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A persecução penal dos torturadores da ditadura argentina (1976-1983) e a sua relação para com a anistia brasileira

Agenda 19/04/2024 às 08:55

Análise das etapas percorridas na responsabilização penal dos torturadores da última ditadura argentina e traça um paralelo com o caso brasileiro, tendo em vista as similitudes e diferenças entre os processos jurídico-políticos de ambos os países.

A última ditadura argentina, compreendida entre 1976 e 1983, caracterizou-se extrema pela crueldade com que tratou os seus opositores. O número de vítimas impressiona até em comparação aos outros regimes militares do Cone Sul. Estima-se que, em sete anos, a “guerra suja” lá empreendida produziu 30.000 mortos e desaparecidos, sendo que centenas de filhos dessas vítimas foram sequestrados e destinados criminosamente à adoção. Por outro lado, “apenas” 350 pessoas foram sentenciadas por “terrorismo” e “subversão”, demonstrando que a perseguição política se deu, essencialmente, à margem das próprias leis de exceção.1 A mais emblemática das técnicas utilizadas para o extermínio e desaparecimento de presos políticos era representada pelos chamados “vôos da morte”, cujos relatos são ilustrativos:

“Eram levados à enfermaria do porão, onde os esperava o enfermeiro que lhes aplicava uma injeção para adormecê-los, mas que não os matava. Assim, vivos, eram retirados pela porta lateral do porão e introduzidos em um caminhão. ‘Drogados’, eram levados ao Aeroparque, embarcados em um avião que voava para o Sul, mar adentro, onde eram atirados vivos.

[...]

“Em geral, no concernente ao destino dos ‘transferidos’, os oficiais evitavam tocar no tema e inclusive proibiam expressamente fazê-lo. Segundo nossa experiência, a partir do comentado por alguns oficiais do G.T., nos prisioneiros ‘transferidos’ era aplicada uma injeção “pentotal” e, depois de carregados dopados num avião, eram atirados ao mar. Diziam que, antes, os métodos consistiam em fuzilamentos e incineração nos fornos da ESMA ou sepultamento em fossas comuns de cemitérios da Província de Buenos Aires”.2

Muito desgastada, a ditadura encabeçada pelos militares tornou-se insustentável após a vexatória derrota para os ingleses na “Guerra das Malvinas”, em 1982. No ano seguinte, com a derrocada do regime de exceção, realizaram-se eleições que levaram à Presidência da República Raúl Alfonsín. Rapidamente criou-se a Comissão Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), que, ao investigar as atrocidades perpetradas, viabilizou o julgamento – e a condenação –, em 1985, de alguns dos mais altos dirigentes do regime militar argentino.3 Tais investigações foram alvo de intensas pressões políticas, forçando o governo a enfrentar rebeliões e ameaças, enquanto a sociedade civil se mobilizava para garantir a ordem democrática. Foi nesse contexto que, em 1986 e 1987, respectivamente, promulgaram-se as leis do Ponto Final (Lei nº 23.492/1986) e da Obediência Devida (Lei nº 23.521/1987). A primeira estabelecia um prazo exíguo para a apuração das atrocidades cometidas, enquanto a segunda garantia a impunidade de militares subordinados sob o fundamento de que estariam cumprindo ordens superiores.

Não se precisou de muito tempo para tais diplomas legais serem questionados judicialmente, e, ainda em 1987, a Corte Suprema de Justiça da Argentina decidiu, por maioria, pela constitucionalidade deles. Naquele momento, entendeu-se – como aqui no Brasil, em 2010, quando do julgamento da ADPF nº 153 – que não caberia ao Poder Judiciário “rever” anistias concedidas pelo Legislativo, sob pena de ofender a separação de poderes:

No incumbe al Poder Judicial juzgar sobre la oportunidad, el mérito o la conveniencia de las decisiones de los otros poderes del Estado, sino que, antes bien, es misión de los jueces, en cumplimiento de su ministerio, como órgano de aplicación del derecho, coadyuvar en la legítima gestión de aquéllos.4

Reforçando a impunidade, a partir de 1989, o então Presidente Carlos Menem concedeu, por meio de decretos, indultos a vários agentes da repressão, incluindo aqueles condenados em 1985, e também a alguns integrantes da resistência à ditadura. Não obstante, o entendimento da Suprema Corte passou por relevantes mutações a partir de 1994, quando a Constituição da Argentina equiparou, entre outros tratados de direitos humanos, a Convenção Americana às normas constitucionais, segundo a redação expressa do art. 75, n. 22. Foi o princípio de uma grande escalada em direção à responsabilização, uma vez que, em 1992, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos já asseverava que as leis e decretos de anistia argentinos violavam os artigos 1º, 8º (direito a um julgamento justo) e 25 (direito à proteção judicial) da Convenção Americana e 18 (direito à justiça) da Declaração Americana dos Direitos do Homem, recomendando ainda à Argentina “la adopción de medidas necesarias para esclarecer los hechos e individualizar a los responsables de las violaciones de derechos humanos ocurridas durante la pasada dictadura militar.”5 Logicamente, o status constitucional dos tratados de direitos humanos foi fundamental para fortalecer o compromisso para com as recomendações oriundas dos seus próprios mecanismos.

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Assim, foi crescente, tanto interna quanto externamente, a demanda pelo fim da impunidade dos agentes da perseguição política. Buscando brechas na legislação em vigor, entidades de direitos humanos conseguiram novamente levar chefes militares aos tribunais, em 1998, pelos sequestros de bebês – delitos de natureza permanente, prolongados no tempo, não protegidos pelos diplomas de anistia anteriores e tampouco pela prescrição. No mesmo ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou o Caso Velásquez Rodríguez VS. Honduras, ficando assentado o dever que os países têm de investigar os desaparecimentos forçados, além de o Congresso Nacional argentino, pressionado, revogar as leis do Ponto Final e da Obediência Devida. Entretanto, tal “revogação não alterava os efeitos das decisões tomadas durante a vigência das leis, mas apenas daquelas que fossem tomadas dali em diante”6, invocando-se a segurança jurídica como empecilho para a análise de fatos pretéritos. Aliás, desde a sua defesa na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a Argentina já se apegava à questão temporal para manter suas anistias, alegando inclusive que, quando dos fatos, o país sequer tinha ratificado a Convenção Americana:

Em todos os seis casos, o governo argentino sustentou que as alegadas violações dos direitos humanos ocorreram antes da ratificação da Convenção Americana de Direitos Humanos pela Argentina, logo, os casos seriam inadmissíveis ratione temporis. E mencionou o art. 28, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, referente à não-retroatividade na aplicação dos tratados.

[...]

A justificativa para se alcançar esse juízo de admissibilidade foi que as violações que estavam sendo denunciadas não diziam respeito aos crimes praticados durante a ditadura, quando a Convenção Americana de Direitos Humanos ainda não estava em vigor, mas, sim, se relacionavam ao fato da própria emissão das leis de anistias (estas sim ocorreram posteriormente à ratificação da Convenção Americana de Direitos Humanos), as quais negavam às vítimas das violações os direitos à proteção judicial e a um julgamento justo (arts. 8. e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos).7

Progressivamente, o cenário atual argentino continuou a se desenhar, travando-se um extraordinário embate jurídico: de um lado, o apelo cada vez maior pelo fim da impunidade, sustentado por normas e obrigações internacionais; de outro, pressões conservadoras apoiando-se nos princípios da legalidade estrita e da irretroatividade da lei penal mais severa para impedir novos julgamentos. Isso, pois, assim como o Brasil, à época dos fatos em tela a Argentina não havia ratificado nem mesmo a Convenção Sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade (1968). Nesse sentido, ainda restavam dois importantes obstáculos jurídicos para a persecução penal dos crimes do regime militar argentino, que se confundiam: as leis de anistia, que, embora revogadas, já teriam produzido os seus efeitos; e a prescrição, uma vez que a adesão à última Convenção só ocorreu em 2003, não podendo retroagir para atingir as perseguições políticas.

Acompanhando o espírito da Constituição a partir de 1994, reforçado pelo seu art. 118. que reconhece o “derecho de gentes”, o Poder Judiciário argentino passou a qualificar de crimes contra a humanidade os episódios atribuídos à repressão política, considerando-os, por conseguinte, imprescritíveis e insuscetíveis de anistia em razão do costume internacional, como afirmado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos no Informe nº 28/92 e reiterado pela Corte Interamericana no Caso Barrios Altos8. Segundo tal entendimento, os crimes contra a humanidade são tão graves que não se restringem ao plano interno, ofendendo ainda a ordem jurídica internacional. Quando o Estado organizado militarmente persegue de forma sanguinária parcela de sua população civil, seja por razões políticas, étnicas ou religiosas, toda a comunidade universal é atingida, exigindo, portanto, a punição dos responsáveis, considerando tais delitos imprescritíveis e insuscetíveis de anistia – como acontece desde a 2ª Guerra Mundial. A preocupação é impedir a impunidade decorrente do próprio ordenamento jurídico interno, elaborado muitas vezes pelos próprios criminosos, ou ainda de uma provável prescrição, tendo em vista que as ditaduras sustentam-se no poder por tempo indeterminado. Por esses motivos, independem de positivação interna. “As noções de crime internacional, norma de jus cogens e obrigação erga omnes visam a proteger os interesses comuns da sociedade internacional.”9

A questão, finalmente, foi decidida de forma definitiva em 14 de junho de 2005, quando do julgamento da Causa nº 17.768, em que a Corte Suprema de Justiça da Argentina declarou a nulidade das leis do Ponto Final e da Obediência Devida, adotando como paradigma as sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos em casos análogos, considerando imprescritíveis os crimes contra a humanidade, e o já mencionado Informe nº 28/92 da Comissão Interamericana. Longe de considerar essa imprescritibilidade uma ofensa ao princípio da legalidade, o tribunal asseverou que a Convenção Sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade (1968) não foi responsável pelo surgimento do instituto, mas tão somente reconheceu formalmente uma norma já existente, cogente, aplicável a todos os países da comunidade internacional. Discussão especialmente polêmica entre os penalistas, a imprescritibilidade – independentemente de previsão no direito interno – dos crimes contra a humanidade contou com o aval de Eugenio Raúl Zaffaroni, que em seu voto declarou: “el derecho internacional también impone la imprescriptibilidad de los crímenes de lesa humanidad, consagrada primeramente por el derecho internacional consuetudinario y codificada en convenciones con posterioridad”.10 Com isso, foram resolvidos os entraves jurídicos que ainda impediam a persecução penal dos agentes da repressão política, refletindo de forma inequívoca o apelo constitucional por um maior apreço aos direitos humanos e às obrigações assumidas internacionalmente.

Desse modo, tais momentos permitem extrair os principais dilemas enfrentados naquele país, facilitando, com isso, a compreensão do contexto brasileiro. Enquanto lá a ditadura foi recordista no número de vítimas, a Argentina é considerada atualmente o mais avançado entre os demais países sul-americanos em relação ao tratamento dado às gravíssimas violações de direitos humanos cometidas pelos regimes de exceção que aterrorizaram a região, com centenas de torturadores presos – inclusive das mais altas patentes militares e em cadeias comuns, evidenciando uma situação precursora em todo o continente.11

No Brasil, contudo, o Supremo Tribunal Federal referendou a suposta anistia bilateral em 2010, demonstrando a disparidade entre os dois países e o longo caminho a ser percorrido. Apesar disso, buscou-se, aqui, a persecução penal dos torturadores com base na permanência dos desaparecimentos forçados, nos moldes do que foi feito pelo país vizinho, tendo em vista que, pelo menos em tese, seriam crimes de sequestro e/ou ocultação de cadáver que ainda estariam sendo cometidos enquanto a vítima não fosse localizada, não contrariando a decisão do STF por não serem alcançados pela anistia ou pela prescrição.12 Com base nessa construção, alguns membros da repressão brasileira chegaram a ser processados, sem, no entanto, que fosse obtida uma sentença penal condenatória definitiva.

Sendo assim, pode-se concluir que a Argentina conseguiu avançar muito mais do que o Brasil em termos de justiça de transição, ou seja, na reparação das violações de direitos humanos cometidas pelo seu regime de exceção. Algumas razões para isso podem estar no número de vítimas fatais ser muito maior para aquele país, gerando uma comoção social mais explícita, aliado ao contexto político gerado pela impactante derrota na Guerra das Malvinas, em desfavor dos militares. Além disso, a Constituição argentina reconhece textualmente o “derecho de gentes”, dando mais proeminência às normas internacionais de direitos humanos, e facilitando a aceitação, por parte de sua comunidade jurídica, da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade – o que ainda sofre muitas restrições no Brasil, em razão do princípio da legalidade penal estrita. Nesse ponto, apesar das similitudes e da extrema crueldade existente nos dois regimes militares, as condicionantes políticas, aliadas a uma singularidade do sistema jurídico argentino, parecem ter sido decisivas para tamanha diferença no caminho da persecução penal dos autores de crimes contra a humanidade cometidos durantes os chamados “anos de chumbo”.


REFERÊNCIAS

AYRES, Rodrigo Santa Maria Coquillard. Desaparecimento forçado, anistia e revanchismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4266, 7 mar. 2015. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/36914/desaparecimento-forcado-anistia-e-revanchismo>. Acesso em: 08 mai. 2018.

BASTOS, Lucia Elena Ferreira. Anistia – As Leis Internacionais e o Caso Brasileiro. Curitiba: Juruá, 2009.

CIDH, Informe nº 28/92, 02 out. 1992.

CONADEP. Nunca Mais: Informe da Comissão Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas na Argentina, presidida por Ernesto Sábato. Porto Alegre: L&PM, 1984.

Corte IDH, Caso Chumbipuma Aguirre y Otros VS Peru, 14 mar. 2001.

CSJN, C. 17.768, 14 jun. 2005. Disponível em: <https://www.refworld.org/cases,ARG_SC,4721f74c2.html>. Acesso em: 07 mai. 2018.

CSJN, C. 547, XXI, 22 jun. 1987.

GUEMBE, María José. Reabertura dos processos pelos crimes da ditadura militar Argentina. Sur, Revista Internacional de Direitos Humanos. São Paulo, v. 2, n. 3, dez. 2005. Disponível em <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S[180]6-64452005000200008&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 06 mai. 2018.

MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. V. 1. 15ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.


Notas

1 CONADEP. Nunca Mais: Informe da Comissão Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas na Argentina, presidida por Ernesto Sábato. Porto Alegre: L&PM, 1984. p. 347.

2 Ibid. p. 164. e 165.

3 O general Rafael Videla e o almirante Emilio Massera, por exemplo, foram condenados à prisão perpétua.

4 CSJN, C. 547, XXI, 22 jun. 1987.

5 CIDH, Informe nº 28/92, 02 out. 1992.

6 GUEMBE, María José. Reabertura dos processos pelos crimes da ditadura militar Argentina. Sur, Revista Internacional de Direitos Humanos. São Paulo, v. 2, n. 3, dez. 2005. Disponível em <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S[180]6-64452005000200008&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 06 mai. 2018.

7 BASTOS, Lucia Elena Ferreira. Anistia – As Leis Internacionais e o Caso Brasileiro. Curitiba: Juruá, 2009. p. 272-274.

8 Corte IDH, Caso Chumbipuma Aguirre y Otros VS Peru, 14 mar. 2001.

9 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. V. 1. 15ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 87.

10 CSJN, C. 17.768, 14 jun. 2005. Disponível em: <https://www.refworld.org/cases,ARG_SC,4721f74c2.html>. Acesso em: 07 mai. 2018.

11 Argentina já tem presos 486 torturadores do tempo da ditadura. Folha de São Paulo, 28 mar. 2011.

12 AYRES, Rodrigo Santa Maria Coquillard. Desaparecimento forçado, anistia e revanchismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4266, 7 mar. 2015. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/36914/desaparecimento-forcado-anistia-e-revanchismo>. Acesso em: 08 mai. 2018.

Sobre o autor
Rodrigo Santa Maria Coquillard Ayres

Advogado. Indigenista Especializado da FUNAI, com atuação na Frente de Proteção Etnoambiental Madeirinha-Juruena. Graduado em Direito pela PUC-Rio. Pós-graduado em Direito pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AYRES, Rodrigo Santa Maria Coquillard. A persecução penal dos torturadores da ditadura argentina (1976-1983) e a sua relação para com a anistia brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7597, 19 abr. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66112. Acesso em: 27 dez. 2024.

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