades entendidas como fim, correspondente à prestação de um serviço integralmente considerado."[31]
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS:
A Constituição, ao conferir a competência tributária, fixa todos os critérios da norma-padrão de incidência dos tributos a serem instituídos por lei, rigorosamente e exaustivamente, sem deixar margem de liberdade para o legislador ordinário.
No que concerne ao ISS, extrai-se do art. 156, III, da Constituição, os seguintes aspectos da norma que instituirá o imposto: a) Aspecto material: prestar serviços; b) Aspecto espacial: dentro dos territórios municipais; c) Aspecto temporal: momento da prática do aspecto material. d) Aspecto pessoal: d1) sujeito ativo: município; d2) sujeito passivo: quem prestar serviços; e) Aspecto quantitativo: e1) base de cálculo: valor do serviço; e2) alíquota: parcela da base de cálculo que não configure confisco.
Portanto, a prestação de serviços é a única matéria que, com supedâneo no dispositivo constitucional aludido, pode ser tributada a título de ISS pelos municípios.
Para configurar a "prestação de serviços" a atividade desenvolvida deve ser realizada por intermédio de uma obrigação de fazer e não de dar coisa. Esse é, inclusive, o posicionamento do STF (RE 116.121).
Outrossim, convém frisar que a corrente teórica que admite que a prestação de serviços pode ser visualizada quando prevalece a obrigação de dar é falha porque interpreta o direito através de conceitos econômicos e aceita a definição constitucional de serviços pela lei complementar.
Em relação à diferenciação entre as duas espécies de obrigações (dar e fazer), segundo Washington de Barros Monteiro, o ponto fundamental está em verificar "se o dar ou entregar é ou não conseqüência do fazer. Assim, se o devedor tem de dar ou entregar alguma coisa, não tendo, porém, de fazê-la previamente, a obrigação é de dar; todavia, se, primeiramente, tem de realizar algum ato, do qual será mero corolário o de dar, tecnicamente a obrigação é de fazer’." [32]
No tocante à hospedagem, prevista na legislação nacional (LC 116/03) e nas leis municipais, o intérprete deve se ater à essência dos atos praticados nessa espécie de atividade para observar se é válida a tributação pelo ISS.
Tem-se que, quando um cliente procura um estabelecimento de hospedagem (hotel, motel, pensão), o seu fim precípuo é o de ocupar um imóvel (unidade habitacional) por determinado período. Em contrapartida, o estabelecimento tem por obrigação ceder o uso e o gozo deste imóvel pelo prazo acordado, mediante remuneração.
Assim, não há a necessidade de previamente fazer o imóvel para posteriormente entregá-lo ao hóspede. O imóvel com os seus acessórios já está pronto. Logo, a obrigação principal do hotel, do motel etc. é a de dar.
Por outro vértice, o eventual fornecimento de mercadorias (alimentos, por exemplo) e de recursos humanos (recepção e limpeza) para viabilizar o negócio não desnatura o principal, a essência, a atividade-fim, que continua sendo a cessão do espaço em bem imóvel.
Por todo exposto, denota-se a inconstitucionalidade da cobrança do ISS na hospedagem, visto que prevalece nesse exercício a obrigação de dar. Logo, é situação fora da competência tributária imposta pela Carta Magna.