O presente artigo tem como escopo precípuo a análise do instituto da condução coercitiva, abordando o aspecto legal, doutrinário e principalmente jurisprudencial, neste último caso, à luz da recente decisão do Supremo Tribunal Federal, de 14 de junho deste ano. Ao final, o subscritor dará sua opinião acerca do tema.
A condução coercitiva como o próprio nome já sugere é quando alguém (réu, vítima, testemunha, perito, ou outra pessoa) é levado de forma compulsória à autoridade competente (delegado ou juiz) para prestar depoimento.
Nucci1, “considera como uma modalidade de prisão processual cautelar. Leciona o autor que há seis espécies de prisão processual (f. 538): a) prisão temporária; b) prisão em flagrante; c) prisão preventiva; d) prisão em decorrência de pronúncia; e) prisão em decorrência de sentença condenatória recorrível; f) condução coercitiva de réu, vítima, testemunha, perito ou outra pessoa que se recuse, injustificadamente, a comparecer em juízo ou na polícia “ (grifo do subscritor) . Defende o autor citado que, por se tratar de modalidade de prisão somente o juiz pode decretá-la, o que também se concorda, ou seja, não cabe ao delegado determinar condução coercitiva, mas somente ao magistrado.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar as Ações por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) 395 e 444, ajuizadas respectivamente pelo PT e OAB, decidiu por maioria de votos (6x5) em 14 de junho do ano em curso que, a condução coercitiva de réu ou investigado prevista no art. 260 do Código de Processo Penal não foi recepcionada pela Constituição Federal.
Preconiza o citado artigo do CPP “in verbis”:
Art. 260 – Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença.
Pois bem, o STF debateu se esse art. 260 do CPP foi ou não recepcionado pela Constituição Federal. Por maioria bem apertada (6 votos) se entendeu que esse artigo não foi recepcionado pela Carta Magna de 1988, em razão do princípio da não autoincriminação. Lamenta-se contudo que, somente quase 30 anos após a promulgação da Carta Magna de 1988 é que o tema tenha vindo à tona e culminado com um julgamento pela Suprema Corte. Registre-se contudo que, em razão do princípio da inércia da Jurisdição, o STF teria que ser provocado para dirimir essa controvérsia, e em que pese o fato desse instituto ter sido aplicado ao longo desses quase 30 anos, foi necessária a prisão de um ex-Presidente da República para que o STF fosse provocado pelos autores das ações (PT e OAB).
Destaque-se que, do ponto de vista jurídico, a questão da condução coercitiva de réu ou investigado realmente era polêmica. Assim, como ocorreu quando o STF teve que enfrentar o tema relacionado à execução provisória da sentença penal condenatória à luz do princípio da presunção de inocência, a Corte ficou dividida e o placar foi bem apertado. Não obstante se possa imaginar que o fato desse instituto ter sido aplicado às autoridades do mais alto escalão possa ter trazido algum aspecto político à decisão do STF, não se pode olvidar, que no campo estritamente jurídico o tema comportaria uma discussão aprofundada, e nesse aspecto, alguns argumentos dos votos dos Ministros merecem ser realçados, no afã de proporcionar à classe acadêmica e jurídica a complexidade da análise no caso concreto da compatibilidade da norma infraconstitucional prevista no art. 260 do CPP, com a Constituição Federal.
Desde logo, registre-se que, o voto coincidente com o pensamento do presente subscritor, foi o do Ministro Alexandre de Moraes, cujos fundamentos soam como irretocáveis, senão observe-se alguns trechos do seu brilhante voto:
“Trata-se de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, em que se pretende ver declarada a incompatibilidade do art. 260 do Código de Processo Penal com a Constituição da República, por contrariedade aos princípios da imparcialidade (art. 5º, § 2º, da CF), do devido processo penal (art. 5º,inciso LIV), da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, inciso LV), bem como ao sistema penal acusatório e ao direito ao silêncio e ao direito de não produzir prova contra si mesmo (art. 5º, caput e inciso LXIII).
(...)
A previsão de interrogatório do acusado em procedimentos sancionatórios, com a consagração do 'direito ao silêncio' e do privilégio contra a autoincriminação (privilege against self-incrimination) , tornou-se tema obrigatório a ser respeitado em relação ao direito constitucional à ampla defesa.”
Mais adiante contudo, pondera:
“No entanto, em momento algum a imprescindibilidade do absoluto respeito ao direito ao silêncio e ao privilégio da não autoincriminação constitui obstáculo intransponível à obrigatoriedade de participação compulsória dos investigados nos legítimos atos de persecução penal estatal. A Constituição Federal consagra o direito ao silêncio e o privilégio contra a autoincriminação, mas não o “direito de recusa” ao investigado ou réu, ou seja, não lhes é permitido recusar a participar de atos procedimentais ou processuais estabelecidos legalmente dentro do Devido Processo Legal”.
Arremata, o jurista e Ministro Alexandre de Moraes:
“Concluo, na linha desses fundamentos, pela constitucionalidade e legitimidade do instituto da condução coercitiva para interrogatório, na qual será permitida a participação do defensor do investigado, em ambas as fases de persecução penal, nos termos do artigo 260 do CPP, ou seja, desde que o investigado/réu não tenha atendido injustificadamente prévia intimação. VOTO no sentido da PROCEDÊNCIA PARCIAL das ADPFs 395 e 444, com a DECLARAÇÃO PARCIAL DE INCONSTITUCIONALIDADE SEM REDUÇÃO DE TEXTO do artigo 260 do CPP, para excluir a possibilidade de decretação direta da condução coercitiva, sem prévia intimação, com base no poder geral de cautela do juiz”.
De fato, a dicção do art. 260 do CPP e do art 5º, LXIII, da CF, parece convergir com o pensamento do ínclito magistrado. Se por um lado é verdade que o investigado/réu tem direito ao silêncio, por outro, é inegável que a Constituição não confere o direito a não ser compelido a ser conduzido até à autoridade, para exercer o seu direito de ficar calado. Aliás, a norma constitucional se refere ao direito ao silêncio do preso.
Destarte, em primeiro lugar, o art. 260 do CPP só autoriza a condução coercitiva do acusado, quando não atendida a intimação, apesar de alguns juízes terem adotado essa medida sem essa observância. Portanto, teria que o investigado ou acusado ser intimado para comparecer a autoridade competente, e não atendendo espontaneamente ao chamado é que poderia haver a condução coercitiva. E lá chegando ele poderia exercer o seu direito ao silêncio, se assim o desejasse. Não se vê nisso nenhuma violação a qualquer direito fundamental do investigado ou réu. Poder-se-ia apenas argumentar que, seria inócuo conduzir alguém que vai invocar o silêncio e que nenhuma prova haveria de produzir. O fato porém, é que a condução coercitiva não implica em compelir alguém a falar, mas a se deslocar perante à autoridade quando não o fizer espontaneamente para depor ou mesmo silenciar.
Essa tese, entrementes, não foi a que prevaleceu (votaram nesse sentido Moraes, Fachin, Fux, Barroso e Cármem Lúcia) e sim, a do relator Min. Gilmar Mendes que defendeu que o art. 260 do CPP não teria sido recepcionado pela Constituição Federal, por violar o direito constitucional fundamental da não autoincriminação, incluindo o direito ao silêncio. Os demais Ministros que seguiram o relator foram os Ministros Rosa Weber, Tofolli, Lewandowski, Celso de Mello e Marco Aurélio.
Registre-se que as conduções coercitivas anteriores a essa decisão do STF não ocasionarão consequências as autoridades que as determinaram, nem afetarão a validade das provas colhidas. Vale salientar contudo que, a partir da decisão do Plenário, os agentes ou as autoridades que desobedecerem a decisão poderão ser responsabilizados nos âmbitos disciplinar, civil e penal. As provas obtidas por meio do interrogatório ilegal também podem ser consideradas ilícitas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.
Por fim, não se pode olvidar que a condução coercitiva não foi totalmente sepultada, já que continuará a existir, no caso do ofendido e testemunhas, consoante previsão legal nos arts. 201, §1º, e 218, do Código de Processo Penal, mas no caso de investigado e réu, o STF considerou não recepcionado o art. 260 do CPP, fulminando o instituto, o que certamente, passará a ser observado doravante.
Nota
1. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo de execução penal, ed. rev., atual. E ampl. - Rio de Janeiro: Forense, 2017.