3 – Nossa Posição
O art. 150, § 7º da CF é daqueles dispositivos que contêm mais de uma norma (diferentes suportes fácticos).
Numa delas consta a autorização, ao legislador infra-constitucional, para tributar uma parcela da realidade, econômica ou jurídica, por meio de presunção. Lembrando-se apenas que o presente trabalho aborda apenas a co-relação entre substituição progressiva e ICMS.
A outra norma (in fine) do dispositivo, contém a obrigação do Estado devolver o dinheiro (pagamento) caso o elemento presumido não ocorra no mundo real.
3.1 - autorização para estabelecer presunção
O suporte fáctico da norma diz que se o legislador infra-constitucional tributar por meio de presunção, isso é possível, válido (preceito).
Percebe-se o caráter de norma de competência e de eficácia limitada, além de permitir o uso de presunções em direito tributário.
O estudo das presunções em direito tributário não constitui novidade, frisando a doutrina majoritária a invalidade do uso de presunções para compor a hipótese de incidência dos tributos.
Inobstante tal assertiva, pensamos ser esse uso possível, inclusive quando a presunção é absoluta, ou mesmo se tratar de uma ficção.
Apesar de reconhecermos que a frase acima soa como uma "eresia" à doutrina majoritária, passamos a desenvolver a idéia.
3.1.1 - o uso das presunções absolutas em direito tributário
Deve-se à Alfredo Augusto Becker [25]uma das mais belas e vanguardistas páginas do direito tributário brasileiro, e no tocante ao exame das presunções sua análise constitui lição imprescindível, ainda que freqüentemente esquecida.
Aqui, far-se-á apenas visitar as idéias do Professor Gaúcho.
Na interpretação do tributo sempre se teve, e ainda se tem, a idéia de que o princípio da legalidade em matéria tributária, por constituir uma grande conquista da humanidade em face do poder do príncipe, não teria lugar para o uso de presunções. Direito penal e direito tributário são searas avessas a esse expediente, pois o taxatividade da lei nesses campos tem ares de rigor absoluto, não havendo margem para concessões ou alargamentos dos conceitos, especialmente para ampliação das realidades passíveis de tributação: a incidência tem de se dar sobre os fatos tal quais ocorridos no mundo real, e ponto.
Pior ainda quando se está diante de uma Constituição cidadã, e de uma série de princípios que perfazem um "estatuto de defesa do contribuinte"; presumir-se o acontecimento dos futuros fatos, ou presumir-se qualquer coisa nessa seara, seria o mesmo que sepultar os direitos do cidadão em face do Estado arrecadador.
Assim, se a Constituição autoriza ao legislador (federal, estadual ou municipal) tributar uma certa parcela da realidade, e o legislador faz uso dessa competência, a lei criada, e a respectiva hipótese de incidência em particular, têm de gravar apenas e tão somente àqueles fatos constitucionalmente autorizados, sem margens de manobra, sem possibilidade de tributar mais ou menos, parecido, enfim, incidência deve corresponder a realidade, uma espécie de verdade real deve guiar o tributarista.
Essa mentalidade não é sem razão, a final de contas muito sangue já se derramou na história da humanidade na luta dos súditos contra a sanha arrecadadora do Estado, e caso o Estado esteja autorizado a tributar qualquer coisa, qualquer parcela da realidade, ou mesmo só certas parcelas, mais nos níveis que bem entender, ainda quando a base de cálculo esteja em claro descompasso com o elemento material constitucionalmente autorizado, nesse momento ruirá por terra milênios de evolução humana, e nenhuma garantia mais terá o cidadão contra o Estado. E soberano sem limites é sinônimo de exploração sem limites, ou ao menos de possibilidade de exploração fora de critérios razoáveis e suportáveis.
Todavia, Becker chama atenção para o fato de que:
"Hoje, as modernas análises críticas dos sistemas de tributação, como aquela feita por L. Trotabas e J. Cérèze, demonstram que a evolução racional caminha justamente no sentido inverso daquele imaginado pelos financistas clássicos. O que deve ser gradativamente substituído é o método da avaliação direita da renda e do capital, pelo da avaliação indireta, isto é, pelo sistema da tributação de fatos que sejam verdadeiros signos presuntivos de renda ou capital, porque racionalmente escolhidos à luz de critério científico.
O sistema da avaliação direta da base econômica de incidência (renda ou capital), como muito bem demonstrou L. Trotabas em surpreendente exame, é um "processo arcaico, bárbaro e freqüentemente menos seguro para a descoberta da verdade" e a utilização da declaração do contribuinte sujeita à comprovação é uma "fórmula primitiva, para não dizer infantil". [26]
E mais adiante, citando Berliri [27]:
"não se deve esquecer que é competência reservada ao legislador a escolha não somente do fim ao qual ele deve endereçar uma determinada regra jurídica, mas também dos meios para alcançar aquele fim, com a maior possível aproximação."(grifo nosso).
E segue:
"Em muitíssimos casos, o legislador deliberadamente escolheu como signo (índice ou presunção) de capacidade contributiva um determinado fato jurídico (ato, fato ou situação de fato) de mais fácil e segura identificação e captação que o fato econômico esquivo que normalmente corresponde aquele fato jurídico." [28]
Façamos um exercício de reflexão acerca das linha supra transcritas.
Para atingir seus fins o Estado precisa de recursos, e os obtêm por meio dos tributos, exigindo do cidadão uma parcela de sua renda ou capital.
Outrossim, o Estado não visa tributar a todos igualmente, com o que estaria ferindo a isonomia, mas sim tributar apenas àqueles cidadão que têm disponibilidade econômica, possibilidade de pagar tributos sem comprometer a própria sobrevivência; afora o objetivo de tributar proporcionalmente mais daqueles que têm maior disponibilidade econômica, é dizer, o Estado não pode tributar abaixo do mínimo indispensável à sobrevivência (pelo menos nos ordenamentos que consagram o princípio da dignidade da pessoa humana), e deve tributar gradualmente mais de quem tem mais (em atenção aos princípios da isonomia e capacidade contributiva).
Agora, caso o Estado tivesse que verificar, caso a caso, contribuinte a contribuinte, a existência de disponibilidade para pagar tributos, o sistema tributária seria inexeqüível, ao menos no mundo moderno, da sociedade de massa (já se foi o tempo em que o coletor verificava, in loco, a existência de bens do súdito, e tomava uma parte deles).
E não sendo possível aferir a disponibilidade econômica pessoa a pessoa, o Estado verifica que certos fatos, econômicos ou jurídicos, são indicativos de que quem os pratica têm disponibilidade econômica, e portanto pode pagar tributos; daí são criadas leis prevendo que do acontecimento desses fatos (suporte fáctico) decorre a obrigação de pagar tributo (preceito), denominando Becker tais fatos de fatos signos presuntivos de riqueza, ou seja, tais fatos nada mais são do que uma presunção feita pelo legislador de que quem os pratica tem disponibilidade econômica, ainda que isso não aconteça na realidade.
Com efeito, é possível um pedinte, após juntar as esmolas do dia, ir a uma loja e comprar uma roupa (fato presuntivo de riqueza), e no entanto ele não tem nenhuma capacidade contributiva (o imposto que ele pagará significa uma refeição a menos, algo comprometedor da sobrevivência, acima do mínimo vital); situação bem diferente da do rico empresário, para quem aquele imposto pago sobre a roupa adquirida (ainda que em loja de luxo, sendo muito maior o preço da roupa e conseqüentemente do imposto recolhido) em nada interfere na sua sobrevivência.
Mais, como é impossível uma tributação caso a caso, o legislador abstrai das exceções, e tributa o fato indicativo (presuntivo) de riqueza, objetivamente considerado, pois é ele – o fato presuntivo – quem irá funcionar como critério indicativo da disponibilidade econômica de quem o pratica, por ser considerado o tipo médio, aquilo que mais comumente acontece, independentemente da análise do caso concreto, da situação peculiar.
Ora, é nítido o caráter de ser tal fato uma presunção, e mais, uma presunção absoluta ou mesmo uma ficção (sobre a diferença entre esses dois conceitos, veja-se o item "2.2.1.1", supra), criando uma verdade jurídica independentemente da verdade real.
E a tributação baseada em fatos indicativos de riqueza não é menos verdadeira do que àquela baseada na busca direta da realidade: "processo arcaico, bárbaro e freqüentemente menos seguro para a descoberta da verdade".
Nesse sentido: "Cuanto más se complican las relaciones sociales, más necesario llega a ser multiplicar estas presunciones. Así es que hay muchas más en nuestro derecho que las que había en Roma." [29]
Noutro giro:
"Necessitaria tomar conhecimento de todas estas mutações. E não sendo isso possível, a lei tomou conhecimento daquilo que se verifica no maior número de casos e, sobre a hipótese que se verifique em todos os casos, fundamenta a norma jurídica. Deste modo a norma jurídica tem o caráter de generalidade, e se pode com linguagem matemática dizer que representa uma "quantidade média", um "valor de aproximação". Tudo isto aparece manifesto nas presunções da lei. As quais são outras tantas hipóteses que correspondem provavelmente, isto é, no maior número dos casos, à verdade." [30]
De outra banda, se se está a falar do uso de presunções na seara do direito tributário, é devido ao objeto do presente trabalho, pois no direito civil elas também são comuns (a maioridade penal é uma presunção de que ao atingir certa idade a pessoa adquire maturidade, discernimento para atuar na vida social, ainda quando se sabe que uns adquirem tal estado muito cedo, e outros muito tarde; mas sendo impossível ou impraticável analisar-se caso a caso, a lei cria um tipo médio: 18 anos, e torna isso uma verdade jurídica. O mesmo se dá com a morte presumida, etc.), ou em tantos outros ramos do direito.
Então, o direito molda as suas próprias realidades, nem sempre correspondentes à realidade natural, mas esse processo não é uma aberração, nem significa o fim das garantias dos cidadãos (especialmente dos contribuintes), pois como diz Becker [31], in verbis:
"A regra jurídica transforma o determinismo natural (espontâneo ou ao arbítrio do indivíduo) dos atos e fatos sociais, em um determinismo artificial porque impõe àqueles atos e fatos sociais uma distorção específica e um comportamento cuja estrutura e direção se apresentaram ao legislador como necessárias ao Bem Comum (autêntico ou falso).
A elaboração do Direito Positivo pressupõe e faz necessária a liberdade para deformar os fenômenos da realidade social e isto decorre da própria lógica do procedimento normativo (criação da regra jurídica que é regra de conduta social). Sem a referida liberdade de deformação, o Direito Positivo não poderia dominar a fluída matéria da vida social sobre a qual ele se sobrepõe para disciplinar, nem adquirir a necessária transparência e inteligibilidade.
Embora soe paradoxal, este poder de dominação do Direito Positivo é justamente o instrumento da liberdade do homem, pois lhe confere a certeza naquelas relações sociais porventura disciplinadas por regra jurídica, permitindo-lhe construir sua vida dentro da violenta competição de interesses dos outros indivíduos.
Tendo-se presente o que foi exposto, nota-se o acerto da curiosa observação de J. Haesaert: a relação jurídica é a priori anormal.
Conclui-se, portanto, que uma das funções do direito positivo é precisamente conferir certeza à incerteza das relações sociais; certeza que Aliomar Baleeiro, L. Baudin, N. Bobbio e Kelsen mostram não existir nem nas ciências sociais, nem nas ciências físicas. Estes autores observam que a mais precisa das "leis" científicas naturais nunca será mais do que uma extrema probabilidade; e advertem que esta natureza presuntiva não lhes rouba a utilização prática".
Desde logo deixe-se claro: pode haver presunções no direito tributário, o que não pode é haver critérios absolutos e incontroláveis na elaboração das presunções, que devem se ater aos métodos científicos em curso e serem passíveis de controle.
3.1.2 - presunção absoluta x arbítrio
Fixada a premissa: o direito se utiliza de presunções absolutas e/ou ficções, inclusive o direito tributário, passa-se a análise desse uso relacionado ao objeto do presente estudo.
Se é possível e normal a tributação baseada em fatos signos presuntivos de riqueza, é possível presumir-se o acontecimento desses fatos signos ?
Desde quando o legislador entenda, à vista de certa situação específica, de certo conflito de interesses em particular, que o estabelecimento da presunção é um meio mais adequado para se atingir certa finalidade do que a busca da "verdade real", e o faça com base em critérios justificáveis e controláveis (a análise desse ponto depende do estudo dos princípios constitucionais, coisa a ser feita em outro momento), isso é possível sim.
Realmente, à medida que a sociedade se desenvolve ela vai ficando cada vez mais complexa, e muitos dos expedientes efetivos no passado passam a ser obsoletos, pouco eficientes.
E o direito, para continuar domando a complexa realidade, precisa se adaptar, mudar conceitos, modificar as fórmulas legislativas.
No direito tributário isto também sói acontecer, a dificuldade em se fiscalizar (verificar a exata correspondência entre incidência e aplicação, lançamento) leva o legislador a procurar modelos cada vez mais concentradores da fiscalização, fórmulas que tentam prever a ocorrência dos próprios fatos signos presuntivos, fazendo verdade jurídica uma probabilidade fática.
Isso faz parte da margem de liberdade legislativa, do campo de atuação do legislador, que sopesa os interesses em conflito e dita a regra, visando, da melhor forma possível, realizável, atingir a finalidade almejada. Nessa linha:
"Em síntese: ante o problema prático, o legislador valorizou os interesses em conflitos e o critério de preferência que inspirou a solução legislativa (fato jurídico como hipótese de incidência da regra jurídica tributária) foi o de perder em justiça absoluta aquilo que ganhava em certeza e praticabilidade do Direito Tributário; verbi gratia: certeza e praticabilidade do lançamento tributário.
Ora, as valorações dos interesses em conflito num problema prático e o critério de preferência que inspirou a solução legislativa, participam da objetividade da regra jurídica e não podem ser reexaminados pelo seu intérprete sob o pretexto de melhor adequação à realidade econômica, no momento da incidência da regra jurídica. O intérprete da lei tributária deverá investigar sua incidência exclusivamente sobre o fato jurídico (e desde que revestido daquela espécie jurídica preestabelecida pelo legislador) e não sobre a realidade econômica que lhe corresponde ou corresponderia." [32]
In casu, a substituição progressiva visa combater à sonegação fiscal, realizando a justiça fiscal, pois torna certas e mais praticáveis relações jurídicas onde é difícil a fiscalização (milhões de operações, envolvendo milhões de contribuintes, todos os dias). Entretanto, o instituto deixa de buscar à verdade real, deixa de proceder à busca da realidade material.
E o legislador constituinte derivado (no art. 150, § 7º da CF) avaliou esse conflito e decidiu pela possibilidade da utilização de presunções como elementos das hipóteses de incidência de normas tributárias, e presunções desse jaez são presunções absolutas, como visto anteriormente.
Perde-se em verdade real aquilo que se ganha em praticabilidade, certeza jurídica e operabilidade sistemática, sendo meio eficaz para se atingir os fins previstos pelas normas de tributação: captar recursos daqueles que detêm disponibilidade econômica, manifestada em certos fatos objetivos, dela indicativos.
Portanto, tanto é possível tributar-se a disponibilidade econômica por meio de fatos dela indicativos, como é possível tributar-se esses próprios fatos presuntivos por meio de presunções de sua ocorrência (ambos presumem a disponibilidade econômica objetivamente manifestada, apenas em momentos diferentes).
Ou, nas palavras de Becker:
"Muitas vezes, depois de fixado o objetivo a atingir (por ex.: arrecadação de tributos sobre o consumo ou sobre os rendimentos pagos por sociedades), o legislador verifica que é extremamente complexa ou impraticável a matéria-prima com a qual normalmente deveria criar a regra jurídica. Por exemplo: o legislador constata que, normalmente, o sujeito passivo da relação jurídica tributária do imposto de consumo deveria ser o consumidor. Todavia, isto tornaria impraticável a cobrança do imposto de consumo. Outras vezes, não há uma total impraticabilidade, porém uma maior ou menor dificuldade, como no caso da cobrança do imposto de renda sobre os rendimentos percebidos pelas pessoas físicas sócias de sociedade.
Ora, quer pela impraticabilidade, quer pela maior ou menor dificuldade, o legislador abandona a realidade que normalmente deveria figurar no pólo negativo da relação jurídica tributária do imposto de consumo, a saber, o consumidor, e, abandonando esta realidade, cria conscientemente uma falsidade: põe, em lugar do consumidor, o produtor, criando a ficção do consumidor.
Outras vezes, o abandono da realidade dá-se na parte referente à composição da hipótese de incidência, por exemplo: o legislador em lugar de tomar como hipótese de incidência do imposto de consumo o consumo real da mercadoria, estabelece que o fato dela sair da fábrica ou ser exposta à venda já realiza a hipótese de incidência; em síntese: cria a ficção do consumo nesta ou naquela oportunidade.
Tanto na substituição do consumidor pelo produtor, para sujeito passivo da relação jurídica tributária do imposto de consumo, como na substituição do fato real do consumo, por um outro qualquer fato que, para os efeitos jurídicos, será considerado consumo, há sempre a troca de uma realidade, por uma falsidade. Todavia, esta falsidade permanece no plano pré-jurídico. Esta falsidade não entra como falsidade no mundo jurídico porque no mundo jurídico (para todo e qualquer efeito jurídico dentro do sistema legal do imposto de consumo), o produtor é verdadeiramente (realidade jurídica) o consumidor e o consumo da mercadoria ocorreu verdadeiramente (realidade jurídica) quando ela foi exposta à venda ou quando saiu da fábrica." [33]
Frise-se apenas que o citado autor denomina ficção o elemento presumido; enquanto preferimos usar a expressão presunção absoluta, pois utilizando-se do raciocínio lógico-dedutivo, percebe-se que normalmente, ou com grande probabilidade, dentro do ciclo produtivo de cada mercadoria (ciclo produtor – distribuidor - varejista – consumidor final), havendo a saída do produtor pode-se presumir a venda ao consumidor (esse é o destino "normal" da mercadoria, é o que ocorre na grande maioria dos casos).
Não bastasse isso, o art. 150, § 7º da CF fala expressamente em fato gerador presumido, sendo mais um aspecto a indicar tratar-se de presunção absolta, e não ficção, o elemento futuro ora em testilha.
Não obstante essa distinção terminológica, pode-se afirmar que ela não traz maiores divergências, haja vista o fato de que a diferença entre ficção e presunção absoluta dá-se em fase pré-jurídica, no momento da formação da presunção; mas uma vez dispostas em lei, ambas, presunção absoluta e ficção, dispensam o mesmo tratamento, consoante abordado anteriormente.
Feito esse esclarecimento, e voltando-se ao cerne da abordagem, é preciso, contudo, analisar mais de perto a afirmação de Becker de que "na substituição do fato real do consumo, por um outro qualquer fato que, para os efeitos jurídicos, será considerado consumo, há sempre a troca de uma realidade, por uma falsidade"(grifamos).
A assertiva pode sugerir interpretações exageradas, caso se entenda que qualquer fato, em quaisquer bases, pode servir ao elemento material ou ao núcleo da hipótese de incidência (que é a base de cálculo).
Sim, pois se a Carta Magna indica quais as zonas materiais dentro das quais pode o legislador ordinário atuar, criando leis tributárias que prevejam em seus suportes fácticos àqueles fatos signos presuntivos de riqueza indicados na própria Constituição, ou melhor, escolha dentro do campo de atuação traçado pelo legislador constituinte específicos fatos dentre estes; parece que a escolha de um fato, ainda que indicativo de riqueza, que não mantenha estreita relação, ou mesmo não possa ser tido como subconjunto dentro do conjunto dos fatos constitucionalmente autorizados, tal escolha seria inconstitucional.
Assim, não é qualquer fato que pode ser escolhido como elemento presumido, mas apenas fatos que estejam entre àqueles constitucionalmente previstos.
Enfim, o elemento presumido tem de está vinculado ao pressuposto de fato, para nos utilizarmos da linguagem de Marco Aurélio Greco.
Tal observação serve para demonstrar que, apesar de ser possível o uso de presunções absolutas e/ou ficções na seara tributária, sua escolha não pode ser medida arbitrária, tendo de se dá dentro de certos limites, passíveis de controle, eis aí a garantia do cidadão-contribuinte.
O que não se permite é que essa presunção seja desproporcional, não se baseie em critérios científicos, seja fruto do absolutismo, ou mesmo tenha a sua fixação dissociada de qualquer controle, nos termos do que se passa a analisar.
3.1.3 - a fixação das presunções: possibilidade de controle
Constitui medida de bom alvitre rememorar-se que o objeto do presente estudo é a descrição do modelo dogmático da substituição tributária progressiva, especialmente do art. 150, § 7º da CF.
Dito isso, importante salientar que o confronto entre o modelo dogmático e os princípios constitucionais se dará em outro momento, não aqui e agora.
Desse modo, do ponto de vista metodológico seria conveniente deixar-se o aprofundamento desse item para depois dessa análise dos valores constitucionais que o instituto busca alcançar.
Contudo, e apesar de reconhecer essa "precipitação" conclusiva, por ora, oferecer-se-á, ao menos, uma noção do tópico proposto, para que não se pense que a tese ora defendida propõe inexistir qualquer garantia ao cidadão quanto às mercadorias sujeitas ao instituto sub oculo.
De fato, a escolha do elemento presumido tem de se dá dentro do ciclo econômico da mercadoria (não se pode pensar na venda de arroz fazer presumir a venda futura de feijão).
Tem também de ser escolhida etapa anterior do ciclo econômico, e essa etapa deve possibilitar uma otimização da fiscalização, é dizer, deve diminuir significativamente o número de contribuintes a ser fiscalizados, sob pena de frustrar a finalidade a ser atingida.
Por outro lado, deve haver razões justificadoras da troca da tributação "normal" pela "com substituição", cabendo ao Estado demonstrar tais razões, especialmente a sonegação fiscal e a dificuldade em se tributar aquela específica mercadoria.
Mas ainda quando atendidos esses aspectos, importa dizer que o só controle do elemento presumido é insuficiente para garantir a constitucionalidade do instituto (impossível não se ferir esse exame sintático).
Devido ao fato de se colocar uma presunção absoluta na hipótese de incidência (em seu antecedente), o conseqüente da norma também é alterado, e deve acompanhar a mudança.
E para um elemento material presumido, só uma base de cálculo presumida pode confirmá-lo, conforme visto ao criticar-se a tese da presunção relativa.
E essa base de cálculo presumida também é passível de controle, senão quanto aos valores especificamente considerados, o que está dentro de um campo de discricionariedade legislativa, pelo menos quanto aos critérios dessa previsão.
Aqui talvez resida a maior dificuldade do instituto, aproximar-se, o mais possível, do valor da futura venda ao consumidor.
Já foi visto que o direito não trabalha apenas com a realidade material, bem como ele busca nela influir, moldá-la; e na seara tributária isso também se aplica, não buscando o tributo uma verdade real, absoluta e universal, quanto à realidade que serve de base à tributação, mas sim atingir o provável, fatos que figurem o mais próximo possível da realidade.
Na base de cálculo estimada presume-se o futuro valor de venda ao consumidor final, e isso por ocasião da venda efetuada pelo substituto tributário (a pessoa escolhida para figurar no pólo passivo, quando da ocorrência do fato desencadeador da presunção, ex: a venda pelo industrial), e essa presunção (do futuro valor) deve se aproximar, com base em critérios científicos, o mais possível, da realidade.
O controle se faz nos critérios de previsão e não no valor a ser considerado (o que equivaleria a impraticabilidade do instituto, já que cada contribuinte apresentaria seus valor e seria impossível dizer-se qual o valor médio, passível de presunção).
Deve-se analisar se a lei tributária prevê critérios objetivos realistas e adequados.
Nesse mesmo sentido, a lição de Humberto Ávila [34].
Dito isso, e considerando-se já se ter ofertado uma noção sobre o tema, repisa-se que sua análise pormenorizada fica para momento futuro, especialmente ao se tratar da compatibilidade do instituto frente aos princípios da isonomia, capacidade contributiva e legalidade [35].
3.1.4 - exemplos de antecipação por presunção no direito tributário
Já se disse que o direito tributário opera, ordinariamente, por meio de presunções de disponibilidade econômica das pessoas, através de elementos objetivos indicativos dessa manifestação de riqueza, os fatos signos presuntivos de riqueza (ainda que isso não ocorra na realidade do caso concreto).
Já se observou que essa presunção de disponibilidade econômica pode ser antecipada para momento anterior à realização do fato signo presuntivo (inclusive substituindo-se, do ponto de vista pré-jurídico, o contribuinte normal por um terceiro vinculado ao fato presumido); sendo essa substituição, contudo, passível de controle.
Tal modelo em nada ofende à ciência jurídica, muito menos contraria normas superiores (como se verá minudentemente em momento futuro).
Agora, para que não se pense ser essa descrição uma completa novidade, aplicável apenas a esses casos, veja-se a utilização de semelhante fenomenologia (antecipação tributária) no imposto de transmissão inter vivos (ITBI), onde a incidência é deflagrada por ocasião da lavratura do contrato de compra e venda de bem imóvel, antes portanto do registro de transferência; ou no imposto de exportação, onde o pagamento é feito antes da saída do produto; ou na utilização do lucro presumido no imposto de renda, onde se apura a renda das pessoas jurídicas mediante uma presunção e não apuração do lucro real.
3.2 - in fine do art. 150, § 7º da CF: uma "condicione juris"
Cabe agora analisar o in fine do art. 150, § 7º da CF: "assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga caso não se realize o fato gerador presumido".
Novamente, apesar de uma análise completa desse tópico demandar um estudo acerca dos princípios constitucionais aplicáveis à espécie, e de não ser esse o local apropriado para o aprofundamento da matéria, não se pode prosseguir sem ao menos oferecer uma noção do assunto.
A Constituição Federal autoriza a tributação de certas materialidades indicativas de riqueza; os tributos criados podem captar esses fatos signos presuntivos de riqueza diretamente ou presuntivamente (antecipa-se usando-se de presunção, desde que a presunção em si não seja abusiva, nos termos acima feridos), com o que criam verdades jurídicas; entretanto, essas verdades jurídicas não podem ser totalmente dissociadas da realidade, sob pena de transformarem radicalmente os fatos signos presuntivos constitucionalmente autorizados.
Dito por outras palavras, a norma em si já constitui um tipo médio; a norma tributária tenta captar signos que objetivamente representam disponibilidade econômica, porque é isso que ocorre na maioria dos casos; e ainda quando se capte esses signos por meio de presunções, essas tentam captar, o mais próximo possível da realidade, esses signos e na dimensão em que acontecem. Ou seja, a norma tributária não precisa corresponder exatamente à disponibilidade econômica de cada pessoa (o que é impraticável), e a captação dos signos indicativos dessa disponibilidade também não precisa corresponder exatamente ao acontecimento real desses signos (o que pode ser impraticável ou muito difícil, conforme o tributo).
Entretanto, nem se pode tributar fatos signos que não sejam indicativos de riqueza [36], o que seria inconstitucional por ofensa à capacidade contributiva, nem se pode estabelecer presunções em total descompasso com os fatos signos presuntivos constitucionalmente autorizados, sob pena de ofensa à legalidade.
Então, caso fosse criada uma presunção absoluta que desconsiderasse absolutamente à realidade, ainda que isso fosse possível do ponto de vista da descrição dogmática, hodiernamente seria difícil compatibilizar essa norma com a legalidade, posto que isso importaria na tributação de fato não autorizado (ou previsto no campo de competência de outro ente público).
Assim, e transportando-se o debate para o caso em foco, se a autorização constitucional é para tributar operações relativas à circulação de mercadorias (fatos presuntivos de disponibilidade econômica do consumidor), caso se tributasse por meio de uma presunção absoluta e esse fato presumido viesse a não ocorrer no futuro, poder-se-ia alegar que se estaria tributando um outro fato (a renda, já que não haveria compra e venda mercantil), e captando a capacidade contributiva de outra pessoa (o comerciante que estivesse com a mercadoria por ocasião do sinistro ou qualquer coisa do tipo, e não do consumidor).
Quer dizer, é possível o uso de presunções absolutas, desde que estas estejam diretamente vinculadas aos fatos signos presuntivos; não se pode tributar apenas e tão somente a realidade, mas tão pouco é admissível tributar-se totalmente dissociado da realidade.
Assim, o in fine do dispositivo em tela visa evitar que a presunção absoluta a ser adotada pelo legislador ordinário venha a mensurar fatos desgarrados daqueles fatos signos presuntivos de riqueza constitucionalmente autorizados. Se o fato presuntivo é a renda, pode-se estabelecer presunções vinculadas à renda, mas não à receita bruta; se o fato presuntivo é compra e venda mercantil, pode-se estabelecer presunções vinculada a compra e venda mercantil, e não à renda.
Em suma, a norma em mira reforça a constitucionalidade do uso das presunções absolutas na seara tributária, à medida que as mantém, necessariamente, vinculadas aos respectivos fatos signos presuntivos, evitando-se assim qualquer margem para que a presunção venha alcançar a capacidade contributiva de outras pessoas ou ofender a legalidade.
Agora, do ponto de vista do direito tributário, a presunção absoluta cria uma verdade jurídica, a realização ou não, no campo da realidade material, do fato que foi presumido, em nada altera à existência do fato jurídico tributário presumido.
Mas essa presunção chocar-se-ia com a legalidade caso fosse possível desconsiderar-se, de forma absoluta, a realidade material.
Para reforçar a constitucionalidade do instituto e evitar a alegação de poder ser a presunção absoluta abusiva, o legislador constituinte derivado criou uma norma que evita que a presunção possa vir a ser totalmente dissociada da realidade, mas sem alterar a fenomenologia jurídica, sem tocar na existência do fato jurídico; e essa norma é a parte final do art. 150, § 7º da CF.
Segundo esse preceito, caso aquele fato que fora presumido vier a não ocorrer no mundo real futuramente, o Estado deve devolver o dinheiro cobrado a título de antecipação.
Observe-se que a presunção é vinculada ao fato signo presuntivo, ainda que não corresponda exatamente a ele. Evita-se a tributação de outro signo, sem vedar que a tributação possa se utilizar de presunções na hipótese de incidência. A presunção absoluta procura prever o fato futuro, da forma mais próxima possível da realidade; e a norma em exame evita que a presunção venha a taxar fatos estranhos aquilo que se presume, é uma cláusula de salvaguarda da constitucionalidade (mantém a utilidade do instituto e a compatibilidade com outras normas do sistema).
Mas como essa cláusula opera ?
Em sua descrição pode-se encontrar os elementos futuridade e incerteza, postos pela lei, e condicionando a eficácia jurídica do fato jurídico tributário (e não a existência), relativamente a alguns dos seus efeitos. Não seria absurdo falar-se em condição legal resolutiva.
Com efeito, vê-se os elementos futuridade e incerteza (o elemento presumido que não se realizar no mundo real), subordinando a eficácia jurídica do fato jurídico tributário respectivo (caso não ocorra o elemento presumido, o Estado deve devolver o dinheiro antecipado, o que equivale a uma resolução quanto ao efeito principal do fato jurídico tributário, qual seja, o direito de crédito correspondente à prestação pecuniária).
Importante frisar, todavia, que esse evento futuro e incerto não deriva da vontade das partes, sendo impróprio chamá-lo de condição, pelo menos em seu sentido comum, trazido do direito civil. Corresponde ele, por ter sido posto pela lei, a um elemento do suporte fáctico da norma que o prevê. Pontes de Miranda não passou despercebido por esse ponto:
"As verdadeiras condições só dizem respeito à eficácia. Condições e condiciones iuris são referentes a acontecimentos futuros. Mas, enquanto as condições, em sentido próprio, são postas pelo manifestante ou pelos manifestantes da vontade, as condiciones iuris são-no pela lei." [37]
Caso se realize esse evento futuro e incerto previsto na norma (a não realização do elemento presumido, da compra e venda mercantil presumida), então incide a norma, tendo por conseqüência impor ao Estado a devolução do dinheiro arrecadado a título de antecipação tributária.
O implemento da condiciones iuris resolve a eficácia principal do fato jurídico tributário. Diz-se eficácia principal, correspondente ao direito de crédito, porque não afeta a existência do fato jurídico, ou mesmo a outros efeitos seus, como àqueles relativos a obrigações acessórias.
Ocorrendo o elemento futuro e incerto posto pela lei (que no caso corresponde a um elemento negativo: a não realização do fato presumido), ocorre a incidência, que tem por eficácia deseficacizar o fato jurídico tributário presumido. Deseficacizar é retirar (mais correto dizer encobrir) efeitos, sem afetar a existência.