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Resenha da obra 'Uma breve história da justiça distributiva' de Samuel Fleischacker

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Agenda 04/11/2018 às 13:00

De Babeuf a Rawls

Fleischacker destaca que, na maior parte do Século XIX, a crença predominante era a de que apenas os incapazes de trabalhar deveriam receber auxílio do Estado. Esse direito não decorria apenas do fato de alguém não ter condições de se manter.

No início do Século XX, Alfred Marshall defendeu que o principal e mais importante interesse da economia seria a possibilidade de erradicar a pobreza.

O New Deal (1933-1937), que foi um pacote de medidas destinadas a recuperar superar a grande depressão de 1933 nos Estados Unidos, previa um seguro social a todos os cidadãos acima de uma certa idade. Isso incluía direito à moradia, emprego adequadamente remunerado, à assistência médica, boa educação e proteção contra os temores econômicos da velhice, como doença, acidente e desemprego.

A esposa de Roosevelt, Eleanor, ajudou redigir a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948[9]. A carta falava sobre direito a seguro social, aos bens econômicos sociais e culturais indispensáveis à dignidade e ao livre desenvolvimento da liberdade, à proteção contra o desemprego, à alimentação, vestuário, habitação e cuidados médicos.

Ainda que nenhum país tivesse adotado uma estrutura legal que viabilizasse uma ação legal para obtenção desses benefícios, o fato da comunidade internacional ter adotado tal declaração revela que em meados do Século XX a noção de justiça distributiva ou social estava firmemente estruturada na consciência moral popular.

 Sucede que uma maior comoção com relação à situação dos pobres também gerou uma reação contrária à justiça distributiva. Entre os reacionários, Fleischacker destaca Joseph Townsend, que insistia na inferioridade dos pobres enquanto pessoas. Ele (Townsend) acreditava que a fome motivava os pobres e militou contra a provisão pública de auxílio aos pobres e a abolição dos Poor Laws.

O “excepcionalismo do pobre” era uma ideia reacionária e significava um retrocesso à conquista do Iluminismo referente à igualdade humana. Os defensores do excepcionalismo dos pobres poderiam ser considerados darwinistas sociais, e acreditavam que como inferiores, era inútil ajudar os pobres, pois eventualmente desapareceriam como grupo. A fome dos pobres era útil para o resto da sociedade, representando uma mera questão de sobrevivência dos mais aptos, como cunhado por Herbert Spencer, 8 anos antes de Darwin lançar sua obra “Evolução das espécies”.

Para Spencer, toda ajuda aos pobres seria um equívoco já que todo o esforço da natureza estaria em se livrar deles. Não havia problemas em caridade e ajuda privada aos pobres, mas tal atitude seria desvantajosa na medida em que prolongaria a vida dos inaptos. Já a caridade forçada seria de todo indesejável, pois esmagaria o sentimento de solidariedade e alimentaria, nos pobres, queixas e reclamações.

Entusiasmado defensor do libertarismo, Spencer não admitia que o Estado intervisse para ajudar os pobres, por violação ao direito de propriedade. Todo o propósito do governo deveria ser garantir a toda pessoa a liberdade mais plena, logo, tributar para qualquer outro fim que não fosse garantir a liberdade, seria equivalente a dar modo a vida dos outros, inadmissível tanto quanto ser forçado a ter determinada crença religiosa. Para Spencer, o governo não deveria fazer o bem, mas apenas evitar o mal.

Entre as reações contrárias à ideia de redistribuição de bens com base no fundamento da justiça, Fleischacker destaca três escolas filosóficas.

Positivismo (Augusto Comte – 1798-1857) – Doutrina filosófica que coloca sob suspeita todos os tipos de discurso moral, inclusive o discurso de justiça. O positivismo lógico questiona o significado de afirmações éticas e religiosas.

Saint Simon e Comte estavam mais preocupados em elaborar planos de ações políticas que diziam como transformar a sociedade ao invés de entender por que a sociedade seria moralmente criticável, daí porque poderiam ser considerados os precursores do socialismo. O positivismo lógico defendia que afirmações éticas e religiosas eram desprovidas de significado.

“O positivismo sempre foi atomista e sempre considerou a observação, e não o pensamento abstrato, como o modo paradigmático, talvez o único modo, de apreender cada fato individual.[10]”

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Para algumas escolas positivistas, ainda que a redistribuição de bens fosse aceita, a dificuldade estava em aceitar o fundamento, ou linguagem da justiça, uma vez que a doutrina coloca sob suspeita, todos os tipos de discurso moral, inclusive o da justiça, já que seria uma questão de “ética pura”. Positivistas estão mais conectados com questões que tratam sobre “fatos puros”.

A ideia do positivismo está intrinsicamente ligada a uma supervalorização da ciência e, por isso, tenta reduzir tudo um “empreendimento científico”, isto é, tenta formatar os pensamentos como procedimentos de parte de um experimento científico, ou, caso não seja possível “ridicularizá-los como irracionais ou vazios”.[11]

Enquanto positivistas, conde de Saint-Simon e Auguste Comte estavam mais preocupados com ciências sociais que levassem a planos de ação política sobre COMO transformar a sociedade ao redor, ao invés de analisar POR QUE tal sociedade estaria daquela forma (moralmente criticável).

A compreensão desses autores, segundo Fleischacker, era de que a ciência se fundamenta em fatos observáveis, não em metodologia idealista, como defendido por Hegel. Assim, o positivismo tende a ser atomista e acredita que cada peça da ciência pode ser conhecida individualmente, ainda que admitida a ideia de que uma ciência se constrói a partir de outras ciências.

A observação, em vez do pensamento abstrato, seria, portanto, a única forma paradigmática de se conhecer um fato individual. O problema da ética ou com a ética se daria ao fato de não conseguir coloca-la em “fundamentos sólidos”, já que os princípios fundacionais das teorias éticas não são observáveis enquanto fatos.

Marxismo (Karl Marx – 1818-1883) -  Doutrina filosófica que coloca a sociedade e não o indivíduo como centro da liberdade humana. Considera o individualismo uma doutrina fabricada por “certa história social”.

Para Fleischacker, Marx teria sido a figura mais influente a condenar as desigualdades entre ricos e pobres. Sua contribuição foi a concepção segundo a qual a natureza humana seria um produto das sociedades humanas, e as sociedades humanas seriam capazes de mudanças radicais.

Ainda assim, conquanto Marx tenha sido um ferrenho defensor da redistribuição de bens, Fleischacker acha que seria um equívoco entendê-lo como um defensor da justiça distributiva.

Marx acreditava que a justiça seria um instrumento inadequado para o socialismo e rejeitava a apresentação do socialismo como prioritariamente destinado a redistribuir bens sociais, pois não era correto separar distribuição econômica da produção econômica, uma vez que “a estrutura da distribuição é inteiramente determinada pela estrutura da produção”[12].

Disso resulta que na visão de Marx, de acordo com Fleischacker, o principal objetivo do socialismo seria humanizar a atividade econômica através de humanização da produção e distribuição.

Uma das principais críticas de Marx à ideia de justiça era que os seres humanos não poderiam ser considerados principalmente como indivíduos, mas como membros de um grupo social.

No mundo idealizado por Marx, nenhum indivíduo sacrificaria sua individualidade pelo bem comum social, pois não haveria essa distinção entre indivíduo e sociedade. As sociedades agiriam em prol de seus indivíduos, mesmo quando esses indivíduos agissem para promover o bem comum; estilo três mosqueteiros: um por todos e todos por um.

Para Marx, seríamos todos produtos das nossas relações sociais porque seríamos mais plenos quando em sociedade e não individualmente isolado. O individualismo seria apenas uma doutrina fabricada por uma “certa história social”.

Marx acreditava, essencialmente, que a sociedade, e não o indivíduo, seria o locus ou o centro da liberdade humana e a linguagem moral (justiça inclusa) seria desumanizadora. Na sociedade ideal de Marx, não haveria justiça.                  

A terceira escola da filosofia que se opunha a ideia de justiça distributiva foi o Utilitarismo de Bentham e Mill, embora Bentham sempre tenha se demonstrado preocupado com o sofrimento dos pobres.

O utilitarismo enquanto doutrina social (econômica) não é simpática a ideia de direitos absolutos, já que a premissa central é a de que, aquilo que é moralmente melhor é necessariamente aquilo que é melhor para um maior número de pessoas, portanto, os interesses individuais não podem se sobrepor aos direitos de uma coletividade.

É bom e é moral aquilo que maximizar a felicidade e minimizar o sofrimento da maior parte das pessoas. Sob o ponto de vista filosófico, o trunfo dos utilitaristas era perseguir um procedimento de decisão em que os conflitos morais manifestos pudessem ser resolvidos, por isso a obsessão por um único princípio que estivesse na base de toda reflexão moral: o que é melhor para o maior número de pessoas?

Isso reduzia as questões políticas ou morais a questões de fato, tornando o utilitarismo uma escola da filosofia de menor abstração e mais ação.

A crítica do utilitarismo a outras escolas filosóficas era de que elas se ocupavam mais com entender “por que” ao invés de “resolver”, a finalidade da filosofia moral estava mais comprometida com “autocompreensão” do que “mudança de seu ambiente”.

Por esta ótica, os utilitaristas são os filósofos que mais contribuíram na utilização das ciências sociais no esforço de aprimorar políticas públicas, pois a maximização da felicidade tinha um significado bem concreto.

Os utilitaristas não eram contra a redistribuição de bens sociais, pelo contrário, estavam entre os principais instigadores de movimentos em prol de um Estado de bem-estar social, mas apenas eram contra a ideia de justiça distributiva em seu sentido hodiernamente empregado.

Antes de abordar Rawls, a quem Fleischacker atribui o moderno conceito de justiça distributiva, o autor categorizou os pensadores que, a partir de Smith, influenciaram o tema.

Um primeiro grupo é chamado de “Reacionários”, para quem qualquer auxílio do Estado para os pobres era condenável (direito de propriedade) e não viam distributivismo como um componente de justiça; se muito, caridade, limitada ao campo privado.

O segundo grupo são os positivistas que tentavam “cientificar” tudo, superando qualquer linguagem moral nas ciências sociais.

A terceira escola, socialismo marxista, pretendeu abolir a linguagem de moralidade e de justiça, mas não por motivos científicos.

O quarto grupo, os utilitaristas aceitavam o componente moral, mas o reduziram a um único princípio: maximizar felicidade e minimizar sofrimento coletivo, o que reduzia, em muito, o espaço para justiça enquanto virtude especial ou mesmo soberana.                  

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Andre. Resenha da obra 'Uma breve história da justiça distributiva' de Samuel Fleischacker. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5604, 4 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66722. Acesso em: 22 dez. 2024.

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