John Rawls – Uma teoria de justiça
Antes de Rawls, portanto, a linguagem moral e, por conseguinte de justiça, na questão de distribuição de bens sociais e redução de pobreza estava desprestigiada. Fleischacker acredita que o trabalho de Ralws, “Uma teoria de justiça”[13] tornou a filosofia moral não-utilitarista respeitável novamente.
Para isso, afastou-se da misticidade do discurso de moralidade como uma provisão divina e aceitou que sistemas morais são criações de sociedades humanas.
Além disso, empregou aplicabilidade prática à sua teoria, que, assim como o utilitarismo, poderia ser utilizada para solucionar questões controversas. Rawls adverte, contudo, que sua pretensão é apenas solucionar problemas da justiça social, ou seja, justiça da estrutura básica da sociedade.
Por isso, buscou desenvolver uma alternativa contratualista que tivesse virtudes comparáveis, senão todas as virtudes do utilitarismo. Sua divergência com o utilitarismo estava na ênfase rigorosa de importância no indivíduo, versus a coletividade, daí seu primeiro princípio, aquele mais elementar: “cada um possui uma inviolabilidade fundada na justiça, a qual nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode sobrepujar”[14].
Para Rawls,
“uma concepção de justiça é um conjunto de princípios que nos permitem escolher entre os arranjos sociais que determinam a divisão dos benefícios produzidos por uma sociedade e subscrever um consenso com relação a quinhões distributivos apropriados”[15].
Portanto, a justiça deveria se ocupar apenas dos bens primários e mais necessários.
Em Aristóteles, mérito era o critério definidor da justiça distributiva e a distinguia da justiça corretiva: em Rawls, justiça distributiva nada tem a ver com mérito moral, porque quase todos os elementos que nos definem, estão fora do nosso controle. Ao invés, ganhou realce o preceito da necessidade.
Utilizando premissas marxistas, Rawls sustentava que se os talentos e energia moral são produtos da sociedade, então não lhe parecia certo acreditar que os indivíduos sejam responsáveis por tê-los ou não.
O desafio de Rawls não era, contudo, apoiar ou discordar de Marx, mas sim assentar entre positivistas e utilitaristas que o foco no indivíduo poderia ser tão cientificamente rigoroso e respeitável quanto o deles.
Os utilitaristas ganharam respeito por conseguirem conjugar a linguagem moral num sistema de ideias redutoras de complexidade, havia apenas um princípio moral que poderia ser verificado empiricamente, pelo menos em tese.
Daí porque Rawls estava mais interessado em demonstrar como sua visão de moralidade individualista poderia conviver com o desafio de oferecer um procedimento claro, rigoroso e científico.
Ele buscou, ao longo de seus estudos, apresentar um sistema que seria completo e coerente, isto é um sistema que pudesse responder (falso ou verdadeira) a todas as afirmações que foram formuladas dentro do sistema.
Buscando dar contornos matemáticos, utilizou a otimalidade de Pareto, ou regra maxim, e estabeleceu que uma sociedade seria justa se, e somente se, maximizasse as expectativas de um indivíduo representativo de seu grupo em pior situação.
Rawls formulou seus princípios de forma clara e precisa:
- Cada pessoa deve ter direito igual ao sistema total mais extenso de liberdades básicas iguais compatível com um sistema semelhante de liberdade para todos.
- As desigualdades sociais e econômicas devem ser arranjadas de modo que ambas:
- Sejam para o benefício máximo dos menos favorecidos, consistente com o princípio de poupança justa, e
- Estejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos sob condições de igualdade equitativa de oportunidades.
Essa é, com efeito, a noção moderna de justiça distributiva, é dizer, este é o núcleo duro da concepção atual do conceito, que conseguiu harmonizar máximas de senso comum com arcabouço intelectual mais rigoroso.
A importância de Rawls para o tema é tamanho que Fleishacker, ao citar Nozeck, crítico da teoria de Rawls, diz que depois de Rawls a maior parte dos trabalhos escritos sobre o assunto tenta dialogar com sua teoria. Ou se utiliza em algum grau os princípios de Rawls ou se justifica por que não o está fazendo.
Esse registro significa que aos olhos de Fleischacker, Rawls seria o marco teórico sobre o tema, tanto que a última parte de seu último capítulo chama-se “Depois de Rawls”.
A este título, o autor aborda algumas questões que entendia ser uma espécie de prosseguimento dentro da própria teoria de justiça de Rawls. A primeira delas trata sobre o alcance da distribuição. Quais bens devem ser distribuídos e em qual quantidade? Uma indagação que se reveste de criticismo à teoria seria se o princípio da diferença realmente captaria as exigências da justiça distributivo.
Fleischacker classifica dois espectros de pensadores utilizando Rawls como posição central. À esquerda de Rawls estariam aqueles que acreditam que somente uma igualdade estrita refletiria o valor igual de cada cidadão dentro da democracia.
A igualdade estrita poderia ser compreendida como uma espécie de garantia mínima de determinados bens, ou seja, ninguém poderia ficar abaixo de um determinado nível, ainda que houvesse diferenças maiores do que aquelas admitidas pelo Princípio da Diferença.
À direita de Rawls, por sua vez, estariam aqueles que acreditam que o respeito igual aos seres humanos exige apenas um mínimo de garantia e que as desigualdades acima dessa garantia mínima teriam vantagens sociais e morais a favor delas.
Dworking, por exemplo, defende que o ideal seria um mundo no qual nenhum indivíduo invejaria o “pacote de recursos” de outra pessoa.
A crítica ou dúvida é se os bens primários de Rawls devem ser o parâmetro da distribuição da justiça distributiva ou se ao invés de bens primários, a justiça distributiva deveria se ocupar de distribuir felicidade.
Ao bem estabelecer que a justiça distributiva deve ocupar-se da distribuição de bens sócios primários ou mais básicos por parte das instituições, Rawls conseguiu reduzir o alcance do objeto da justiça distributiva. Críticos pós-rawlsinianos, entretanto, não estão convencidos de que esses bens primários sejam a substituição ideal para a felicidade ou bem-estar dos cidadãos.
Alguns pensam que as sociedades deveriam buscar igualar ao acesso a vantagens que todos têm. Outros que as sociedades deveriam preocupar-se em igualar uma capacitação básica dos indivíduos. Esses críticos sustentam que os bens primários não conseguiriam captar suficientemente as diferenças entre as pessoas, que podem variar enormemente com base nas circunstâncias concretas.
Outra questão importante relacionada ao alcance da distribuição a ser enfrentada pela justiça distributiva de Rawls diz respeito à responsabilidade pelas necessidades dos menos afortunados. Somos responsáveis pelas necessidades de quem?
Rawls defendeu que os Estados teriam deveres distributivos para com seus próprios cidadãos, mas há quem sustente que os mesmos direitos poderiam ser estendidos a residentes estrangeiros.
Até o momento, diz-se que o mais célebre crítico à Rawls seria Robet Nozick, autor da obra “Anarquia, Estado e Utopia”[16], lançada aproximadamente três anos após da “Uma Teoria de Justiça”.
Em síntese, sua obra propõe uma concepção de justiça diametralmente oposta à de Rawls, segundo a qual ninguém teria direito a quaisquer bens materiais além daqueles que adquiriu como propriedade privada. Ninguém teria qualquer direito a bens que se destinam a colocar essa pessoa em determinada condição material.
Nozick acredita que, necessariamente, as pessoas têm relação pela sorte ou vida dos outros: é dizer, se A é abastado e B não o é, não necessariamente A tem responsabilidade pela infortuna de B; logo, não seria razoável com base no argumento da justiça que A fosse obrigado a dar alguns de seus bens a B para satisfazer suas necessidades pessoais.
A teoria de justiça de Nozick tem 3 princípios:
- Princípio de justiça na aquisição – Apropriação de coisas que não se tem;
- Princípio de justiça na transferência – Legitimidade na transferência (voluntária, violenta, coagida);
- Princípio da retificação – Destinado a corrigir situações em que há transferência sem que sejam observados os princípios anteriores.
Desses princípios decorrem basicamente 3 proposições:
- A pessoa que adquire um bem de acordo com o princípio de justiça na aquisição, tem o direito a esse bem;
- A pessoa que adquire um bem, de acordo com o princípio de justiça na transferência, de outra pessoa que tem direito ao bem, tem direito a ele;
- Ninguém tem direito a um bem exceto por meio das aplicações repetidas dos itens 1 e 2.
Sob essa perspectiva, uma distribuição é justa quando todos têm direito aos bens que possuem de acordo com aquela distribuição.
Fleischacker destaca que outros pensadores que concordam com os princípios de Rawls, sobretudo aqueles que pregam que o bem primário mais importante seria a base social de auto respeito, defendem que além de bens primários, o Estado deveria se preocupar em distribuir bens simbólicos, como recursos culturais, capital de reconhecimento.
Essa compreensão é lastreada na ideia de que os indivíduos somente podem realizar sua liberdade quando as sociedades lhes proporcionam condições favoráveis ao desenvolvimento de suas capacidades.
Após percorrer a linha cronológica que leva até a compreensão moderna da justiça distributiva, no epílogo, Fleischacker reflete sobre qual o valor de um breve estudo sobre o tema. O autor acredita que há um ganho filosófico ao se examinar a história das ideias.
O autor destaca ainda que o principal obstáculo para que a compreensão moderna viesse à tona não estaria arraigada em crenças absolutistas relativas ao direito de propriedade, mas sim, na crença de que pobres e não-pobres seriam dois tipos de pessoas e que os pobres mereceriam ser pobres e manter-se pobres.
Fleischacker pensa que o que mudou não foram novos argumentos ou descobertas fatuais sobre as teorias morais, mas, essencialmente, a sensibilidade das pessoas, baseada na forma como as circunstâncias da pobreza foram apresentadas.
Ainda, aprender a história de uma ideia moral ajuda-nos a melhor entender porque defendemos ou rejeitamos algumas ideias. Conhecê-las em maior grau de completude permite-nos um maior distanciamento crítico da autoridade de alguns discursos sobre crenças morais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. Trad. Álvaro de Vita. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2006.
KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes. Trad. Cléia Aparecida Martins, Bruno Nadai, Diego Kosbiau e Monique Hulshof. Editora Vozes, Ltda., Petrópolis, 2013 e Editora Universitária São Francisco, São Paulo, 2013.
NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Trad. Fernando Santos, Ed. WMF Martins Fontes, São Paulo, 2011.
RAWLS, John. Uma teoria de justiça. Trad. Almiro Piseta e Lenita M. R. Esteves, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1997.
ROUSSEAU, Jean Jaques. O contrato social - princípios do direito político. Trad. Edson Bini. Ed.Edipro, 2ª ed, São Paulo, 2015.
SMITH, Adam. A riqueza das nações. Trad. Maria Teresa Lemos de Lima. Juruá Editora Ltda., 1ª ed, Curitiba, 2006.
Notas
[1] FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. Trad. Álvaro de Vita. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2006.
[2] FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. Trad. Álvaro de Vita. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2006, pág. 34.
[3] Idem, pág. 38.
[4] ROUSSEAU, Jean Jaques. O contrato social - princípios do direito político. Trad. Edson Bini. Ed.Edipro, 2ª ed, São Paulo, 2015.
[5] SMITH, Adam. A riqueza das nações. Trad. Maria Teresa Lemos de Lima. Juruá Editora Ltda., 1ª ed, Curitiba, 2006.
[6] FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. Trad. Álvaro de Vita. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2006, pág. 101.
[7] FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. Trad. Álvaro de Vita. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2006, pág. 105.
[8] KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes. Trad. Cléia Aparecida Martins, Bruno Nadai, Diego Kosbiau e Monique Hulshof. Editora Vozes, Ltda., Petrópolis, 2013 e Editora Universitária São Francisco, São Paulo, 2013.
[9] Disponível no endereço eletrônico http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf , em 05/06/2018.
[10] FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. Trad. Álvaro de Vita. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2006, pág. 138/139.
[11] Idem, 138.
[12] FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. Trad. Álvaro de Vita. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2006, pág. 142.
[13] RAWLS, John. Uma teoria de justiça. Trad. Almiro Piseta e Lenita M. R. Esteves, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1997.
[14] FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. Trad. Álvaro de Vita. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2006, pág. 161.
[15] Idem, 162.
[16] NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Trad. Fernando Santos, Ed. WMF Martins Fontes, São Paulo, 2011.