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Repercussões do trabalho artístico no desenvolvimento das crianças

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Agenda 26/04/2018 às 16:00

Pode parecer fofo, mas a inserção da criança no mundo artístico costuma gerar diversos impactos negativos no seu desenvolvimento e na sua esfera de direitos.

Resumo: O presente artigo tem por objetivo trazer breves considerações sobre o impacto negativo que o trabalho do artista mirim impõe ao ser humano em desenvolvimento, consubstanciado na literatura existente. Tal situação é uma inversão de valores e uma afronta, não só aos direitos trabalhistas, mas também aos direitos fundamentais da criança, esculpidos na Magna Carta. É, sem dúvida, um tema de suma relevância, uma vez que ser artista vem se tornando objeto de desejo de muitas pessoas, porém com conseqüências que comprometem seu saudável desenvolvimento. Por essas razões o assunto deve ser abordado com mais responsabilidade pelos órgãos fiscalizadores, através de políticas públicas eficazes.


1. INTRODUÇÃO

Através de pesquisa bibliográfica, o presente trabalho abordará um tema atual e ainda pouco discutido que é o trabalho do artista mirim. Para tanto, serão analisados os aspectos legais e fáticos no Brasil sobre o trabalho infantil, as características e as formas de apresentação.

A presente análise não tem por objetivo esgotar o tema, entretanto visa caracterizar as consequências negativas e nefastas que trabalho infantil artístico pode acarretar. Abordará, também, a origem e as causas de tal atividade, ainda que num contexto social diferente que o das crianças das sociedades marginalizadas.

Será colocada em debate a legislação existente, identificando a atuação jurisdicional, com a finalidade de abordar o comprometimento psicológico que tal atividade representa nessas crianças, bem como trazendo reflexões sobre a fiscalização do poder estatal e as possibilidades acerca da proteção máxima às crianças. E por fim, se elucidará a possibilidade de implementação de novas políticas de educação emocional universal mudando os paradigmas atuais.


2. CONSEQUÊNCIAS NEGATIVAS DO TRABALHO DO ARTISTA MIRIM

Sabe-se da importância da proteção do trabalho no contexto atual, sobretudo, que é imprescindível a ênfase ao aspecto social, psicológico e valorativo ao trabalho infantil. O trabalho é, sem dúvida, um instrumento da evolução da realização humana, entretanto quando está inserido na vida de crianças e adolescentes, está obrigatoriamente ligado a outros princípios e valores fundamentais de formação do cidadão, como o direito à infância digna, à saúde, à educação, ao lazer, à formação intelectual e profissional. Valores estes que não podem ser sobrepostos por outros e, para que se tornem prioridade absoluta é necessário o engajamento de toda a sociedade, da família, da escola, de políticas públicas eficazes e de toda a organização estatal.1

Certamente essas crianças estarão distantes dos seus direitos de plena cidadania, vez que deixaram de viver fases importantes das suas vidas, pois são obrigadas a ter comportamentos, responsabilidades e disciplina esperados de adultos, embora seu discernimento ainda seja limitado.

2.1. Direitos Básicos da criança

As normas brasileiras e internacionais são claras e não garantem somente a compatibilidade escola/trabalho como também conferem a preferência à educação sobre o trabalho, essa compatibilidade diz respeito à duração de jornada que concilie a freqüência escolar e as horas de estudos extraclasse.2 A intenção do legislador é, sem dúvida, que haja tempo para um mínimo de estudo adequado, sendo assim resta evidente que as horas destinadas ao trabalho comprometem a educação básica daquela criança.

Nesse sentido, a Declaração dos direitos da criança, adotada pela Assembleia das Nações Unidas de 20 de novembro de 1959 e ratificada pelo Brasil, dispõe:

A Humanidade deve à criança o melhor de seus esforços (...)

A criança gozará de proteção especial e disporá de oportunidades e serviços, a serem estabelecidos por lei e por outros meios, de modo que possa desenvolver-se física, mental, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade (...)

A criança deve ser protegida contra toda forma de abandono, crueldade e exploração (...) 3

Cabe referir que pobreza não é apenas uma questão material, na realidade ela está intimamente ligada à educação, à cultura, à inteligência emocional. As crenças limitantes de uma sociedade passam de geração em geração. Essas crenças dizem respeito às crenças sobre identidade, capacidade e merecimento que o ser humano adquire desde os primeiros anos de vida, através de sua criação e vão refletir nas suas ações da vida adulta.

Segundo o autor Paulo Vieira4, crença é toda programação mental (sinapses neurais) adquiridas como aprendizado durante toda a vida e que determina os comportamentos, atitudes, resultados, conquistas e qualidade de vida.

A crença de identidade define quem é o indivíduo, seus aspectos positivos e negativos, define com quem e como ele vai se relacionar em sociedade e obviamente define os seus resultados. As crenças que o indivíduo possui sobre si determinam desde o seu valor próprio até a sua autoimagem e todos os seus resultados e comportamentos.

Na crença limitante sobre capacidade o cidadão não acredita no seu potencial, pois teve como base uma família também limitada emocionalmente. Ele não acredita que é capaz de fazer ou de aprender a fazer algo que mude a sua realidade, acredita que não conseguirá alterar o curso de sua vida, crescer emocionalmente e prosperar financeiramente, tendo em conta uma educação precária e uma visão limitada de futuro.

Já as crenças limitantes em relação ao merecimento não permitem o cidadão de acreditar em seus direitos mais básicos, como o direito de ser criança, de crescer fisicamente e intelectualmente, bem como de ter uma vida abundante. O cidadão não se sente digno, ele é ensinado desde a mais tenra infância que “se nasceu pobre vai morrer pobre”5 e assim perpetua-se o legado miserável da família.

O filme curta metragem Vida Maria6 retrata a situação de uma família miserável do nordeste brasileiro, onde a personagem Maria é conduzida pela sua mãe a desistir de seus sonhos e do interesse por escrever, a mãe acredita que sua história será como a de todas as Marias que a antecederam e todas que virão. Na visão da mãe, a filha tem que ter claro que educação é desnecessária, vez que todas serão responsáveis exclusivamente pelo trabalho doméstico, trabalho na roça, pelo cuidado com os filhos e para servir ao marido.

O filme explora as limitações e falta de perspectivas da criança pobre. A mãe obriga a filha a abandonar os estudos, interrompendo sua infância, seu futuro e a possibilidade de ser uma pessoa diferente. Isso retrata como os eventos e experiências da primeira infância são determinantes para um adequado desenvolvimento de qualquer ser humano.

Essa história retratada no filme é uma realidade do nosso país, a pobreza estigmatiza gerações e gerações.

Entretanto, para Paulo Vieira7, embora se tenha tido um passado difícil, com privações, esse fato não determina o futuro do indivíduo, vez que sempre haverá a oportunidade de recomeçar e mudar a direção da vida, das escolhas e de seus sentimentos frente ao problema.

Assim sendo, resta evidente que a única solução para esse problema é uma educação de qualidade, é o investimento por parte das entidades governamentais e familiares na educação das crianças e adolescentes. Investimentos que vão além do financeiro, investimento no crescimento emocional, cultural, intelectual de toda a sociedade, investimento na valorização do ser humano como possuidor de direitos fundamentais8, para que todos juntos, transformem a realidade atual.

2.2. O trabalho infantil no Brasil e no mundo

Há muito se discute sobre a luta contra o trabalho infantil, resta cristalino que a OIT vem se posicionando a favor das crianças e adolescentes e vem adotando uma série de medidas para proteger o trabalho do menor, seu objetivo sempre foi erradicar o trabalho infantil, com o aumento progressivo da idade mínima para o trabalho. Nesse sentido, sabe-se que foram criadas diversas convenções internacionais, com regras que limitam o trabalho e a idade mínima para o trabalho, elas foram submetidas à ratificação dos países do mundo inteiro que, via de regra, foram aceitas e os países em pleno desenvolvimento, vem promulgando leis mais benéficas às crianças e adolescentes que se moldam às normas internacionais, embora reste muito a se fazer.9

Percebe-se assim, com essa transformação de paradigma, uma grande redução, ao longo dos últimos anos, da quantidade de crianças na indústria e nas grandes fábricas. As empresas modernizaram a produção industrial e as tecnologias atuais tendem a exigência de trabalho adulto qualificado. Também nos países industrializados, há um significativo aumento da renda familiar, reduzindo a dependência da contribuição econômica das crianças e adolescentes pelas famílias.

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Importante frisar que, a maior parte do trabalho infantil, no Brasil e no mundo, é verificada em três grandes setores da sociedade: a agricultura, o setor urbano não estruturado e o trabalho doméstico, as quais necessitam de uma maior atenção por parte dos governos. Portanto, em cada um desses seguimentos é evidente a exploração que prejudica o crescimento deste cidadão em desenvolvimento.10

Observa-se na agricultura a forma como se estruturam as regras e direitos dos trabalhadores, para que uma família possa sobreviver é indispensável que os filhos trabalhem com seus pais para manter a sobrevivência da família, nesse caso é comum que as crianças não frequentem à escola, sendo muito limitada a proteção da família em relação aos filhos, tornando ainda mais complexa a fiscalização. Nesse segmento é comum a exploração do trabalho infantil em tarefas extremamente penosas e com uma grande exposição às maquinas e substâncias químicas perigosas, elevando assim, as taxas de mortalidade infantil, doenças, desnutrição, invalidez e analfabetismo nas zonas rurais, acarretando em problemas graves que impactarão negativamente no desenvolvimento destas crianças.

Há, contudo, um expressivo número de trabalhadores no seguimento urbano não estruturado, e na atualidade é o que mais cresce, tendo em vista a migração do trabalhador rural aos grandes centros. Este seguimento é compreendido por pequenos negócios não estruturados e trata-se de um setor muito dinâmico em pleno crescimento. Essas crianças, ao ingressarem no mercado de trabalho, geram renda para a sua subsistência e de sua família, ou ainda para satisfazer os desejos e futilidades da vida moderna, como aquisição de roupas e sapatos da moda, ou aparelhos eletrônicos. Elas trabalham, por exemplo, na fabricação de tijolos, na construção civil, serviços de alimentação, artesanato. A maioria dessas crianças trabalha nas ruas com a prestação de serviços e vendas de produtos, como engraxates, lavadores e cuidadores de carros, venda de doces e artesanato, inclusive com prostituição, comercialização de drogas e serviços aos criminosos das sociedades marginalizadas11. Essas crianças e adolescentes estão expostos a grandes riscos e ao grande comprometimento do seu desenvolvimento social e psicológico, sem que para isso as leis e a fiscalização as atinjam, razão pela qual são necessários meios mais eficazes na proteção dessas crianças contra a exploração, a violência e o abuso.

Existe também a realização do trabalho em âmbito doméstico12, essa é a forma onde é muito difícil o controle e fiscalização, tornando a criança ainda mais vulnerável e explorada. A grande maioria é de meninas, pré-adolescentes, e geralmente elas vivem com seus empregadores, se tornando mais expostas à violência e abuso sexual. Há muitos casos em que os pais confiam a algum estranho ou a algum parente a guarda daquela criança, com a intenção de que seja cumprida a manutenção da sua educação em troca do trabalho. Existem casos em que as crianças ou adolescentes são contratados e o salário é repassado diretamente aos pais, também há casos em que os pais literalmente vendem seus filhos por uma determinada quantia em troca de servidão. De qualquer sorte, ainda que essas crianças possam ser bem tratadas nas “casas de família”, elas estão totalmente à mercê da exploração e abuso de todos os tipos, por parte dos adultos envolvidos, comprometendo o seu desenvolvimento, pois são submetidas a grandes cargas horárias e a trabalhos exaustivos, dificultando ainda mais a conclusão dos estudos.

A pobreza não é a razão de tudo13. Devemos considerar que o ensino escolar é insuficiente, tornando mais propício à escolha da família ou do próprio menor pela contribuição econômica do que pela freqüência na escola, assim ocorre o abandono escolar e acabam por trabalhar em período integral. A melhor solução para a erradicação do trabalho infantil é justamente a segurança de um ensino universal e de boa qualidade, este é, sem dúvida, o maior problema a ser enfrentado no nosso país.

Apesar do progresso desse assunto, na diminuição das crianças no trabalho, atualmente é muito desafiador a concreta aplicação e a fiscalização das leis sobre o trabalho infantil. É evidente a formação insuficiente do cidadão quanto aos seus direitos fundamentais, a falta de motivação dos órgãos competentes e o desinteresse político nas questões relacionadas aos direitos da criança e adolescente, sobretudo a educação. Durante anos, o mais desafiador foi começar a incluir essas crianças em programas de proteção efetiva e criar meios para descobri-las e alcançá-las, foi um trabalho duro, vez que a visualização da exploração e do abuso infantil dependia da suposta inexistência de vítimas, pois os empregadores e as famílias, via de regra, as escondiam em um universo de discrição e isolamento, hoje, as grandes organizações, conseguem mapear essas crianças e com isso criar instrumentos para a proteção, mas há muito que se fazer.14

2.3. Idade mínima para o trabalho e a legislação para atividade do artista mirim

A idade mínima para o trabalho formal, conforme artigo 7º, XXXIII da Constituição Federal Brasileira de 1988, é de 16 anos, ressalvado o trabalho a partir dos 14 anos na condição de aprendiz. De qualquer forma, é proibido o trabalho do menor de 18 anos em condições penosas, perigosas, insalubres ou em serviços prejudiciais, bem como no período noturno. Importante frisar a proibição do trabalho do menor em locais prejudiciais à sua formação e desenvolvimento físico, psíquico, moral e social e em horário que prejudique à freqüência escolar, conforme preceitua a CLT no seu artigo 405.15

A temática sobre a idade mínima para o trabalho oferece certa complexidade, pois são analisados alguns aspectos subjetivos que normalmente variam de pessoa para pessoa, mas que, nesse caso, devem ter uma atenção ímpar como fundamentos para a proteção, são eles: fisiológico, moral, psíquico, econômico, cultural e jurídico16. Não é simples compreender o motivo dos limites cronológicos, se não entendermos seus fins sociais e os valores que estão sendo protegidos.

Nesse sentido discorre Renato Mendes:

Como todo instrumento de direito fundamental, as convenções da OIT estabelecem os critérios mínimos para que o Estado e a sociedade se organizem para que as garantias e direitos sejam uma realidade no ordenamento jurídico interno e na vida social. Portanto, ao ratificar estes instrumentos de direito fundamental, os estados se obrigam a estes padrões, a ampliar o âmbito de sua aplicação e a não restringi-los, a não ser que a ordem pública esteja em perigo.

A idade mínima para admissão ao trabalho ou ao emprego, como todo dispositivo de direito fundamental, deve ser entendida não como um critério imposto à criança ou ao adolescente, mas sim ao Estado e à sociedade para que garantam o direito de proteção ao pleno desenvolvimento de meninos, meninas e adolescentes. Este dispositivo da Convenção nº 138 da OIT faz o reconhecimento tácito de que a pessoa menor de 18 anos é sujeito de direito e não apenas um indivíduo objeto da tutela dos pais, da sociedade e do estado.

Por este motivo o legislador determinou os critérios para que os países estabeleçam a idade mínima: que por nenhum motivo poderá ser inferior idade escolar compulsória; entendida esta como primazia no exercício da cidadania para esta fase do desenvolvimento humano.17

Sabe-se que as crianças e adolescentes necessitam de condições especiais por estarem em desenvolvimento físico e intelectual. O universo do trabalho deve respeitar essas premissas, no processo de aprendizagem (como no contrato de aprendizagem). Percebe-se que a “condição de aprendiz” quer dizer que o trabalho está ligado à formação profissional, por isso o empregador (e a sociedade) se compromete a submeter aquele jovem a um processo de formação técnico profissional18, desde que respeitada a faixa etária, contribuindo para um desenvolvimento saudável para aquele ser humano.

Quando, porém, não se respeita os limites cronológicos, tampouco as condições específicas de cada criança ou adolescente, ocorre o comprometimento da saúde física e mental daquela pessoa19. Esse é o caso da possibilidade que versa sobre o trabalho do artista mirim. Embora se tenha realizado muitos estudos quanto à prejudicialidade do trabalho infantil na indústria, agricultura e outros ambientes, atualmente é permitido, com a autorização do judiciário, conforme artigo 149 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o trabalho de crianças e adolescentes, menores de 16 anos, como artistas em novelas, programas e comerciais de televisão e internet, etc. Nota-se que cabe ao magistrado20 considerar que o trabalho infantil é atividade excepcional, autorizado somente quando não existirem riscos ao processo de crescimento daquela criança, conforme disciplina o artigo 8º, item I, da Convenção n. 138 da OIT.

Ocorre que, não existe uma legislação específica regulamentando o trabalho do artista mirim, existe apenas a Lei nº 6.533/78 que regulamenta a atividade profissional do artista, mas nada refere sobre a atividade infantil.

Ainda que esse trabalho não seja fisicamente pesado é, contudo, um trabalho exaustivo que exige muito além da força física daquele trabalhador, exige muitas horas de trabalho, muita disciplina, comprometimento e por isso, evidentemente compromete as suas demais atividades sociais, como a frequência escolar, a qualidade dos estudos e o direito da criança ser o que é o direito de pensar, de sentir, de querer, de viver, de sonhar, de ter liberdade e de brincar como criança.

Dessa forma, disciplina a Constituição Federal em seu artigo 227:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§3º O direito à proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:

I – Idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no art 7º, XXXIII;21

Mesmo que o Judiciário e o Ministério Público analisem o caso com a dedicação esperada, muitos abusos acontecem com as crianças que atuam em eventos artísticos. Verifica-se o excesso que o ator Felipe Paulino sofreu ao participar do filme “Cidade de Deus”22. O filme retrata a realidade das favelas da cidade do Rio de Janeiro, dominadas pelo tráfico de drogas, tal filme possui uma das cenas mais marcantes do cinema brasileiro, onde um menino vai sofrer a punição de um traficante da favela, na cena apresentada a criança é obrigada a dar um tiro no pé da outra, que chora implorando clemência.

Para que se extraísse do menino, de apenas sete anos de idade, uma interpretação realista e impactante, na preparação da cena, lhe foi pedido que imaginasse sua mãe morta, por isso é possível notar que a criança chama pela mãe na tomada. O diretor do filme Fernando Meireles afirmou que: “O Felipinho confundiu ficção com realidade (...). Essa mistura é normal em uma idade na qual o mundo real e a fantasia não tem fronteiras claras”. Percebe-se que não há compaixão da equipe pelas conseqüências emocionais daquele menino. Denotando, portanto, uma insensibilidade sem medida.

Assim como esse caso poderíamos citar outros tantos em que o direito de livre expressão, direito à cultura, etc., se sobrepôs aos direitos e garantias fundamentais de uma criança, pois atuações desse tipo impactam no desenvolvimento emocional de uma criança causando problemas até a vida adulta.

Percebe-se, no entanto, que a necessidade de existirem leis claras para proteger as crianças é sintoma de uma grave doença social, isso porque uma sociedade saudável deveria saber tratar bem de suas crianças sem precisar de leis.

2.4. Crenças quanto à atividade artística e consequências nas crianças

Sabe-se que a legislação brasileira proíbe o trabalho insalubre, perigoso, penoso, noturno e ainda aquele realizado em locais ou serviços prejudiciais ao desenvolvimento físico, psíquico, moral e social aos menores de 18 anos. Entretanto, é normal a sociedade acreditar no glamour e status que o trabalho artístico proporciona, é comum acreditar que existam somente benefícios e privilégios no trabalho artístico, acredita-se que o artista é sempre famoso, bem sucedido financeiramente e que tal trabalho é sempre muito fácil e prazeroso. Essa é a ideia vendida para a sociedade, porém na realidade vemos apenas poucas pessoas nessas condições. A indústria da mídia vende uma realidade destorcida e muitas pessoas acreditam que com pouco trabalho podem ter fama, sucesso e fortuna como os artistas de novela, super modelos e jogadores de futebol. Tal ideia é comprada por adultos despreparados emocionalmente e principalmente por crianças e adolescentes, que vêem uma forma fácil de ter fama e enriquecer.

A ganância é inimiga do sucesso e as conseqüências da ganância são desastrosas. A dignidade e a sabedoria são recompensas que o dinheiro não compra e estas estão diretamente ligadas à inteligência emocional.23

Dependendo do contexto social a que a criança esteja inserida, o impacto psicológico será diferente para cada indivíduo, sobretudo na capacidade de aprendizagem, no desempenho escolar e na forma de se relacionar com os demais.24 Caso a criança seja responsável pela contribuição, de parte ou de toda renda familiar, em vez de estar exercendo suas atividades normais como brincar e estudar, as quais são necessárias para seu desenvolvimento saudável, ela se transforma na mantenedora daquela família, representando uma inversão de papeis. Tal acontecimento poderá acarretar em dificuldade na sua integração com outras crianças da mesma idade, tendo em vista que seus assuntos estão ligados aos dos adultos. Essa criança é obrigada a ser responsável, porém ela não tem maturidade e experiência necessária para tanto. E nesse sentido, a Ministra do Tribunal Superior do Trabalho Kátia Magalhães Arruda diz que “trabalho artístico infantil pode gerar danos irreparáveis”25.

Esse, como vários outros, é um trabalho que requer tempo, dedicação, disciplina e o retorno nem sempre é o esperado, as críticas sobre o trabalho desenvolvido, por parte do empregador e também por parte do público, normalmente são severas e muitas vezes abusivas, tornando a atividade muito exaustiva. A frustração é também muito comum e essa realidade é vivida por muitos adultos e crianças no meio artístico, os padrões impostos pela sociedade são altos e perversos, impactando diretamente no desenvolvimento psicológico daquela criança26. Sendo assim, é evidente que a exposição de crianças e adolescentes a esse universo é no mínimo irresponsável, justificando a maior severidade através de leis e políticas contra o abuso.

A exposição às tensões e às competições no mundo midiático, em programas de auditório, reality show e concursos de beleza, tende a proporcionar um desequilíbrio emocional, uma vez que situações aparentemente encantadoras podem revelar sofrimento e fragilidade quando, por exemplo, a criança sofre algum tipo de crítica seja pelo debate de opiniões, seja pela manifestação de preconceitos e discursos abusivos. Produtores e criadores deverão estar atentos às reações dessas crianças, participando e se posicionando sobre esse tipo de questão tão delicada.

Outro ponto relevante é a jornada de trabalho, eis que qualquer atividade que exija uma carga horária demasiada ou que isole ou interfira no convívio da criança com os seus familiares e em suas atividades sociais será prejudicial ao desenvolvimento completo e adequado das futuras gerações. As atividades artísticas podem ser desenvolvidas em diferentes horários, na televisão, cinema e espetáculos circenses ou teatrais e submeter crianças à obrigações exageradas é inadmissível.27

2.5. Exploração e o princípio da proteção

Para essa análise, é fundamental salientar a importância dos princípios que regem a relação trabalhista, sobretudo o da proteção, assim como Hobbes justificou, “O homem é o lobo do homem”, o homem é mau num estado natural, ele precisa de regras para que sejam mantidos o respeito e a ordem social. Nesse caso, percebemos que o empregador precisa de limites, eis que o trabalhador não vende uma mercadoria, ele vende seu corpo, seu tempo, seus neurônios, seu passado, presente e futuro, o homem não é coisa28, mas está à disposição do empregador para gerar benefícios para o seu empreendimento e pelo menor custo possível. O trabalhador necessita de proteção e o sistema trabalhista necessita de proteção contra a exploração econômica.

Ainda assim, é muito claro que um serve ao outro, e que sem essa relação não haveria o modelo capitalista como é verificado atualmente. Entretanto, o Direito do Trabalho tenta equilibrar uma relação historicamente de desigualdades, onde “manda quem tem dinheiro e obedece quem precisa”. Porém, não é somente ao trabalhador dependente economicamente que o Direito Trabalhista se presta, certamente esse ramo do direito vai além, a legislação protege o bem TRABALHO, o trabalhador se torna o objeto nesta relação.

Com base nas considerações lançadas, verifica-se que o trabalho é, sem sombra de dúvida, valor29 e não deve ser diminuído a um instrumento de manipulação capitalista. Assim sendo, em qualquer sociedade, tem que ser analisado o trabalho da criança e do adolescente como um instrumento de pleno desenvolvimento físico e psíquico, preparando o cidadão para um futuro mais digno e qualificado, com a efetiva oportunidade de exercê-lo com a proteção da dignidade individual, do crescimento, da saúde, do lazer, da educação, etc. O trabalho faz parte do processo educacional, no momento adequado, com a prestação e instrumentos adequados e com a preservação da infância, sob a égide do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Constituição Federal. Entretanto, segundo estatísticas, as crianças que trabalham desde cedo em condições precárias, recebem quando adultas salários iguais ou menores ao de seus pais, perpetuando a miséria e impedindo a possibilidade de um futuro com melhores condições sociais30.

Neste contexto, observam-se os principais fundamentos de proteção do trabalho da criança e do adolescente, são eles: no aspecto cultural, moral, fisiológico e de segurança. Importa dizer que o menor tem o direito ao acesso aos estudos, deve receber instrução mínima para garantir seu futuro intelectual e profissional, deverá também ser resguardado ao direito de não trabalhar em ambientes que prejudiquem a sua moralidade e dignidade como pessoa, sobre o aspecto fisiológico, não poderá ser exposto a lugares insalubres e perigosos, também não poderá laborar em excesso de carga horária para que sejam evitados acidentes ou qualquer situação que possa alterar sua formação normal31.

2.6. Meios de fiscalização e políticas aplicáveis

Considerando que, atualmente, não há legislação suficiente para o tema, em primeiro lugar há o dever dos pais ou responsáveis na educação e na manutenção das condições de vida de seus filhos, a possibilidade de incluir a criança ou adolescente precocemente ao mercado é inteiramente de responsabilidade dos pais, estes tem o dever de proteção e cuidado, tendo em vista que a lei é uma expressão genérica de proteção, são eles que devem perceber quais são as condições individuais físicas e psíquicas de cada um e também arcam com toda responsabilidade sobre as conseqüências dessas ações. Ressaltando aqui os critérios sobre capacidade, onde sabemos que somente se adquire a capacidade absoluta quando se completa 18 anos, ou seja, antes dessa idade, o indivíduo é incapaz de praticar atos da vida civil e está nos pais ou responsáveis a atribuição da decisão32, para que qualquer política de proteção seja eficaz, os pais têm que ser diligentes na formação familiar e na condução da criação de seus filhos.

Antes de iniciar o trabalho artístico é necessário que os pais conheçam o ambiente de trabalho e as condições e outras circunstâncias a que o filho será exposto, é inadmissível que haja apenas uma autorização judicial genérica para o filho trabalhar, tendo em vista que a inexperiência ou imaturidade da criança pode acarretar em escolhas danosas, as atividades laborativas podem estar disfarçadas de uma boa oportunidade como modelos fotográficos ou atuação em novelas, filmes, teatro e na verdade, tais crianças estarem expostas à prostituição, abuso sexual ou tráfico de pessoas, por exemplo.

A presença dos pais deve perdurar por toda a contratualidade, e se em algum momento qualquer situação de perigo estiver se apresentando, a atividade deverá ser interrompida. A assistência dos pais também deverá ser observada ao término da contratualidade, eis que eles garantirão a efetiva aplicação de direitos decorrentes do contrato de trabalho, e ainda na efetiva contribuição daquela atividade laborativa àquele menor.

Em segundo lugar, é evidente que o mundo mudou e que hoje temos tecnologia ao alcance dos dedos, que qualquer criança tem condições de manusear um smartphone, mas as escolas de ensino regular não mudaram não se adaptaram às novas tendências mundiais. As crianças passam anos em um sistema educacional ultrapassado, aprendendo matérias desnecessárias, para viver em um mundo que não existe mais, que ficou lá no passado. Portanto, é preciso investir nos educadores, nas salas de aula e, sobretudo, na educação emocional das novas gerações, essa certamente será a melhor saída para a mudança de paradigmas.

Importante mencionar que inteligência emocional é um conceito presente na psicologia e criado pelo psicólogo Daniel Goleman33, o indivíduo emocionalmente inteligente é o que consegue identificar as suas emoções com mais facilidade, aquele que tem a capacidade de se automotivar e seguir em frente, mesmo diante de frustrações e desilusões, capacidade de controlar impulsos e canalizar emoções para as situações adequadas, praticar a gratidão e motivar as pessoas. O indivíduo que possuir o controle das emoções e sentimentos para atingir algum objetivo tem mais vantagem para obter o sucesso pessoal e profissional. Para os estudiosos do comportamento humano, a inteligência emocional pode ser considerada mais importante do que a inteligência mental (conhecida como QI). Nesse sentido a importância do investimento desse tipo de abordagem no ensino básico, mudando os paradigmas atuais.

E por fim, cabe salientar que há a necessidade de criação e implementação de políticas eficazes, por parte dos órgãos públicos competentes, para atuarem no controle e fiscalização, uma vez que não há na legislação um mecanismo eficaz a fim de fiscalizar a efetivação da atividade artística infantil.

Discorre o autor Octávio Bueno Magano sobre o significado de fiscalização:

Fiscalizar, no sentido comum da expressão, significa examinar, vigiar, sindicar. No sentido técnico do Direito do Trabalho, possui as seguintes acepções: a) atuação visando à aplicação das normas legais; b) orientação de empregadores e trabalhadores quanto à observância das normas legais; c) informação às autoridades sobre deficiências de condições de trabalho, ainda não regulamentadas. 34

Também nesse sentido afirma Renato Mendes:

Por isso, o controle judicial, social e político não pode se deixar seduzir pela facilidade de se inverter valores e depositar na própria criança a responsabilidade pela satisfação de seus direitos fundamentais via o trabalho infantil. Esses direitos lhes são devidos e a nós impostos por força da lei e da ética, pelos quais devemos zelar e torná-los efetivos. A via da exigibilidade da proteção integral requer um amadurecimento político, cívico e social dos cidadãos adultos, do Legislativo, do Executivo, do Judiciário, do Ministério Público e da própria academia.35

Por tais razões, cabe a toda organização estatal fiscalizar e aplicar regras que melhorem as condições de trabalho do artista mirim, a criação e implementação de uma abordagem reformulada e atual, para acompanhar a evolução social, no sentido de educação emocional universal, desde a sua aplicação na educação regular escolar, como nos lares e organizações estatais.

Sobre a autora
Manoela Garcia Feula Keppler

Sou Advogada, inscrita nos quadros da OAB/RS desde 2010, sou especialista em Direito Material e Processual do Trabalho.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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