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O fenômeno da antinomia jurídica

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Agenda 14/05/2005 às 00:00

1.6. Critérios solucionadores das antinomias jurídicas

Os critérios solucionadores das antinomias jurídicas são pressupostos implícitos colocados na legislação pelo legislador para a manutenção da coerência tendencial do sistema, da necessidade social de uniformidade das decisões e também como uma via de saída para o aplicador e interprete das normas. Os critérios ou também chamados de regras fundamentais para solução de antinomia são de três tipos: o cronológico, o hierárquico e o da especialidade.

A necessidade social de uniformidade das decisões é tratada por João Baptista Machado (1998):

"Se fôssemos a atender aqui aos critérios de justiça material do sistema, não poderíamos escapar à consideração de que as normas incompatíveis como que mutuamente se anulam, deixando uma lacuna em aberto: uma ‘lacuna de colisão’. Ora, para o preenchimento desta lacuna, teria necessariamente de recorrer-se a valorações altamente subjetivas (a subsistência da antinomia normativa vem afinal a traduzir uma antinomia de valores ou de princípios no sistema positivo), e é precisamente isso que se pretende evitar através dos referidos critérios tradicionais de resolução das antinomias. Só pelo recurso a critérios deste tipo se poderá, como diz Bobbio, ‘garantir uma objectividade que baste para satisfazer a necessidade social de uniformidade das decisões." [40] (grifos nossos).

Esta objetividade é mantenedora da segurança jurídica, assim aqueles que buscam a justiça estão, teoricamente, afastados de uma subjetividade extrema capaz de criar soluções para uma mesma antinomia a cada caso concreto.

1.6.1. Cronológico

O cronológico tem a sua idéia expressa no brocardo jurídico: lex posterior derogat legi priori. Assim sendo a lei posterior derrogará a lei anterior dando ao sistema jurídico a sua característica dinâmica. O preceito do presente critério é, justamente, a possibilidade da transmudação das normas componentes do sistema, passando de velhas e não eficazes, para novas e realmente reguladoras, no sentido da visão social atual ou pelo menos mais contemporânea, quando o processo legislativo não obstaculiza por tempo demais. A respeito deste aspecto do critério vale mencionar as palavras de Norberto Bobbio (1999):

"Quantas são as normas jurídicas que compõem o ordenamento jurídico italiano ? [ou brasileiro?] Ninguém sabe. Os juristas queixam-se que são muitas; mas assim mesmo criam-se sempre novas, e não se pode deixar de cria-las para satisfazer todas as necessidades da sempre mais variada e intrincada vida social.

(...)

Existe uma regra geral no Direito em que a vontade da mesma pessoa vale o último no tempo. Imagine-se a Lei como expressão da vontade do legislador e não haverá dificuldade em justificar a regra. A regra contrária obstaria o progresso jurídico, a adaptação gradual do Direito às exigências sociais. Pensemos, por absurdo, nas conseqüências que derivariam da regra que prescrevesse ater-se á norma precedente. Além disso, presume-se que o legislador não queria fazer coisa inútil e sem finalidade: se devesse prevalecer a norma precedente, a lei sucessiva seria um ato inútil e sem finalidade." [41]

O critério cronológico dá ao sistema a sua dinamicidade, mas em nome desta não se pode legislar afoitamente. Em tempos de Bobbio o problema do chamado "turbilhão de leis" não tinha a desenvoltura dos tempos de Luiz Flávio Gomes (2004):

"Acabou, há muito tempo, a sábia lentidão do legislador (que demorava para fazer uma lei, para que ela fosse bem feita). La sage lenteur foi substituída por um turbilhão de leis mal elaboradas, retóricas, demagógicas, desconexas e puramente simbólicas (só são aprovadas para enganar a população). O caos normativo a que chegamos não tem nada de similar na nossa História.

Pior é que, nesta era da descodificação, as leis vão sendo ‘fabricadas’ diuturnamente (dessa linha de produção estão saindo 41 normas a cada dia) e nem sequer codificadas são. São leis esparsas (especiais), que estão se amontoando sem nenhuma organização. Há tempos (nós, professores críticos) estamos denunciando esse descalabro no nosso país e cada vez mais nos estão dando razão". [42]

O caráter da dinamicidade do sistema é essencial, mas não podemos, sem preparo e estudo, seguindo interesses de pequenos grupos, juntarmos a vontade de sermos vanguardistas com a vontade e facilidade de legislarmos, sob o risco de tornamos dúbios e não coerentes. A professora Maria Helena Diniz (2001) apresenta uma outra importante ressalva, a da irretroatividade relativa:

"Não se pode aceitar a retroatividade e a irretroatividade como princípios absolutos. O ideal seria que a lei nova retroagisse em alguns casos e em outros não. Foi o que fez o direito pátrio no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, e no art. 6º, §§ 1º, 2º e 3º, da Lei de Introdução ao Código Civil ( § 3º com a redação da Lei n. 3.238/57, ao prescrever que a nova norma em vigor tem efeito imediato e geral, respeitando sempre o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Logo, sob a égide da lei nova, cairiam os efeitos presentes e futuros de situações preteridas, com exceção do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, pois a nova norma, salvo situações anormais de prepotência e ditadura, não pode e não deve retroagir atingindo fatos e feitos já consumados sob o império da antiga lei". [43]

1.6.2. Critério hierárquico

O segundo dos critérios é o hierárquico, o seu comando é lex superiori derogat legi inferiori. O uso deste critério para solução de antinomia remeterá o aplicador ou intérprete ao uso da norma hierarquicamente superior, quando se tratar de normas de diferentes níveis. Maria Helena (2001) assim exemplifica: "a Constituição prevalece sobre uma lei. Daí falar-se em inconstitucionalidade da lei ou ilegitimidade de atos normativos diversos da lei, por a contrariarem". [44] A norma é inferior ou superior devido ao seu poder normativo. E isto é bem retrato por Bobbio (1999):

"Consideremos qualquer ato com o qual Fulano executa a obrigação contraída com Sicrano e chamemos de ato executivo. Esse ato executivo é o cumprimento de uma regra de conduta derivada do contrato. Por sua vez o contrato é executado em cumprimento às normas legislativas que disciplinam os contratos. Quantos às normas legislativas, foram formuladas segundo as regras estabelecidas pelas leis constitucionais para a formulação das leis. Paremos aqui.

O ato executivo, de que falamos, está ligado, ainda que mediatamente, às normas constitucionais, que são produtoras, em diversos níveis, das normas inferiores. Esse ato executivo pertence a um sistema normativo dado, na medida em que, de norma em norma, ele pode ter sua referência última nas normas constitucionais. O cabo recebe ordem do sargento, o sargento do tenente, o tenente do capitão até o general, e mais ainda: num exército fala-se de unidade de comando porque a ordem do cabo poder ter origem no general. O exército é um exemplo de estrutura hierárquica. Assim é o ordenamento jurídico". [45] ( grifos nossos).

O poder normativo da Constituição é mais abrangente, e por isso é superior a uma lei ordinária, assim como o poder normativo de uma lei é superior ao poder normativo de um ato normativo. O doutrinador Reis Friede (2002) apresenta os níveis hierárquicos da norma jurídica, descrevendo, respectivamente, o nível hierárquico, ou seja, sua posição na unidade do sistema, o tipo normativo, ou seja, a espécie da norma e finalmente, o poder responsável pela elaboração da norma:

Nível hierárquico

Tipo Normativo

Poder responsável por sua elaboração

Supra Constitucional.

1.Norma fundamental.

Expressão do próprio Poder Constituinte originário ou de 1º grau.

Nível Constitucional.

2.Disposição fixa.

Disposição insuperável do Direito Natural.

 

3.Cláusula pétrea (norma materialmente constitucional fixada por imperativo do Direito Positivo).

Poder Constituinte originário.

 

4.Norma materialmente constitucional.

Poder Constituinte originário.

 

4a.Norma materialmente constitucional derivada de processo revisional.

Poder Constituinte Derivado (reformador).

 

4b.Norma materialmente constitucional derivada do processo de emenda constitucional.

Poder Constituinte Derivado (reformador).

 

5.Norma formalmente constitucional.

Poder Constituinte Originário.

 

5a.Norma formalmente constitucional derivada de processo revisional.

Poder Constituinte Derivado (reformador).

 

5b.Norma formalmente constitucional oriunda de emenda constitucional.

Poder Derivado (reformador).

Nível Infraconstitucional.

6.Lei complementar*

Poder Legislativo.

 

7.Lei ordinária.

Poder Legislativo.

 

7a.Media provisória (antigo decreto-lei).

Poder Executivo – Legislativo.

 

7b.Lei delegada.

Poder Legislativo.

 

7c.Decreto legislativo.

Poder Legislativo.

 

7d.Resolução.

Poder Legislativo.

Nível Infra-legal.

8.Atos administrativos normativos.

Poder Legislativo, Executivo e Judiciário.

 

8a.Decreto.

Poder Executivo.

 

8b.Regimento.

Poder Legislativo, Executivo e Judiciário.

 

8c.Instrução normativa.

Poder Legislativo, Executivo e Judiciário.

 

8d.Regulamentação, portaria etc.

Poder Legislativo, Executivo e Judiciário.

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"(*) Para alguns autores inexiste hierarquia normativa entre a lei complementar e a lei ordinária existindo apenas diferentes competências (veja a respeito nosso trabalho: ‘A Relação entre Lei Complementar e Lei ordinária: Hierarquia e Competência’, in Questões de Direito Positivo, 1ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Thex, p.45).

Obs.: Os números referem-se aos níveis hierárquicos. Quando inexiste nível hierárquico ou o tipo normativo em destaque se encontra em idêntico nível hierárquico em relação a outro tipo normativo distinto, ao número de seu nível é acrescentada uma vogal ou consoante diferenciadora". [46]

1.6.3. Critério da especialidade

Lex specialis derogat legi generali descreve o critério da especialidade. A norma é considerada especial, em seu sentido de especificidade, quando possuir todos os elementos típicos da norma geral e ainda acrescentar outros, tanto de natureza objetiva ou subjetiva. Estes elementos acrescidos pela norma especial são denominados, pela doutrina, de especializantes.

Estes elementos especializantes trazidos pela norma especial aprofundam na situação fática evidenciada pela norma geral. Bobbio (1999) chama este aprofundamento de diferenciação gradual:

"A passagem da regra geral à regra especial corresponde a um processo natural de diferenciação das categorias, e a uma descoberta gradual, por parte do legislador, dessa diferenciação. Verificada ou descoberta a diferenciação, a persistência na regra geral importaria no tratamento igual de pessoas que pertencem a categoria diferentes, e, portanto, numa injustiça. Nesse processo de gradual especialização, operado através de lei especiais, encontramos uma das regras fundamentais da justiça, que é a do suum cuique tribuere (das cada uma o que é seu). Entende-se, portanto, por que a lei especial deva prevalecer sobre a geral: ela representa um momento ineliminável do desenvolvimento de um ordenamento. Bloquear a lei especial frente à geral significaria paralisar esse desenvolvimento". [47] (grifos nossos).

O doutor João Baptista Machado (1998) nos traz uma classificação destes critérios, conforme transcrito a seguir. O mesmo acredita que os critérios cronológico e hierárquico são de natureza formal, pois ignoram como método de solução a natureza material das normas antinômicas. Já o critério da especialidade levaria em consideração a natureza material das normas e por isso seria um critério interpretativo e não simplesmente formal.

"Atentemos na natureza dos critérios acima referidos como critérios de resolução das antinomias. O critério cronológico e o hierárquico caracterizam-se, como bem salienta Bobbio, pelo facto de ‘deixarem completamente de lado toda a consideração da matéria regulada’, por ‘ de modo algum se referirem à disposição contida nas regras’ antinômicas. Quer isto dizer, pois, que, do ponto de vista da questão jurídica material a resolver e, portanto, do ponto de vista do conteúdo da norma que a vai resolver, o critério de resolução da antinomia ou concurso pe critério puramente formal: algo de todo alheio à justiça material da solução e, portanto, algo de extrínseco e indeferente ao conteúdo-resposta das normas em concurso aparente.

(...)

É claro que o mesmo já se não pode dizer do terceiro critério, o da especialidade. Este já contende com o sentido e, portanto, com o conteúdo das normas que se diriam em concurso aparente, já tem algo a ver com a justiça material da solução, já impõe, como atrás sugerimos e como diz Bobbio, o recurso à interpretação jurídica. Mas, por isso mesmo, nós cremos que, contra o que parece ser a opinião corrente, este critério não é um simples critério formal de resolução de concursos, mas um critério interpretativo". [48]

A classificação do Doutor João Machado não é reconhecida pela doutrina majoritária. O critério da especialidade, até mesmo por ser um critério pré-formalizado, ainda contém amarras formais e estas restringem o intérprete ou o aplicador na sua busca por uma resposta. A interpretação pelo uso deste critério será simplesmente o enquadramento das normas salientando qual é a geral e qual é a especial e nada mais. Tendo esta visualização de maneira formal, o intérprete descobrirá, pelo uso do critério da especialidade, qual é a norma que prevalecerá.

1.6.4. O critério suplementar: a interpretação corretivo-eqüitativa

Os critérios apresentados até então (cronológico, hierárquico e da especialidade) trazem respectivamente soluções quando houver choque de conflito entre normas de tempos diferentes, de níveis hierárquicos diferentes e de poderes normativos diferentes. Um sistema dinâmico, mutável e complexo não apresentaria outras espécies de conflitos de normas? Indubitavelmente, como ressaltamos alhures, há antinomias, quanto à extensão, do tipo total-total, parcial-total e parcial- parcial. Esta última não nos interessa, pois já foi apresentado o critério usado como resposta, o da especialidade. Os outros tipos (total-total e parcial-total) são insolucionáveis levando-se em consideração os critérios restantes (cronológico e hierárquico), quando antinomias destes tipos se apresentarem entre normas contemporâneas ou do mesmo nível ou, ainda, ambas gerais.

A doutrina majoritária denominada o efeito provocado, no sistema jurídico, por estas antinomias reais de lacuna de colisão. A lacuna como sabemos é o elemento do subsistema fático do direito sem o devido reflexo no subsistema normativo. As normas conflitantes caracterizadas como antinomia real, não podem, teoricamente, serem aplicadas, nem uma e nem a outra. Assim sendo o fato que era duplamente reflexionado normativamente é colocado, pela colisão das normas reguladoras, numa situação de lacuna. As palavras do Dr. João Batista Machado (1998) fazem-se necessárias:

"Nos casos em que as duas normas não podem, sem contradição, ser simultaneamente aplicadas, temos um conflito de normas. Este conflito deverá ser resolvido segundo uma das regras clássicas: lex posterior derogat legi priori, lex specialis derogat legi generali, lex superior derogat legi inferiori, etc. Se o conflito não puder ser resolvido por nenhuma destas regras, ficaremos perante a figura da ‘lacuna de colisão’. Esta, segundo é doutrina corrente, verifica-se sempre que duas normas entre si contraditórias se apresentem como aplicáveis ao mesmo caso e não pode determinar-se, no plano da simples interpretação, e nem mesmo pelo recurso às regras sobre a prevalência da lex specialis, da lex posterior, da lex superior, etc., qual delas deva prevalecer. Nestes termos, em sede de interpretação, a aplicação de qualquer da normas em concurso com exclusão da outra seria arbitrária – pelo que, nesse plano, as duas se mostra absurda. E, assim, achamo-nos afinal perante uma lacuna: um espaço jurídico que se apresentava à primeira vista ‘duplamente ocupado’, fica a constituir um ‘espaço juridicamente desocupado’. Mas continua a existir um ‘espaço jurídico’ em aberto, isto é, uma lacuna, pois que a questão posta pela lei nas duas normas continua o ser uma questão jurídica. Portanto, o julgador tem de responder a essa questão, ou seja, tem de integrar a lacuna, sob pena de incorrer em denegação de justiça". [49]

As antinomias insolucionáveis, conforme já evidenciado, são antinomias reais. Assim sendo deveriam ser extirpadas pelo legislador do sistema para a manutenção da coerência. Muitas vezes isto não acontece com a rapidez exigida e o aplicador (juiz) e o intérprete (jurista) são surpreendidos pela casuística com tais antinomias. É justamente, nesta analise do caso concreto que o quarto critério deverá ser usado, não se pode ficar inerte e a espera de solução legislativa, sob pena da Justiça inadimplir com sua obrigação de julgar o pedido de tutela do jurisdicionado.

Bobbio (1999) elucubra sobre um quarto critério que levaria em consideração as formas das normas (imperativas, proibitivas e permissivas), porém é descartado pelo próprio pela falta de legitimidade do critério. O mesmo disserta que caso os três critérios não trouxerem a solução para a antinomia, deve-se confiar ao intérprete uma certa liberdade:

"Isso significa, em outras palavras, que, no caso de um conflito no qual não se possa aplicar nenhum dos três critérios, a solução do conflito é confiada à liberdade do intérprete; poderíamos quase falar de um autêntico poder discricionários do intérprete, ao qual cabe resolver o conflito segundo a oportunidade, valendo-se de todas as técnicas hermenêuticas usadas pelos juristas por uma longa e consolidada tradição e não se limitando aplicar uma só regra. Digamos então de uma maneira mais geral que, no caso de conflito entre duas normas, para o qual não valha nem o critério cronológico, nem o hierárquico, nem o da especialidade, o interpretem seja ele o juiz ou o jurista, tem à sua frente três possibilidade:

1.eliminar uma;

2.eliminar as duas;

3.conservar as duas". [50]

Vale lembrar que tais possibilidades também foram retratadas neste presente trabalho, quando transcrevemos sobre o critério quanto a extensão na classificação das antinomias. Naquele momento se seguiram os ensinamentos de João Batista Machado e se deu ênfase somente a última hipótese.

Esta incompletude dos meios de solução das antinomias jurídicas também é retratada por Maria Helena Diniz (2001). Tal incompletude seria resolvida pela supressão de uma das normas pelo legislador. Mas é o caso concreto apresentado, com colisão normativa, ao Poder Jurisdicional ou ao intérprete da lei? Este, conforme lição da mestra, seria corrigido por meio de uma interpretação corretivo-eqüitativa ou correção. Nada mais e nada menos do que o critério da liberdade da interpretação apresentado por Bobbio (1999). Vejamos:

"Essa incompletude dos meios de solução de antinomias jurídicas conduz à conclusão de que o conflito normativo não poderá ser solucionado por critérios lógicos, ou por procedimentos hermenêuticos, mas poderá ser suprimidos pela edição de uma norma derrogatória, que opte por uma das normas antinômicas, ou resolvido pelo emprego de uma interpretação corretivo-eqüitativa ou correção.

(...)

De modo que entre duas normas plenamente justificáveis deve-se opinar pela que permitir a aplicação do direito com sabedoria, justiça, prudência, eficiência e coerência com seus princípios.

(...)

O juiz deverá, portanto, ante o non liquet, havendo real antinomia normativa, optar pela norma mais justa ao solucionar o conflito, orientando-se por critérios seguros, podendo até servir-se de critérios meta-normativo, superior à norma, mas contido no ordenamento jurídico, afastando a aplicação de uma das normas em benefício do fim social e do bem comum.

È preciso deixar bem claro que essa interpretação corretivo-eqüitativa do órgão judicante lhe confere poder discricionário e não uma arbitrariedade. É uma permissão de apreciar, eqüitativamente, segundo a lógica do razoável, interesses e fatos não determinados a priori pelo legislador, estabelecendo uma norma individual para o caso concreto. Mas esse poder não quer dizer, em absoluto, decisão contra legem. A eqüidade não é, portanto, uma licença para o arbítrio puro, mas uma atividade jurisdicional condicionada às valorações positivas do ordenamento jurídico, ou seja, relacionando sempre os subsistemas normativos, fáticos e valorativos que compõem o sistema jurídico". [51](grifos nossos).

Primeiramente a analise das possibilidades apresentados pelo quarto critério, mister se faz ressalvar que o disposto neste critério não é livre interpretação, conforme Maria Helena Diniz (2001). O critério estatui a liberdade de interpretação com limites e estes são estabelecidos pelo próprio direito. A interpretação sem o devido respeito aos liames do direito será repudiada ao extremo, pois sendo assim o intérprete abandona o direito e passa a ter a arbitrariedade como caminho. Assim Maury R. de Macedo (1981) nos ensina:

"As partes querendo prevaleça o que lhes convém; os aplicadores, o direito que melhor atenderia ao seu desejo de fazer justiça, e em meio a tudo o texto da lei, alvo de todas as críticas, justas e injustas, permanentemente ameaçado pelo implacável inimigo maior do Direito – o arbítrio.

(...)

Aos que pretendem mais para o juiz, com permitir que crie direito, lembramos que não isso demonstração de reconhecimento de competência e probidade do aplicador. Porque é muito fácil criar direito para resolver caso concreto, do que resolve-lo com o direito existente, cuja inteligência, não raro, não está ao alcance de qualquer um. E ai é que o Juiz tem oportunidade de revelar a sua inteligência, todo o seu preparo cultural, a sua experiência de vida, e de jurista em particular, começando por dar o exemplo de respeito à lei, ao texto da lei expresso, para encontrar, dentro do seu âmbito, a solução que lhe pareça melhor ao ideal de Justiça, que tem a obrigação de perseguir.

E sem pôr em risco a segurança do sistema e dos jurisdicionados que querem, a todas as luzes, o prevalecimento, sempre, do direito escrito". [52]

A arbitrariedade, mesmo de maneira superficial, ficou mencionada, pois a utilização do critério da interpretação tem o seu limite, e a resposta deve ser sempre encontrada, prevista dentro do direito, ou seja, deve ser seu meio. O intérprete assim procedendo, estará resguardando o fim maior do direito, a justiça.

As possibilidades do intérprete em busca da solução do conflito normativo pela utilização do critério interpretativo, conforme supra mencionado, são: eliminar uma das normas; eliminar as duas normas ou conservar as duas normas.

A primeira das possibilidades, eliminar uma das normas, se trata da chamada interpretação ab-rogante imprópria. Recorremos aos ensinamentos de Bobbio (1999):

"Mas trata-se, na verdade, de ab-rogação em sentido impróprio, porque, se a interpretação é feita pelo jurista, ele não tem o poder normativo e portanto não tem o poder ab-rogativo (o jurista sugere solução aos juízes e eventualmente também ao legislador); se a interpretação é feita pelo juiz, este em geral (nos ordenamentos estatais modernos) tem o poder de não aplicar a norma que considerar incompatível no caso concreto, mas não o de expeli-la do sistema (de ab-rogá-la), mesmo porque o juiz posterior, tendo que julgar o mesmo caso, poderia dar ao conflito de normas uma solução oposta e aplicar bem aquela norma que o juiz precedente havia eliminado". [53]

A interpretação terá o efeito de revogar uma das normas em conflito, somente em consideração ao determinado caso analisado. Não é propriedade do juiz e nem do jurista o poder de extirpar uma norma do sistema jurídico, e sim do legislador. Por isso a caracterização como imprópria à interpretação ab-rogante realizada pelo jurista ou juiz.

A segunda possibilidade, a de eliminar as duas normas em questão, Bobbio (1999) relata que se dá quando a questão do conflito é de contrariedade e não de contradição. As normas seriam objurgadas pela o axioma maior do direito, sua real finalidade de existência, a justiça. Não tendo como aplicar caso concreto a justiça pela escolha de uma das normas, deve o interprete "ab-rogar" as duas normas.

A última possibilidade considerada por Bobbio (1999) é descartada pela doutrina pátria moderna. Pois para o mestre ítalo a conservação das normas e não a ab-rogação se daria por processo interpretativo criterioso e descobriria que as duas normas não estão em condição de antinomia real, mas sim de antinomia aparente. Neste critério se busca solução para os casos de normas inconciliáveis, mesmo para os critérios objetivos e lógicos.

A professora Maria Helena Diniz (2001) trata do assunto com a maestria que lhe é própria:

"O reconhecimento da lacuna dos critérios de resolução da antinomia não exclui, como já dissemos alhures, a possibilidade de uma solução efetiva por meio de uma interpretação corretivo-eqüitativa.

(...)

Como em caso de lacuna de conflito, de antinomia de segundo grau, ou mesmo de simples conflito entre duas normas, existem várias soluções incompatíveis, não há solução unívoca, por isso há discricionariedade do órgão aplicador que, hoje, pode aplicar uma delas, amanhã, outra. Assim, o magistrado, ao compreender as normas antinômicas, deverá refazer o caminho da fórmula normativa ao ato normativo, tendo presente fatos e valores, para aplicar, em sua plenitude, o significado nelas objetivado, optando pela que for mais favorável". [54] (grifos nossos).

Esta interpretação corretivo-eqüitativa pode ser estabelecida como critério suplementar interpretativo. Primeiramente todo critério jurídico de solução de antinomia jurídica é uma regra já pré-definida, dentro da lógica interna do sistema jurídico, para que através dele se julgue qual a lei a ser aplicada. Ora, o critério interpretativo é uma regra, pois evidencia valores a serem seguidos como vimos, sob pena de incorrer em arbitrariedade e também apresenta qual a situação fática em que deverá ser aplicado, mesmo sendo esta suplementar, mas apresenta.

Sobre o autor
Bruno José Ricci Boaventura

sócio do Escritório Boaventura Advogados Associados S/C

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOAVENTURA, Bruno José Ricci. O fenômeno da antinomia jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 678, 14 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6707. Acesso em: 7 nov. 2024.

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