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Violações de direitos humanos na história da psiquiatria no Brasil

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21/04/2019 às 17:20
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Hospitais psiquiátricos, como o Hospital Colônia, em Barbacena-MG, e o Hospital Colônia Sant’Ana-SC, trazem tristes manchas na história da psiquiatria no Brasil, marcada por inúmeras violações aos direitos humanos e com a total anuência do Estado.

RESUMO: O presente trabalho tem como escopo resgatar à memória acontecimentos trágicos que marcaram a história da psiquiatria no Brasil. Neste sentido, resgatar a memória é como prestar uma espécie de tributo às vítimas, que não devem sumir no esquecimento da memória coletiva. É não somente um tributo, mas um legado à saúde, à justiça e à dignidade que os atores merecem. A ciência, em particular a medicina, visa trazer bem-estar social e sanar problemas inerentes à vida do ser humano em geral. Parece, portanto, paradoxal, que em nome da mesma haja tantos desacertos e erros no seu processo de evolução, como no caso em tela. O Estado, por sua vez, tem como uma de suas funções principais, zelar pela saúde do seu povo. No entanto, ele também pode falhar em busca de promover a saúde, ou ser omisso na tentativa de trazer o bem-estar social, dirimindo conflitos coletivos. Na conjuntura das primeiras instituições psiquiátricas do Brasil, pode-se, portanto, observar que a omissão do Estado, a falha da ciência, e a fragilidade dos doentes psiquiátricos atuaram em conjunto e contribuíram assim para diversas violações de direitos humanos, o que gerou cenas inimagináveis de sofrimento, degradação e massacre de milhares de pessoas.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos humanos; violações; história da Psiquiatria no Brasil.


INTRODUÇÃO

O doente mental tem características peculiares e, devido às sequelas da doença, pode ser um alvo fácil de abusos e violações: na sua fragilidade, não tem a capacidade mental nem civil para se auto afirmar e se defender; falta-lhe a coerência das palavras, faltam a lucidez, a lógica e até a linguagem; A doença mental pode chegar a tal gravidade que o ser humano perde as habilidades peculiares à sua humanidade. Na sua degradação física e mental reside a perda da própria identidade, da saúde, da dignidade e da vida.

Levando-se em conta o fato de que, nos seus primórdios, a psiquiatria ainda não estava suficiente desenvolvida para cuidar do doente, o Estado não estava preparado para amparar este cidadão, e o processo de adoecimento, de declínio cognitivo do indivíduo acabou resultando em torturas, privações, maus tratos, até culminar no genocídio institucionalizado de cerca de sessenta mil pessoas.

O percurso histórico da psiquiatria no Brasil se iniciou com a criação dos primeiros manicômios na época da segunda guerra mundial. A maioria deles era destinada a substituir a cadeia pública, recinto que era utilizado para recolher os “alienados” das ruas, onde ficavam perambulando. Desta forma os primeiros hospitais eram apenas um depósito de gente, ou “casa de loucos”, como eram chamados. Infelizmente na época não havia qualquer tentativa de se desenvolver uma terapia para amenizar o sofrimento dos internos.

Vale aqui ressaltar que o objetivo das instituições era segregar os “alienados” do resto do mundo, ou impedi-los de ficarem perambulando nas ruas. Com o aumento da demanda a situação piorou, e os manicômios ficaram superlotados, de modo que muitos doentes dormiam em colchões ou no chão, onde devido ao frio e às privações, encontravam a morte. O quadro de degradação e penúria não era muito diferente de um Estado para outro no território brasileiro. As violações de direitos humanos eram rotina. Inicialmente privados da liberdade, eram isolados de tudo e de todos. Não tinham alimentação, roupas, água, higiene, enfim não viviam em situações compatíveis com a vida.


MÉTODOS

Para ilustrar esse quadro de horror, foi feita uma revisão de literatura, de forma narrativa, em diferentes bases de dados, como Scielo, google acadêmico; sendo analisados artigos, depoimentos, livros e sites. Desta forma pode-se estudar duas instituições: a maior do Brasil, o Hospital Colônia de Barbacena, e o Hospital Colônia Sant’Ana de Santa Catarina. Ambas espelham a triste realidade do sistema manicomial no Brasil, no início de suas criações, até a década de 1970, quando se iniciou a reforma psiquiátrica. Tem como objetivo demonstrar à memória acontecimentos trágicos que marcaram a história da psiquiatria no Brasil através de relatos de casos demonstrarem a realidade do sistema manicomial no Brasil, no início de suas criações, até a década de 1970, quando se iniciou a reforma psiquiátrica.


AS PRIMEIRAS INSTITUIÇÕES PSIQUIÁTRICAS NO BRASIL

Segundo Oda, A. M. G. e Dalgalarrondo, P. (2005), os primeiros registros conhecidos e que serviram de fontes de pesquisas sobre as primeiras instituições psiquiátricas brasileiras datam do sec. XVIII, entre 1846 e 1889. Estes documentos foram confeccionados na forma de relatórios por políticos das províncias brasileiras. Estes relatórios costumavam ser lidos nas Assembleias Legislativas, ocasião em que cada presidente provincial prestava contas aos deputados, ou ao sucessor, dos feitos do governo no ano anterior, e em que se faziam considerações sobre as necessidades orçamentárias para o ano vindouro. São Paulo, Rio Grande do Sul, Maranhão, Pernambuco, Pará, Bahia, Rio Grande do Sul e Ceará eram as primeiras províncias que buscavam angariar recursos para a institucionalização de seus alienados. “História das primeiras instituições para alienados no Brasil” (ODA, A. M. G., 2005).

Ainda neste sentido, os autores relatam também a ajuda das associações religiosas (Santas casas de Misericórdia), que estavam sob a jurisdição dos respectivos governos provinciais aos quais prestavam contas do funcionamento dos estabelecimentos que lhes pertenciam, e de suas atividades filantrópicas; em contrapartida as mesmas recebiam dos governos as subvenções. Vale ressaltar que as Irmandades Santa Casa de Misericórdia, fundada em Lisboa em 1498, pela coroa de Portugal, desempenharam um papel importante na assistência aos alienados, mesmo antes da fundação de qualquer Instituição manicomial do Estado nas províncias.

A partir do século XVIII já se tinha notícia de que a Santa Casa da Bahia reservava acomodações para doentes mentais e que esses espaços eram conhecidos como “casinha de doudos”. A Santa Casa de São Paulo, na primeira metade do sec. XIX chegou a alugar um imóvel exclusivo para cuidar dos alienados (Figueiredo,2000). A capital do Império, o Rio de Janeiro, era palco em suas ruas de muitos pedintes, bêbados, prostitutas e alienados. Isso causava ás autoridades especial preocupação e a Sociedade de Medicina na época via a necessidade de se tomarem medidas higiênicas em relação a esta população marginalizada. A Academia Imperial de Medicina julgava haver certas peculiaridades nesta população e almejava o tratamento da classe desamparada dos “loucos”. Desta forma começou a se cogitar a necessidade da criação de um manicômio para tal fim; O intuito era evitar que estes fossem com frequência recolhidos à cadeia pública ou às enfermarias da Santa Casa de Misericórdia, onde recebiam um leito para dormir provisoriamente.

Em ambos locais, os loucos eram encarcerados em cubículos pequenos em condições desumanas, insalubres; podiam ficar todo o tempo amarrados, eram agredidos na hora da contenção. Diante do quadro dantesco foram surgindo defensores da criação de um manicômio na Corte. Os doentes de famílias abastadas eram escondidos em casa pela família. No entanto os pobres, ou viviam perambulando pelas ruas, ou eram encarceradas na cadeia pública em condições não condizentes com suas necessidades. Nesta conjuntura, através da Irmandade de Misericórdia, com a ajuda de famílias abastadas da cidade, houve a união de esforços para a construção do primeiro asilo de alienados brasileiro, o qual foi destinado, sobretudo aos “loucos pobres”. Em 1841 foi promulgado o decreto de fundação do Hospício de Alienados D Pedro II, no Rio de Janeiro. O mesmo foi inaugurado em 1852.

Além do Hospício dos Alienados Pedro II, durante o Segundo Reinado foram também criadas instituições que se denominavam exclusivas para alienados nas províncias de São Paulo, Pernambuco, Pará, Bahia, Rio Grande do Sul e Ceará, Tabela 1. Instituições exclusivas para alienados Hospício Provisório de Alienados de São Paulo, São Paulo, 1852 Hospício de Alienados de Recife-Olinda, Pernambuco, 1864 Hospício provisório de alienados Belém, Pará, 1873 Asilo de Alienados São João de Deus, Bahia, 1874 Hospício de Alienados São Pedro, Rio Grande do Sul, 1884 Asilo de Alienados São Vicente de Paulo, Ceará, 1886 Tabela 1: Cita as instituições que se denominavam exclusivas para alienados Todos os asilos se situavam nas capitais das províncias e atendiam as demandas vindas do interior, de forma que não cobriam todas as necessidades de vagas e ficavam sempre superlotados. Segundo os autores citados, nestes hospícios não havia presença significativa de médicos, até o fim do Império.

E, somente no início do século XX, com algum custo, os médicos conseguiram mobilizar as burocráticas administrações das Santas Casas, bem como as ordens religiosas que trabalhavam nos locais, e conseguiram se instalar na direção das instituições asilares. No entanto, a intervenção médica somente passaria a ser observada no Hospício da capital paulista depois de mais de 40 anos da sua fundação, marcada com a entrada de Franco da Rocha em seu corpo Clínico, em 1893. Depois de 1895, com o início das obras do Hospital Juquery, se iniciaria uma nova etapa na história da assistência psiquiátrica em São Paulo. Os autores relatam dados das pesquisas em relatórios da administração da época, onde os administradores tentavam angariar recursos para melhorar as instalações precárias onde funcionavam, ilustrando a situação política: “urge que tomeis consideração, que os infelizes recolhidos neste denominado Hospício, sem as precisas condições de higiene, sem um tratamento conveniente, como aconselham os especialistas, dificilmente poderão recobrar a razão” (São Paulo, 1870).

Outro relato documentado pelos autores retrata as precárias condições dos estabelecimentos. Antônio Costa Pinto e Silva, o presidente seguinte, é igualmente incisivo no relatório: “Este estabelecimento não corresponde às vistas humanitárias de seus instituidores. Parece que um mau fado, tendo presidido sua criação, ainda até agora não deixou de acompanha-lo...É verdadeiramente contristador o aspecto desse edifício público, que já teria desabado sobre os infelizes que ali existem reclusos, se não estivesse cheio de escoras” (São Paulo, 1871). Diante das precárias condições de vida, observava-se um aumento na mortalidade dos internos: dos 140 alienados tratados no ano, 45% faleceram.

Assim a justificativa: “a mortalidade havida é devida à inevitável aglomeração, grande número de enfermos no ambiente, sem acomodações adequadas suficientes. No estado morboso em que se encontravam ao entrarem no Hospício, logo adoeciam ou pegavam varíola e não suportavam. Faleciam logo depois que chegavam. ” Assim mais um relato da época já atestava as condições precárias e desumanas em que viviam os internos dos hospícios, tendo grande índice de mortalidade. Ainda no documento, aduzem: “O administrador indica a conveniência de haver dois médicos, e parece-me razoável, pois é bem difícil poder um só tratar regularmente de 70 enfermos também são dignos de melhor retribuição os enfermeiros, que tem um serviço pesado, e que estão inibidos de ter algumas horas de repouso” (São Paulo, 1876). Outro relato pede “melhorias nos compartimentos do hospício, para que o mesmo deixe de ser simplesmente uma hospedaria de infelizes para tornar-se verdadeiro hospício em que os enfermos possam recuperar a saúde e com esta o uso da razão” (São Paulo, 1881). Os autores trazem diversos relatórios da época que ilustram a situação precária das instituições e a falta de recursos e investimentos nas mesmas, retratando assim a falta de interesse político para amparar estes cidadãos. Um dos documentos pontua: ” requer melhorias e lembra que o Hospício havia 27 anos vinha tratando um avultado número de enfermos afetados da mais triste das enfermidades, como é a loucura, contribuindo ao mesmo tempo para a paz e bem-estar das famílias dos mesmos, e para a ordem e tranquilidade da sociedade em geral” (São Paulo, 1881).

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No ano seguinte, o vice-presidente Souza Aranha, Conde de Três Rios, diz do estado precário do Hospício: “Os intuitos de uma sociedade civilizada não ficam satisfeitos com a detenção destes infelizes em número superior à lotação do edifício, presos à mais perigosa melancolia, sem trabalho apropriado e sem possibilidade de cura quando a anormalidade mental chega a um certo grau. Pode haver egoísmo, mas não há caridade. Se ainda não existe classificação dos alienados, oficinas de trabalho, lugar para recreio, enfermarias higiênicas, casas para banho, duchas, aparelhos e instrumentos que a ciência médica manda aplicar, qual seria o meio de tratamento empregado anteriormente? ” (São Paulo, 1882).

Pelo exposto pode-se concluir que os primeiros manicômios no Brasil tinham grande precariedade em todos os sentidos: falta de pessoal, edifícios inadequados, falta de médicos, falta de higiene, superlotação etc. Os autores relatam também a falta de vagas. Cada hospital tinha em média 70 a 100 internos, mas recusavam outras demandas, que vinham também do interior da Província. Os enfermos do interior não tinham senão a capital onde buscar tratamento. Tal tratamento era, no entanto, ironicamente, mais voltado para amparar os familiares do doente e para livrar a sociedade do estorvo dos “infelizes”, como eram tratados, do que para ajudar o doente em si.

Desta forma o alienado não era o centro do problema, onde deveriam se concentrar esforços para a cura, mas sim a família do mesmo e a comunidade em que este vivia. Ao sair do convívio social ele deixava de ser um estorvo e assim era facilmente esquecido. De tal forma, ao sair da cadeia pública ele foi levado a um outro “depósito de gente”, de onde quase nunca saía curado ou melhorado. O tratamento sem terapia ocupacional, sem as medicações novas que foram desenvolvidas na era moderna, sem psicoterapia e em condições precárias era desumano e ineficaz. Nestas condições, não condizentes com as necessidades humanas, a taxa de óbitos era muito alta; em alguns casos poderia chegar perto de 50%, quando a varíola veio atingir essa população já fragilizada, mal alimentada, mal vestida, vivendo em situações muitas vezes não compatíveis com a vida.

De acordo com os autores, pode-se observar que o Estado, na época ainda Império, não dava o suporte adequado para a manutenção das “casas para alienados”, assim as Santas Casas de Misericórdia tentaram amparar e ajudar esta população, mas estes esforços não foram suficientes. Nas outras províncias como Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Sul, dentre outras, a situação não era diferente, as condições não eram melhores e havia muita carência de recursos. O objetivo principal da intervenção junto aos alienados era na verdade retirá-los das ruas, impedindo que se tornassem um estorvo para a comunidade local e um problema para as autoridades, que eram cobradas para dar uma solução ao problema; os hospícios vieram assim substituir a cadeia pública, para o confinamento dos mesmos, numa simples de redução de danos.

Pode-se concluir que a ciência psiquiátrica e a política assistencial no Brasil andaram em descompasso desde a fundação das primeiras instituições psiquiátricas. Apesar de a cooperação filantrópica das Santas Casas, os esforços não foram suficientes para a realização de uma assistência médica e social adequadas a estes indivíduos. Eram desamparados pela sociedade e rejeitados pela família. Só lhes restava o confinamento, situação que não lhes trazia qualquer benefício mental, nem social ou moral e perdiam a dignidade humana. Viviam isolados de tudo e de todos; e as famílias mais ricas preferiam o confinamento de seus doentes em casa, do que buscar ajuda nos ‘hospícios”, que eram chamados “depósitos de loucos” ou “casa de doudos”.

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Sobre a autora
Rosangela Lobo Zizler

Médica, acadêmica de Direito na Anhanguera, Valinhos, e Especialista em Direito do Estado pela LFG Anhaguera, Campinas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZIZLER, Rosangela Lobo. Violações de direitos humanos na história da psiquiatria no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5772, 21 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67093. Acesso em: 5 nov. 2024.

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