5 SEPARAÇÃO DOS PODERES
Norberto Bobbio recorre aos ensinamentos sobre Teoria Política para esclarecer que o Estado é definido como portador da summa potestas (poder supremo, soberania) e que a Teoria do Estado se apoia, basicamente, sobre a teoria dos três poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) e das relações entre eles (1909, p. 100).
Todavia, a utilização do termo “separação” ou “tripartição” dos poderes se faz imprópria, pois, como se sabe, o Poder do Estado é uno, indivisível e indelegável (LENZA, 2013, p. 518), de modo que qualquer classificação ou divisão se dá em relação às três funções essenciais: i) legislar; ii) governar (ou administrar); iii) julgar segundo suas próprias leis e costumes. Funções estas que ficarão sob a responsabilidade de órgãos estatais distintos, exercendo cada qual seu papel. José Afonso da Silva, por sua vez, afirma que “o poder é um fenômeno sociocultural”, uma vez que o Estado, como estrutura social, carece de vontade própria e real, ficando determinado que poderá exercer sobre seus cidadãos um poder político capaz de coordenar e impor decisões visando à realização de determinados fins (SILVA, 2017, pp. 108-109).
A separação dos poderes do Estado, na realidade brasileira, representa uma forma de se exercer o controle e a fiscalização sobre os atos do governo soberano, de modo a se combater a concentração do Poder Político (absolutismo), visando minimizar os riscos de abuso de poder (LENZA, 2013, p. 514); tratando-se, portanto, de um mecanismo de freios e contrapesos, admissível na estruturação das unidades federadas (Supremo Tribunal Federal - MS23.452, Rel. Min. Celso de Mello, j. 16.09.1999, Plenário, DJ de 12.05.2000).
Nesse sentido, cada poder estatal possuirá funções típicas ou predominantes, quais sejam aquelas inerentes à sua própria natureza: a) ao Poder Legislativo caberá incidir sobre regras gerais, abstratas, impessoais e inovadoras da ordem jurídica, bem como fiscalizar os atos do Poder Executivo; b) ao Poder Executivo caberá praticar atos de chefia de Estado, chefia de governo e atos de administração, de modo a se resolver problemas concretos e individualizados, todas as vezes que sua intervenção seja necessária; c) ao Poder Judiciário caberá julgar os conflitos que lhes são levados para que seja aplicada a competente legislação (função jurisdicional).
O artigo 44 da Constituição Federal prescreve que o Poder Legislativo será exercido pelo Congresso Nacional, sendo composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, assim como o artigo 76 da Carta Política de 1988 define que o Poder Executivo será exercido pelo Presidente da República (órgão) e auxiliado pelos respectivos Ministros de Estado, restando finalmente o disposto no artigo 92 ao tratar do Poder Judiciário e da função jurisdicional. Esta sendo exercida pelo Supremo Tribunal Federal (inciso I), pelo Conselho Nacional de Justiça (inciso I-A), pelo Superior Tribunal de Justiça (inciso II), pelos Tribunais Regionais Federais e Juizes Federais (inciso III), pelos Tribunais e Juízes do Trabalho (inciso IV), pelos Tribunais e Juízes Eleitorais (inciso V), pelos Tribunais e Juízes Militares (inciso VI) e pelos Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios (inciso VII).
Enunciadas as funções típicas de cada poder, cumpre destacar que poderão eles exercer funções atípicas, desde que exista previsão legal expressa para tanto. A exemplo disso podemos mencionar alguns artigos da Constituição Federal em que essas funções atípicas poderão ocorrer:
a) artigo 52, inciso I - competirá privativamente ao Senado Federal (representante do Poder Legislativo) processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República (representante do Poder Executivo), nos crimes de responsabilidade;
b) artigo 53, §1º, c.c. art. 102, I, “b” – eventual condenação pelo STF (representante do Poder Judiciário) de parlamentar federal corrupto (Poder Legislativo) que se vale de seu cargo para indevidamente enriquecer, assim como ocorreu no julgamento do denominado “mensalão” na AP 470);
c) artigo 62 – as medidas provisórias adotadas pelo Presidente da República (Poder Executivo) poderão ser rejeitadas pelo Congresso Nacional (Poder Legislativo);
d) artigo 66, §1º - o Chefe do Poder Executivo pode sancionar ou vetar projetos de lei aprovados pelo Parlamento (Poder Legislativo);
e) artigo 66, §§4º e 6º - o parlamento (Poder Legislativo) poderá “caçar” o veto lançado pelo Chefe do Poder Executivo;
f) artigo 66, §7º - não havendo promulgação da lei, no prazo de 48 horas, pelo Presidente da República, nos casos dos §§3º e 5º, o presidente do Senado (Poder Legislativo) poderá promulga-la, se este não o fizer em igual prazo, cabendo, portanto, ao Vice-Presidente do Senado (Poder Legislativo) fazê-lo;
g) artigo 63, incisos I e II – caberá emenda parlamentar (Poder Legislativo) em projeto de lei de iniciativa exclusiva do Presidente da República (Poder Executivo);
h) artigo 64, §1º - o Presidente da República (Poder Executivo) poderá solicitar urgência para o Parlamento (Poder Legislativo) apreciar os projetos de sua iniciativa;
i) artigo 97 – os juízes (Poder Judiciário) poderão declarar a inconstitucionalidade de lei (Poder Legislativo) ou ato normativo do Poder Público (seja ele Executivo, Legislativo ou Judiciário);
j) artigo 101, parágrafo único (c.c. artigo 52, inciso III, “a”, e artigo 84, inciso XIV) – os Ministros do Supremo Tribunal Federal (Poder Judiciário) serão nomeados pelo Presidente da República (representante do Poder Executivo), depois de aprovada a escolha pela absoluta do Senado Federal (Poder Legislativo);
k) artigo 102, inciso I – competirá ao Supremo Tribunal Federal (Poder Judiciário) declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual (Poder Legislativo).
A atipicidade de determinadas funções orgânicas de um poder específico também se justifica pela necessidade de equilíbrio (harmonia) entre os poderes estatais, propiciando a devida intervenção de um poder sobre o outro (fiscalização entre os Poderes do Estado).
Por fim, há de se dizer que a cláusula da separação dos poderes (art. 2º da Constituição Federal) é de suma importância para a manutenção do poder do Estado, e que a própria Constituinte a reconheceu como sendo uma cláusula pétrea, não podendo, portanto, ser modificada, conforme os termos expressos no artigo 60, §4º, inciso III, da Constituição Federal.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do conhecimento do processo de construção da constitucionalização do Estado Democrático de Direito Social, na Carta Política de 1988 e no derivativo ordenamento jurídico brasileiro, é possível notar a sua ideia motriz, pautada na preocupação com as questões humanitárias: ou seja, não se trata de garantir direitos individuais, mas é preciso que se dê acesso à materialização (fruição) dos direitos fundamentais individuais, mas também sociais, de ordem ambiental, econômica, cultural, de inclusão.
Sob a idealidade constitucional dos princípios globais e das cláusulas pétreas da Carta Política de 1988, o povo é definido como a fonte do poder do Estado, não em um aspecto de legitimação dos interesses liberais, mas com o substancial exercício da soberania popular por meio de uma cidadania ativa. A CF/88 conferiu retorno político-jurídico ao indivíduo, nos moldes republicanos, com amplo acesso aos cargos públicos, câmaras de deliberação e com representatividade das minorias e de todas as características que conformam a sociedade plural, e de forma igualitária. Destacamos posição ao definir constitucionalmente a “desconcentração” do Poder Político – além da descentralização administrativa –, muito embora, não tenhamos avançado, como poderíamos, em termos da amplitude aposta na forma do Estado Pluriétnico.
De todo modo, como temos na Carta Política de 1988, a organização do poder, enquanto se reflete na estrutura do Estado, deve estar intimamente ligada ao aspecto de eficiência na solução das demandas sociais, conferindo meios de realização do Estado Democrático de Direito Social e inclinada à preservação das múltiplas visões de mundo inseridas no pluralismo político.
Desta forma, a partir da organização do poder político, a partir do reconhecimento da democracia como uma força normativa que atua dentro da organização do Estado, é possível o cumprimento de todas as promessas constitucionais, com uma considerável abertura para a participação popular nas questões sociais. Ao mesmo tempo que a Modernidade Tardia é palco de complexas questões de desigualdade social, pode ter nestas diferentes experiências as soluções necessárias ao alcance do Estado Material de Direito, em que fosse plena realidade tanto a Força Normativa da Constituição, quanto a Força Normativa da Democracia Constitucional.
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