RESUMO: O tema proposto é muito genérico e subjetivo – O Direito que interessa ao Brasil, hoje -, mas procuramos recortá-lo mais pelos fundamentos sociológicos do Direito, para que não ficasse nas nuvens ou só nas intenções da lei. É muito difícil trabalhar com um tema como este, porque é impossível esgotar o assunto ou os temas correlatos. É fácil perder a objetividade e é difícil fazer análise crítica da conjuntura sem ficar refém da mesmice ou do senso comum.
PALAVRAS-CHAVE: Estado de Direito; República Federativa; Políticas Públicas; Sociedade Civil; Função Social do Direito.
SUMÁRIO: 1ª Parte: O sentimento da injustiça generalizada; 2ª Parte: Da lei à prática social; 3ª Parte: Alguns meios para o caminho público.
State of Law in Brazil:
The Law that interests Brazil nowadays
Abstract: This work is intended for proposing a generic and subjective theme: the Law that interests Brazil nowadays. However, we make an attempt to highlight the sociological basis of Law so that it does not approach only the intentions of law. Such subject is rather difficult to work with, once it seems impossible to cover each and every correlated theme. By the other hand, it is easy to lose the objective, although is difficult to make a critical analysis on the conjuncture without get caught by the commonplace.
Keywords: State of Law, Federative Republic, Public Policies, Civil Society, social function of Law.
1ª PARTE
O SENTIMENTO DA INJUSTIÇA GENERALIZADA [1]
Há um sentimento e uma prática de injustiça generalizada no Brasil, quase como se disséssemos que a injustiça no Brasil é uma condição natural, pois apenas substituímos a escravidão dos negros por um capitalismo que escraviza negros e brancos. Temos declarações, Constituições e direitos de liberdade desde a Proclamação da República, temos até Estado de Direito, mas na prática vigem outras relações jurídicas e políticas de dominação ou de compadrio. No Brasil, o Direito sempre foi sinônimo de formalidade e não de liberdade: "aos amigos tudo, aos inimigos, a lei!" – diz-se isso em tom de máxima de análise social. Aliás, como se vê, uma formalidade nefasta e cínica, que logo cairia na boca do povo e viraria motivação para ditados populares e piadas.
Mas que tipo de Justiça nós poderíamos esperar? Como advertia o jurista e iluminista Hélio Bicudo [2], já em 1982:
A Justiça é a arte do bom e do eqüitativo, na sábia definição dos romanos (...) Podemos aceitar, ou não, esse conceito de Justiça, mas está no coração do homem, arraigado desde que ele passou a ter consciência de ser, uma concepção do que é bom e do que é mau. Enfim, do que é justo e do que é injusto (...) Atentemos bem, não é a ciência, mas a arte do bom e do eqüitativo. Quem administra a Justiça não pode, assim, deixar-se prender pelas palavras da lei – não é um cientista – mas deve ir além delas – é um artista – buscar o seu espírito, levedá-lo com a sabedoria dos mais experientes, para concluir de sorte a dar a cada um o que é seu (1982, pp. 83-4).
Podemos discutir, divergir se a Justiça está ou esteve no coração do homem ou não, mas é certo que o que nós queremos é mais justiça: ao menos esperam pela Justiça aqueles que nunca a desfrutaram. De outra forma, podemos pensar que Direito, Justiça, Política, Ética e outras grandezas humanas foram criadas por nossas extremas necessidades de sobrevivência em um ambiente hostil: ou criávamos essas dimensões metafísicas ou nos matávamos aos poucos.
Mas, no Brasil, nossa estrutura social instigou uma cultura com valores de certo modo trocados. Sérgio Buarque de Holanda dizia que o povo brasileiro desenvolveu um sentimento cordial, de cordialidade: no fundo, um certo cinismo diante das instituições e dos centros de poder. Como diz o próprio Sérgio Buarque:
Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o "homem cordial" (...) Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no "homem cordial": é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas sua sensibilidade e suas emoções (...) Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social. E, efetivamente, a polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo (Holanda, 1995, pp. 146-147).
Também é impossível não retomar a clássica interpretação de Antonio Cândido:
Formado nos quadros da estrutura familiar, o brasileiro recebeu o peso das "relações de simpatia", que dificultam a incorporação normal a outros agrupamentos. Por isso, não acha agradáveis as relações impessoais, características do Estado, procurando reduzi-las ao padrão pessoal e afetivo. Onde pesa a família, sobretudo em seu molde tradicional, dificilmente se forma a sociedade urbana de tipo moderno (...) O "homem cordial" não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos comportamentos de aparência afetiva, inclusive suas manifestações externas, não necessariamente sinceras nem profundas, que se opõem aos ritualismos da polidez (1995, pp. 16-17).
A polidez é uma arma, um meio ou recurso de sobrevivência voltada contra o agressor externo (social) e que pode ser a formalidade burocrática do Estado – se esta for entendida como perigosa à segurança das relações pessoais:
Ao que se poderia chamar de "mentalidade cordial" estão ligados vários traços importantes, como a sociabilidade apenas aparente, que na verdade não se impõe ao indivíduo e não exerce efeito positivo na estruturação de uma ordem positiva. Decorre desse fato o individualismo, que aparece aqui focalizado de outro ângulo e se manifesta como relutância em face da lei que o contrarie. Ligada a ele, a falta de capacidade para aplicar-se a um objetivo exterior (1995, p. 17).
No mesmo período (anos 30), Gilberto Freyre [3] escrevia que no Brasil vivemos uma verdadeira democracia racial. Pois bem, nem a cordialidade é o que o nome sugere que seja e nem há e nem nunca houve nenhuma democracia racial, porque nossa miscigenação esteve marcada pela violência do estupro das mulheres negras. Para muitos, talvez o racismo advenha desse sentimento de culpa, um resquício perverso.
De qualquer modo, o mais importante é chamar a atenção não para a escrita das palavras no corpo da lei, no simples texto, mas sim alertar para a sua escritura, para o seu contexto, para o espírito objetivo da lei que se revela pela análise do currículo oculto do legislador. Principalmente o magistrado, quem sabe até mais do que o legislador, é resultado direto do que leu, mas ainda mais do que viu e viveu ou não. Por isso, é tão necessária essa sensibilidade para o mundo exterior da política, da sociologia, da antropologia e para a vida social é o que mais o jurista brasileiro precisa ter em conta e sempre presente na consciência. Em outras palavras, buscar a consciência da injustiça sistêmica e sistemática que sempre recobriu as instituições políticas, sociais e jurídicas brasileiras. Alguns juristas, mais sensíveis aos temas sociais, propõem o estudo e a aplicação do método sociológico à apreciação da lei:
Por esse método de interpretação, a lei deve harmonizar-se com as necessidades e tendências da sociedade no momento da sua aplicação (...) Köhler foi dos maiores mestres do método sociológico, na Alemanha. Ele se insurge contra a interpretação do legislador e, por isso, dá pouca importância aos trabalhos preparatórios e à discussão parlamentar (...) Interpretar, diz Köhler, é procurar o sentido e a significação do que foi dito na lei e não do que quis dizer o legislador. A lei deve ser interpretada sociologicamente, como produção do grupo social de que o legislador se fez órgão (Lima, 1957, p. 109-110).
É curioso ressaltar que é um método que não nos desobriga da consulta à própria lei, a exemplo do que está disposto no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil:
Refletindo essa orientação moderna pela feição sociológica da interpretação, a nova lei [4] de introdução ao Código Civil dispõe no seu artigo 5º o seguinte: "Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum" (...) A interpretação requer de quem a faz conhecimentos mais amplos no campo da cultura geral. O conhecimento da língua, dos princípios que servem de base aos institutos, da sociologia, da lógica, enfim, de todos os elementos que tragam ao espírito as luzes necessárias para a percepção da lei e de suas finalidades, são condições para uma boa interpretação (Lima, 1957, p. 110).
A lembrança dessa observação é devida a Éclair Ferraz Beneditti, professor e juiz aposentado em Marília-SP, e que comenta os efeitos do referido artigo da Lei de Introdução, do seguinte modo:
No sistema jurídico brasileiro o juiz está adstrito à lei, tanto que a função jurisdicional, cujo exercício a ele compete, significa, sinteticamente, o poder de aplicar a lei ao caso concreto. Todavia, quando aplica a lei, o juiz não atua como se fora um autômato ou uma simples máquina. Consoante a Lei de Introdução ao Código Civil, em seu art. 5º (...) Esse é o norte, para todos os juízes, em todos os casos submetidos à apreciação judicial [5].
A sugestão de se utilizar a velha Lei de Introdução ao Código Civil, portanto, não deveria provocar nenhum espanto, mas ocorre que ficamos boquiabertos. Por quê? Porque nossos magistrados, com honrosas exceções, ainda não têm essa sensibilidade sociológica. E disso deriva a necessidade de que atentemos ainda mais para este método da sensibilidade sociológica: entre nós, analisar o Direito em face da história, do social, do político. Trata-se de um olhar jurídico para fora, para as ruas, saindo um pouco de casa, da segurança da dogmática, deslocando-se do Estado em direção à Sociedade Civil [6]. Teoricamente, o direito social seria menos ideológico.
O Direito será tão mais sociológico - e, portanto, menos ideológico - quanto mais se buscar efetivar sua meta ou função social. Neste caso, não há exagero em dizer que haveria uma subsunção do indivíduo na sociedade, do particular no geral e do privado no público. Neste curso, da subsunção invertida, em que o jurídico se reporta ao social e ao político, esvai-se também a ideologia – como enigma estrutural. E assim o Direito se tornaria vida ativa [7], um dado concreto desta dinâmica relação que se tem entre Estado e sociedade. Para Pierre Clastres, diferentemente da nossa, nas sociedades indígenas (primeiras), o Direito é dialogado:
Se o esforço de persuasão fracassa, então o conflito corre o risco de se resolver pela violência e o prestígio do chefe pode muito bem não sobreviver a isso, uma vez que ele deu provas de sua impotência em realizar o que se espera dele. Em função de que a tribo estima que tal homem é digno de ser um chefe? No fim das contas, somente em função de sua competência "técnica": dons oratórios, habilidade como caçador, capacidade de coordenar as atividades guerreiras, ofensivas ou guerreiras. E, de forma alguma, a sociedade deixa o chefe ir além desse limite técnico, ela jamais deixa uma superioridade técnica se transformar em autoridade política (1990, p. 144).
O que se quer assinalar com isso é que há um instigante debate interno entre dogmática jurídica e dinâmica social, com destaque para o poder da lei que não está na subsunção, mas sim no diálogo e na aquiescência que o legitima. Por isso, o jurista também pode buscar inspiração na realidade de um romance social como Vidas Secas, de Graciliano Ramos - porque se trata da realidade e não da ficção [8]. Por esse método da sensibilidade sociológica, em que o real aflora da epiderme, no movimento analítico do contrapelo, vemos que o Direito não pode mais ignorar a vida seca, inerte dos dias atuais, sem esperança de justiça social.
Esse é o caso patente do juiz Antonio Francisco Pereira (Juiz Federal em Belo Horizonte), ao prolatar sentença que envolvia acampamento de Sem-Terras, advertindo justamente para a qualidade das vidas secas:
E aqui estou eu, com o destino de centenas de miseráveis nas mãos. São os excluídos, de que nos fala a Campanha da Fraternidade deste ano. Repito, isto não é ficção. É um processo. Não estou lendo Graciliano Ramos, José Lins do Rego ou José do Patrocínio. Os personagens existem de fato. E incomodam muita gente, embora deles nem se saiba direito o nome. É Valdico, José Maria, Gilmar, João Leite (João Leite???). Só isso para identificá-los. Mais nada (...) Ora, é muita inocência do DNER se pensa que eu vou desalojar este pessoal, com a ajuda da polícia, de seu moquiços, em nome de uma mal arrevesada segurança nas vias públicas (...) Grande opção! Livra-os da morte sob as rodas de uma carreta e arroja-os para a morte sob o relento e as forças da natureza. Não seria pelo menos mais digno – e menos falaz – deixar que eles mesmos escolhessem a maneira de morrer, já que não lhes foi dado optar pela forma de vida? [9].
Pois bem, vendo por este método, concluímos que no Brasil temos de implantar a República, com todas as suas conseqüências e hoje isso também equivaleria a constituir um Estado de Direito efetivo, também para valer. Por outras razões (mais conservadoras), Oliveira Vianna também dirá, nos anos 30, que no Brasil não se formou o citizen. Para Vianna, não se formou no Brasil um sentimento de urbanidade e nem um sentimento comunitário e solidário. Nossas aldeias, vilas ou cidades foram formadas por imposição do Estado ou da corte. Seus moradores eram aqueles vadios [10] inúteis à República:
Era o que se chamava uma ‘convocação’. Na vila de Lages, por exemplo, os ‘convocados’ foram os carijós infixos e vagabundos, que erravam pela Capitania: — ‘...E lhe permito convoque para o dito feito todos os forros carijós administrados que tiver notícia andem vadios e não têm casa, nem domicílio certo, nem são úteis à República, e os obrigue a povoar as ditas terras [11] (idem, p. 95).
Como é que se obriga, por lei, a que alguém se porte como republicano, convertendo-se à urbanidade?
Não sabemos o que é público porque não tivemos – não temos – uma República para valer, que não se apresentasse somente em desfile de dragões:
O povo sabia que o formal não era sério. Não havia caminhos de participação, a República não era para valer. Nessa perspectiva, o bestializado era quem levasse a política a sério, era o que se prestasse à manipulação. Num sentido talvez ainda mais profundo que o dos anarquistas, a política era tribofe. Quem apenas assistia, como fazia o povo do Rio por ocasião das grandes transformações realizadas a sua revelia, estava longe de ser bestializado. Era bilontra (...) A cidade, a República e a Cidadania continuam dissociadas (...) O esforço de associá-las segundo o modelo ocidental tem-se revelado tarefa de Sísifo (...) Se a República não republicanizou a cidade, cabe perguntar se não seria o momento de a cidade redefinir a República segundo o modelo participativo que lhe é próprio, gerando um novo cidadão mais próximo do cotidiano (Carvalho, 1987, pp. 160-04).
Assim, se a República e a democracia são meras ficções, se o que temos é uma situação de total injustiça, então, o Estado de Direito no Brasil seria revolucionário. Pois, não temos nem mesmo o grau elementar da igualdade perante a lei - ainda é uma prática social e antijurídica a velha expressão: "— sabe com quem está falando?". Com a expressão, o indivíduo quer afastar justamente a igualdade formal, porque se ele é mais do que os demais, então, supõe-se estar acima da lei. A negação do formal é a principal característica de quem nega o Direito ou seguem apenas as leis criadas por ele mesmo. Será este o sentido dado por Damatta:
Leituras pelo ângulo da casa ressaltam a pessoa. São discursos arrematadores de processos ou situações. Sua intensidade emocional é alta. Aqui, a emoção é englobadora, confundindo-se com o espaço social que está de acordo com ela. Nesses contextos, todos podem ter sido adversários ou até mesmo inimigos, mas o discurso indica que também são ‘irmãos’ porque pertencem a uma mesma pátria ou instituição social. Leituras pelo ângulo da rua são discursos muito mais rígidos e instauradores de novos processos sociais. É o idioma do decreto, da letra dura da lei, da emoção disciplinada que, por isso mesmo, permite a exclusão, a cassação, o banimento, a condenação (Damatta, 1985, p. 16).
Entre a casa e a rua, o doméstico e o oficial, o amigo e o inóspito, o informal e o formal, há um choque institucional, cultural e isso ajuda a entender porque o Direito sempre andou tão distante de nossa história social e política. O Estado e o Direito sempre foram feitos, realmente, para um grupo seleto de pessoas – para os demais, para a imensa maioria, restaria a cordialidade:
Em casa somos todos, conforme tenho dito, ‘supercidadãos’ (...) Mas e na rua? (...) Somos rigorosamente ‘subcidadãos’ (...) Jogamos o lixo para fora de nossa calçada, porta e janelas; não obedecemos às regras de trânsito, somos até mesmo capazes de depredar a coisa comum, utilizando aquele célebre e não analisado argumento segundo o qual tudo que fica fora de nossa casa é um ‘problema do governo’! Na rua a vergonha da desordem não é mais nossa, mas do Estado. Limpamos ritualmente a casa e sujamos a rua sem cerimônia ou pejo...Não somos efetivamente capazes de projetar a casa na rua de modo sistemático e coerente, a não ser quando recriamos no espaço público o mesmo ambiente caseiro e familiar (...) Do mesmo modo, parece impossível continuar operando com um sistema político onde os acordos pessoais ultrapassam sempre (e no momento o mais preciso) as lealdades ideológicas e o sistema econômico funciona com duas lógicas (Damatta, 1985, pp. 16-7).
Com isso, o usurpador da vida pública procura o doméstico, o caseiro, a amabilidade paternal, recusando o campo formal e impessoal que acompanha o mundo do Estado de Direito, dos adultos, das relações públicas amadurecidas e isentas, tanto quanto possível, das interferências pessoais de seu status.
Neste sentido, a presunção que traz o princípio da igualdade, no caput do artigo 5º da CF/88, é o dado mais ideológico que encontramos no Direito Constitucional brasileiro. Assim, em que base pode-se discutir o que é Justiça?