O HOLOCAUSTO BRASILEIRO: HOSPITAL COLÔNIA DE BARBACENA E O GENOCÍDIO DE SESSENTA MIL PESSOAS
Este capítulo é baseado no livro homônimo “O Holocausto brasileiro”, Arbex, Daniela (2013). Ao analisar as origens da história do nascimento da psiquiatria no Brasil, observa-se que o intuito de internar estes pacientes era, inicialmente, escondê-los da vergonha de sua exposição nas ruas e impedir que fossem recolhidos à cadeia pública. O confinamento tinha o intuito de esconder os alienados e segrega-los de qualquer convívio social, pois eram um estorvo na família e nas suas comunidades. Esconder o problema iria trazer alívio às famílias e bem-estar na sociedade, como registravam os relatórios pesquisados. Para os doentes ainda não haviam encontrado um tratamento adequado, como se pode constatar.
As reivindicações das autoridades e diretores dos hospitais eram, portanto, angariar fundos para melhorar as condições de vida no estabelecimento e introduzir métodos de cura, e tratamento adequado; afinal os hospícios eram assim alcunhados de depósito de loucos porque nada ofereciam para o tratamento da doença, pelo contrário, submetiam os indivíduos já fragilizados, a situações desumanas de existência, como foi relatado nos relatórios e documentos da época Imperial. Apesar de todos os relatórios apontarem para denúncias da precariedade da vida dos internos e reivindicarem investimentos e melhorias, isso infelizmente não aconteceu no território nacional e nenhuma mudança significativa ou positiva houve nestas instituições.
Podemos observar na evolução desse quadro, pelo contrário, a ocorrência da maior violação de direitos humanos na história do Brasil, que se desenvolveu no Hospital Colônia de Barbacena, MG. Este trágico episódio, que se iniciou no sec. XX e se arrastou por décadas, foi documentado no livro reportagem da jornalista Daniela Arbex, de onde serão feitas as análises e reflexões a seguir. A saúde mental na época do Império, e o Estado começou de forma superficial a lidar com o problema da precariedade das instalações psiquiátricas. Apesar dos diversos pedidos para melhoria da situação, estes relatórios foram simplesmente ignorados, não havia vontade política, não havia, portanto, verbas para tal fim. Ironicamente parecia que enquanto os alienados estivem reclusos e não incomodassem ninguém, o problema estaria resolvido! Afinal estes cidadãos não iriam ter poder de voto, não seriam economicamente ativos, não poderiam constituir uma família ou contribuir de alguma forma para o bem-estar da sociedade, eram apenas um estorvo. Com sua morte, ninguém iria sentir sua falta.
Tal raciocínio não era consciente, não era proposital que eram vítimas de tantos maus tratos, mas isso era associado ao infeliz aparecimento da doença, para a qual a medicina ainda não tinha tratamento adequado. Neste contexto, o ser humano perde aos poucos a sensibilidade para o que é adequado. E a situação de precariedade foi só piorando, como retrata a autora: “Holocausto é uma palavra assim. Em geral, soa como exagero quando aplicada a algo além do assassinato em massa dos judeus pelos nazistas na Segunda Guerra. Neste livro, porém, seu uso é preciso. Terrivelmente preciso. Pelo menos 60 mil pessoas morreram entre os muros do Colônia. Tinham sido, a maioria, enfiadas nos vagões de um trem, internadas à força. Quando elas chegaram ao Colônia, suas cabeças foram raspadas, e as roupas, arrancadas. Perderam o nome, foram rebatizadas pelos funcionários, começaram e terminaram ali. Cerca de 70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões, eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, eram filhas de fazendeiros as quais perderam a virgindade antes do casamento. Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos trinta e três eram crianças” (Arbex, D. 2013).
Cabe-se observar que a política de saúde mental do Império, de segregar os doentes, escondê-los, retirar do convívio social, era um padrão que se perpetuou no Hospital Colônia Barbacena, isso já no final de sec. XIX. O mesmo padrão de esconder o doente que incomoda, ao invés de trata-lo, ou de tirar da sociedade aquele que se torna inadequado, veio se repetindo até início do sec. XIX. Agora não somente os doentes mentais seriam encarcerados, mas também epilépticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, esposas rejeitadas, filhas que engravidavam solteiras e qualquer que fosse um “estorvo” para o sistema poderia ser vítima da segregação e do banimento da sociedade. Toda essa classe de minorias era eventualmente enviada para o Hospital Colônia de Barbacena ou outros “hospícios”.
A autora relata os horrores que documentou no local e dedica sua obra a milhares de homens, mulheres, e crianças que perderam a vida num campo de concentração chamado Colônia: “Homens, mulheres e crianças, às vezes, comiam ratos, bebiam esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e violados. Nas noites geladas da serra da Mantiqueira, eram atirados ao relento, nus ou cobertos apenas por trapos. Instintivamente faziam um círculo compacto, alternando os que ficavam no lado de fora e no de dentro, na tentativa de sobreviver. Alguns não alcançavam as manhãs. Os pacientes do Colônia morriam de frio, de fome, de doença. Morriam também de choque. Em alguns dias, os eletrochoques eram tantos e tão fortes, que a sobrecarga derrubava a rede do município. Nos períodos de maior lotação, dezesseis pessoas morriam a cada dia. Morriam de tudo — e também de invisibilidade. Ao morrer, davam lucro.
Entre 1969 e 1980, 1.853 corpos de pacientes do manicômio foram vendidos para dezessete faculdades de medicina do país, sem que ninguém questionasse. Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu, os corpos foram decompostos em ácido, no pátio do Colônia, na frente dos pacientes, para que as ossadas pudessem ser comercializadas. Nada se perdia, exceto a vida. Pelo menos trinta bebês foram roubados de suas mães. As pacientes conseguiam proteger sua gravidez passando fezes sobre a barriga para não serem tocadas. Mas, logo depois do parto, os bebês eram tirados de seus braços e doados. Este foi o destino de Débora Aparecida Soares, nascida em 23 de agosto de 1984. Dez dias depois, foi adotada por uma funcionária do hospício. A cada aniversário, sua mãe, Sueli Aparecida Resende, epilética, perguntava a médicos e funcionários pela menina. E repetia: “Uma mãe nunca se esquece da filha”. Só muito mais tarde, depois de adulta, Débora descobriria sua origem. Ao empreender uma jornada em busca da mãe, alcançou a insanidade da engrenagem que destruiu suas vidas”.
Esta é uma das narrativas que Arbex (2013) documenta e transforma em memória, no seu livro-reportagem, cuja leitura se torna fundamental para maior compreensão de todo processo. Ao expor a anatomia do sistema, a repórter ilumina um genocídio cometido, sistematicamente, pelo Estado brasileiro, com a conivência de médicos, de funcionários e também da sociedade. É importante destacar que, infelizmente, no período em que ocorreram os fatos era ditadura militar, e não havia liberdade de expressão: quem denunciava o Estado ficava sujeito a retaliações. Isso dificultou que os acontecimentos se tornassem públicos de início. Cabe aqui pontuar, fazendo um paralelo com o holocausto nazista, que este estava inserido num contexto de guerra e violência, em que havia luta de todos pela sobrevivência, numa situação hostil e incomum. O que não justifica, mas explica, a origem das atrocidades na segunda guerra. No entanto no holocausto brasileiro, não havia situação de guerra. Era paz, eram acontecimentos rotineiros, e os fatos ocorreram dentro de uma instituição pública, com o apoio da Igreja Católica, e criada com o intuito de curar doentes mentais: um hospital, como palco de tortura, violações graves de direitos humanos e genocídio!
Tal paradoxo merece uma reflexão profunda de como os propósitos de humanização e cura na medicina podem se perder, tomando o rumo oposto de sofrimento e morte. Aquilo na época do Império parecia omissão dos poderes públicos para com os hospícios, foi tomando progressivamente uma dimensão generalizada em todo o território brasileiro, chegando às dimensões de genocídio um século depois, no caso em tela. A anatomia do sistema de saúde mental precária da época do Império tornou-se, como se observa, um padrão que ia se repetindo nas gerações seguintes: rejeição do doente mental, segregação e confinamento do mesmo, falta de recursos para seu tratamento, submissão destes aos maus tratos, e a morte dentro das instituições, ou graves sequelas psicológicas dos doentes e de seus familiares. Não houve registro de que o Brasil sofreu algum tipo de denúncia ou sanção nos Organismos Internacionais defensores dos Direitos Humanos, por conta do genocídio e tortura de aproximadamente sessenta mil pessoas.
Havia censura a tudo que podia ser crítica ao Estado, o qual enfrentava a resistência de grupos que lutavam pela democracia. Nesta conjuntura havia muita dificuldade para se fazer qualquer ato de protesto contra essa violação de direitos humanos, sem sofrer punições ou retaliações. O mundo iria ser palco de duas grandes guerras mundiais, em que a violência e a morte seriam corriqueiras, de tal forma que casos pontuais, como no Brasil eram esquecidos, ficavam ofuscados pelos horrores da guerra na Europa, ficavam fora dos “holofotes” e não tiveram a atenção que mereciam. Assim, esse genocídio pouco foi propagado ou conhecido fora do Brasil. Mas em território brasileiro, começaram a se levantar denúncias contra os horrores no hospital Colônia: “O psiquiatra Ronaldo Simões Coelho, no final da década de 70, então chefe do Serviço Psiquiátrico da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig) realizou o gesto mais ousado: denunciar, no III Congresso Mineiro de Psiquiatria, as atrocidades cometidas no Colônia. — Lá, existe um psiquiatra para 400 doentes. Os alimentos são jogados em cochos, e os doidos avançam para comer. O que acontece no Colônia é a desumanidade, a crueldade planejada. No hospício, tira-se o caráter humano de uma pessoa, e ela deixa de ser gente. É permitido andar nu e comer bosta, mas é proibido o protesto qualquer que seja a sua forma. Seria de desejar que o Hospital Colônia morresse de velhice. Nascido por lei, em 16 de agosto de 1900, morreria sem glórias. E, parafraseando Dante, poderia ser escrito sobre o seu túmulo: quem aqui entrou perdeu toda a esperança. Estas declarações tiveram o efeito de impactar o meio médico. Mas por causa delas o médico perdeu o emprego na Fhemig. A demissão de Simões foi o primeiro ato de perseguição aos que romperam a cultura do silêncio” (Arbex, D. 2013).
Assim, a semente estava lançada e as estruturas do modelo manicomial já não se sustentavam e começaram paulatinamente a ruir. Por sua vez, o médico italiano F. Basaglia fazia na época um trabalho voltado para uma política antimanicomial e, ao tomar ciência do caso em tela no Brasil, veio aqui fazer uma inspeção no hospital de Barbacena: “Em 1979, o psiquiatra italiano, que era pioneiro na luta contra os manicômios, esteve no Brasil para visitar a Colônia. Em seguida chamou uma coletiva de imprensa, na qual afirmou: “Estive hoje num campo de concentração nazista. “Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como essa” (Arbex D. 2013). Por ocasião da visita ao hospital Colônia do médico italiano Franco Basaglia, pontua a autora: “É preciso perceber que nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a nossa omissão, menos ainda uma bárbara como esta” (Arbex, D. 2013).
No decorrer do seu trabalho de pesquisa, Arbex escutou o depoimento de funcionários e médicos que haviam trabalhado na Colônia; um dos médicos, Ronaldo Simões, expressou para ela: “Meu tempo de validade está acabando. Não quero morrer sem ler seu livro” (Arbex, D, 2013) No final dos anos 70, o Psiquiatra Ronaldo Simões havia denunciado o Colônia e reivindicado sua extinção, mas em consequência perdeu o emprego. Cabe aqui observar que o Brasil vivia na época dos anos de chumbo da ditadura e era muito difícil fazer protestos ou denúncias contra o Estado. O processo de abertura e redemocratização só veio acontecer décadas depois, no fim da década de 80. No início dos anos 60, a rotina do hospício veio finalmente a público: depois de conhecer o Colônia, o fotógrafo Luiz Alfredo desabafou com o chefe: “Aquilo não é um acidente, mas um assassinato em massa”.
Em 1961, a rotina do hospício foi narrada na revista o Cruzeiro, de maior circulação nacional na época, pelo repórter José Franco e pelo fotógrafo Luis Alfredo. O título da matéria era “A Sucursal do Inferno”, que causou grande comoção na sociedade. Em 1979 o repórter Hiram Firmino e a fotógrafa Jane Faria publicaram a reportagem “Os Porões da loucura” no Estado de Minas. No mesmo ano foi filmado o documentário “Em nome da razão”, de Helvécio Ratton, que também se tornou marcante na luta antimanicomial. Daniela Arbex publicou uma série de reportagens na Tribuna de Minas, de Juiz de Fora. Seguiu investigando e compilou material para a confecção do livro “Holocausto Brasileiro”, o mais completo sobre o assunto. Para este trabalho ela viajava de Juiz de Fora a Barbacena todos os dias, noventa e cinco quilômetros. Voltava a tarde, exausta, tendo entrevistado mais de cem pessoas. Seu trabalho teve o mérito, segundo Eliane Brum, que fez o prefácio do livro, de “salvar do esquecimento um capítulo da história do Brasil. Agora é preciso lembrar. Porque a história não pode ser esquecida. Porque o holocausto ainda não acabou”, conclui.
Duas décadas mais tarde, a partir dos anos 80, quando a reforma psiquiátrica ganhou força, essa realidade começou a mudar. Restaram menos de 200 sobreviventes da Colônia, parte deles morreria internada. Outros seriam instalados em residências terapêuticas, com supervisão de funcionários, pois nunca ficaram autônomos e capazes de autodeterminação. Como farrapos humanos se destacavam os olhos mudos, sem brilho, sem identidade; restos de humanidade na história do holocausto brasileiro. Em Barbacena existe, para que a memória deste massacre não seja esquecida, o “Museu da Loucura”, o qual foi inaugurado em 1996 no torreão do antigo Hospital Colônia. O mesmo pretende ser um tributo às dezenas de milhares de vítimas da lendária instituição. Dos cinco museus de Barbacena, ele é o mais visitado por turistas. Neste sentido, Botti et al (2006) fizeram um trabalho de campo, em que visitaram o local, e realizaram uma compilação de reflexões sobre a importância da preservação da memória do Colônia: “A importância do Museu da Loucura é levar a pensar como tantos sofredores mentais foram marginalizados e excluídos e, a partir dessa reflexão, tentar ver o portador de uma outra maneira, porque o Museu da Loucura não deixa que a história da Psiquiatria em Minas e no Brasil fique arquivada num passado distante” (Botti et al,2006).