INTRODUÇÃO
Na tentativa de mitigar os efeitos do modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil, notadamente a partir dos anos 2000 quando o país insere-se no mercado de exportação de commodities, vislumbrou-se a adoção de uma postura dúbia por parte do Estado. Sob a luz do proveito econômico, a legislação ambiental foi flexibilizada nas localidades onde as grandes empresas tinham pretensões de se instalarem e, concomitantemente, a título de medidas compensatórias, criaram-se dispositivos legais de índole estritamente conservacionista sob a ótica da ecologia profunda. Pode-se mencionar como marco regulatório da referida postura legislativa a criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC pela Lei nº 9.985/2000 que prevê a criação das Unidades de Proteção Integral, embora preveja também a criação de categorias de Unidade de Conservação de Uso Sustentável. De outro modo, o desenvolvimento econômico é fomentado através de políticas econômicas de ajuste fiscal que incentivam a instalação de grandes empreendimentos, notadamente mineradoras e usinas hidrelétricas, além das alterações legislativas municipais que são arranjadas com a finalidade de se obter a permissão legal da exploração econômica de determinadas áreas.
Observou-se desde então uma predileção dos órgãos públicos de gestão ambiental pela criação de Unidades de Proteção Integral em áreas tradicionalmente ocupadas por comunidades que delas dependem para produção e subsistência. Além de tolher o direito da população na utilização dos recursos naturais daquele espaço, deve-se atentar para o comprometimento das ligações profundas que as comunidades estabelecem com seus respectivos territórios ao longo das gerações, bem como o sentimento de pertencimento que nutrem pela localidade, de modo que na ocorrência do processo de desterritorialização, há uma patente perda de identidade daqueles povos.
Com esse modelo de gestão ambiental, vislumbrou-se a eclosão de inúmeros conflitos ambientais. De um lado, as populações tradicionais lutando por seus territórios e, consequentemente, pela preservação de suas identidades; de outro os empreendimentos econômicos e as unidades de conservação avançando sobre os territórios tradicionalmente ocupados. Às comunidades restam os reassentamentos, e estes deslocamentos compulsórios levam as populações para espaços que não adequam-se aos seus costumes e modos de vida tradicionais, potencializando a condição de vulnerabilidade dos mesmos. Nota-se, pois, que a flexibilização legislativa para a viabilidade do avanço do capital e a asseveração na proteção de determinadas áreas como medida de neutralização de impactos ambientais, fere os direitos constitucional e infraconstitucionalmente garantidos aos povos e comunidades tradicionais.
POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS: BREVE CONCEITO
A categoria de povos e comunidades tradicionais vem sendo bastante explorada pela academia. A articulação desses grupos e a rede de movimentos por eles construídas para a defesa de seus direitos também vem lhes dando maior visibilidade. Nesse sentido, faz-se mister delimitar quais os grupos humanos que pertencem a esta categoria, para então passar-se à análise dos direitos relacionados a esses povos.
Arruda (1999) define como povos tradicionais as populações que desenvolveram um modo peculiar de relação com seus territórios. São os grupos de populações que:
apresentam um modelo de ocupação do espaço e uso dos recursos naturais voltado principalmente para a subsistência, com fraca articulação com o mercado, baseado em uso intensivo de mão de obra familiar, tecnologias de baixo impacto derivadas de conhecimentos patrimoniais e, normalmente, de base sustentável. Estas populações - caiçaras, ribeirinhos, seringueiros, quilombolas e outras variantes - em geral ocupam a região há muito tempo e não têm registro legal de propriedade privada individual da terra, definindo apenas o local de moradia como parcela individual, sendo o restante do território encarado como área de utilização comunitária, com seu uso regulamentado pelo costume e por normas compartilhadas internamente. (ARRUDA, 1999, p. 79-80).
O conceito construído por Little (2002), por sua vez, traz uma dimensão empírica e outra política. Para ele, os povos tradicionais são assim reconhecidos por encabeçarem uma frente de resistência pelo reconhecimento de seus modos de vida que baseiam-se em sistemas comunitários de uso das terras e dos recursos nela disponíveis. São povos que desenvolveram ao longo de gerações leis costumeiras que regem a relação de toda a comunidade com o território e que são naturalmente respeitadas por todos. Além disso, esses grupos mantém uma relação íntima com o lugar que vivem, associando ao território a sua história, memória, cultura e economia. Movidos pelo sentimento de pertencimento ao lugar, tais povos possuem ainda uma relação de respeito para com a natureza, e assim reproduzem práticas sustentáveis para a produção e subsistência.
Brandão e Borges (2014), por sua vez, identificam, além da característica interação comunitária e da prevalência da coletividade, outros qualificadores que auxiliam na identificação das comunidades tradicionais, quais sejam a capacidade de transformar a natureza; a autonomia em relação ao sistema político-econômico vigente; a autoctonia; a memória de processos de resistência vivenciados ancestralmente e também atualmente; e, por fim, a experiência de sofrer ameaças territoriais. Neste sentido, importantes as contribuições de Sabourin (2010) que, ao abordar a teoria da reciprocidade sob a perspectiva de Elianor Ostrom, afirma que as relações de reciprocidade assumem dimensões diferenciadas em relação aos sentimentos e valores agregados a relações, o que explica as ideias comunitárias e coletivas que estão imbricadas no seio das populações tradicionais.
Há ainda o conceito legal trazido pelo Decreto 6.040 de 07 de fevereiro de 2007. Tal dispositivo instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais e, em seu artigo 3º, define como povos e comunidades tradicionais os
grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. (BRASIL. Decreto 6.040 de 07 de fevereiro de 2007).
Observa-se, pois, que os povos e comunidades tradicionais são, em síntese, aqueles grupos que possuem um modo de vida diferenciado, contrapondo-se ao modelo capitalista hegemônico.
PROTEÇÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL
O ordenamento jurídico brasileiro possui um conjunto de dispositivos jurídicos que visam garantir direitos aos povos e comunidades tradicionais. Ainda que alguns deles não o faça expressamente, o entendimento majoritário é de sua aplicação por meio de uma interpretação extensiva e analógica da lei.
O texto constitucional de 1988 tratou de proteger o patrimônio cultural brasileiro, tanto o material quando o imaterial, principalmente aquele originado dos grupos humanos que foram fundamentais na construção da sociedade brasileira. A Constituição prevê ainda que sejam protegidas as manifestações culturais populares, fazendo menção às indígenas e afro-brasileiras. A previsão é dos artigos 215 e 216 que foram incluídos na Seção que trata da Cultura, dentro do Título VIII – Da Ordem Social e a determinação é de que cabe ao Estado proteger e promover esse patrimônio.
A Convenção 169 da OIT – Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais foi pactuada em 1989 em Genebra. No cenário internacional começou a vigorar em 1991, mas no Brasil só fora adotada por meio do Decreto Presidencial n.º 5.051, de 19 de abril de 2004. Esta Convenção prevê uma série de direitos aos povos e comunidades tradicionais, embora trate expressamente de uma outra categoria, a de povos indígenas e tribais. Cumpre destacar que “referido ato normativo integra o ordenamento jurídico interno com caráter de norma infraconstitucional, situando -se nos mesmos planos de validade, eficácia e autoridade em que se posicionam as leis ordinárias” (LENZA, 2012, p. 606). Dentre os direitos trazidos pela Convenção 169 da OIT destacar-se-á alguns considerados mais importantes para este trabalho. A começar pelo art. 1º que consagra a auto identificação como principal critério para determinação de quem são os povos e comunidades tradicionais. Em seguida, o art. 2º determina ao Estado que proteja essas populações que possuem um modo de vida e culturas diferenciados. Os arts. 4º, 6º e 7º determinam que a participação dos povos tradicionais na elaboração de políticas públicas e medidas protetivas é essencial e, ainda, que tais políticas e medidas deverão ser direcionadas conforme as necessidades e demandas apontadas pelos próprios povos e comunidades tradicionais. Os arts. 14 e 15 contemplam os direitos territoriais e o livre acesso aos recursos naturais. Por fim, o art. 16 dispõe sobre o direito de permanência em suas terras tradicionalmente ocupadas, esclarecendo que o reassentamento deve ser medida excepcional e condicionada ao consentimento dos povos.
Outro importante tratado internacional foi a Convenção sobre a Diversidade Biológica de 1992, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto n.º 2.519, de 16 de março de 1998. Referida convenção trouxe a proteção aos povos e comunidades tradicionais ao determinar ao Estado que promova ações que objetivem conjugar a conservação da biodiversidade ao desenvolvimento sustentável.
Interessante a análise de Joaquim Shiraishi Neto:
Da articulação entre as duas Convenções acima mencionadas, constata-se que a noção de “comunidades locais”, que antes denotava principalmente um tributo ao lugar geográfico e a um suposto “isolamento cultural”, tornou-se relacional e adstrita ao sentido de “tradicional”, enquanto reivindicação atual de grupos sociais e povos face ao poder do Estado e enquanto direito manifesto através de uma diversidade de formas de autodefinição coletiva.(2007, p11).
O já mencionado Decreto 6.040 de 07 de fevereiro de 2007 instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, estruturando-a em quatro eixos: o acesso aos territórios e aos recursos naturais, a infraestrutura, a inclusão social e o fomento e produção sustentável. Merece destaque o fato de que o referido Decreto rompeu com as terminologias anteriormente utilizadas pelo legislador ao substituir o termo “populações” por “comunidades”.
Há ainda outros importantes dispositivos legais que podem ser aplicados às populações aqui tratadas, tais como a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 485 de 2006; a Lei n.º 12.288, de 20 de Julho de 2010 que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial; o Decreto n.º 4.887, de 20 de novembro de 2003 que trata dos direitos específicos dos povos quilombolas; e, por fim, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas aprovada em Assembleia Geral da ONU em 2007.
A CONSERVAÇÃO COMO UMA AMEAÇA
Keith Thomas (1996), ao abordar as contradições encontradas na relação do homem com a natureza ao longo de sua história, identifica uma importante mudança de paradigma que remete ao tema central deste trabalho: a predominância do gosto do homem pela natureza selvagem observada no final do século XVIII. Separando cultura e natureza, o homem passou de agressor à protetor da natureza. Foram baseados nesta concepção de natureza “intocada” que os biólogos desenvolveram a vertente preservacionista da luta ambiental. Cumpre destacar que o termo “intocada” fora utilizado entre aspas justamente pelo fato de que, neste trabalho é refutada a ideia da existência de uma natureza em seu estado original, sem ter sofrido qualquer tipo de alteração antrópica. Conforme prelecionado por Diegues, essa concepção constitui um neomito “que foi transposto dos Estados Unidos para países do Terceiro Mundo, como o Brasil, onde a situação é ecológica, social e culturalmente distinta”. (2000, p. 14).
Ressalte-se ainda que no decorrer deste trabalho o termo “conservacionismo” tem sido tratado de forma genérica e como sinônimo de “preservacionismo”. Entretanto, convém demonstrar a distinção entre o preservacionismo e o socioambientalismo enfatizada por Little (2002). O autor esclarece que o preservacionismo é um movimento que baseia-se na ideia de natureza selvagem e que não admite a presença humana em espaços destinados à conservação da natureza “intocada”. Já o socioambientalismo é uma vertente que procura associar a ideia de desenvolvimento sustentável ao movimento ambiental.
Desde que o conservacionismo tornou-se hegemônico na questão ambiental mundial, passou-se a vislumbrar, de um lado, populações sendo expulsas de seus territórios, e de outro, a multiplicação de instituições de índole conservacionista em todo o mundo.
O primeiro parque nacional instituído no Brasil foi o de Itatiaia em 1937, mas a consolidação do conservacionismo no campo ambiental brasileiro se deu com a morte de Chico Mendes em 1988 e desde então povos e comunidades tradicionais encabeçaram a luta pelo dito desenvolvimento sustentável. Entretanto, nos dias atuais, essa luta tomou outros rumos, teve o seu sentido desvirtuado e passou a enxergar essas populações como ameaças a seus propósitos. Assim, atualmente, os povos tradicionais têm como seus principais inimigos não só o petróleo, a mineração, o reflorestamento e monoculturas em geral, mas também as instituições que se dizem protetoras da natureza, de índole conservacionista.
A implantação do SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação representa bem a maneira como o Estado vem encarando a questão ambiental no Brasil. Instituído pela Lei nº 9.985 de 18 de julho de 2000, o SNUC foi acirradamente debatido no Congresso Nacional por defensores da vertente preservacionista e socioambientalista.
A lei do SNUC estabelece critérios e normas para a criação, implantação e gestão das unidades de conservação e traz a descrição de cada uma das categorias. À categoria de Unidade de Proteção Integral, a lei atribui as Estações Ecológicas, Reservas Biológicas, os Parques Nacionais, os Monumentos Naturais e os Refúgios de Vida Silvestre. Nesta categoria o objetivo é preservar a natureza sem que haja o uso direto de seus recursos naturais. No que diz respeito às Unidades de Uso Sustentável, a lei elenca as seguintes: Áreas de Proteção Ambiental; Áreas de Relevante Interesse Ecológico; Florestas Nacionais; Reservas Extrativistas; Reservas de Fauna; Reservas de Desenvolvimento Sustentável; e Reservas Particulares do Patrimônio Natural. Esta categoria, por sua vez, objetiva conjugar preservação da natureza ao uso sustentável de seus recursos.
A categoria de Unidades de Conservação de Uso Sustentável seria uma alternativa à recorrente expulsão dos povos e comunidades tradicionais de seus territórios, como acontece no caso da criação de Unidades de Proteção Integral em territórios tradicionalmente ocupados. Contudo, as únicas modalidades que preveem a possibilidade de extração de recursos naturais são a Resex – Reserva Extrativista e a RDS - Reserva de Desenvolvimento Sustentável. A lei prevê que tais modalidades devem ser reguladas por um órgão exterior, e tal interferência externa acaba desaguando no desrespeito aos modos de vida daquelas populações, tirando-lhes a autonomia que lhes é tão cara. Anaya, ao abordar a articulação dos vazanteiros no Norte de Minas Gerais, esclarece que
De qualquer forma, observa-se pelo SNUC, que, tanto a demarcação do território como RDS ou RESEX criam uma situação de regulação externa sobre o modo de vida vazanteiro, em que seu poder de gestão sobre o território seria diminuído. Pois, em se tratando de uma Unidade de Uso Sustentável, independente da modalidade, esta seria gerenciada por um Conselho Deliberativo, presidido pelo IEF, órgão responsável por sua administração. (2014, p. 4045).
Ora, conforme aventado no início deste trabalho, os povos e comunidades tradicionais são grupos que vivem da extração de recursos naturais para sua subsistência. Constituem-se, em sua grande maioria, por pequenos agricultores que dependem de suas lavouras para se alimentar e que criaram uma relação de dependência para com a natureza. Justamente devido a essa dependência, esses povos desenvolveram técnicas e práticas sustentáveis de uso dos recursos naturais que são repassadas tradicionalmente de geração em geração. Observa-se, portanto, que a legislação acaba limitando o modo de vida dessas populações e consequentemente, violando seus direitos.
Neste sentido, Diegues (1994) aponta que os modelos de proteção de determinadas áreas impostos pelos órgãos encarregados da gestão ambiental não condizem com a diversidade fundiária brasileira. Almeida (2008) esclarece que, ao contrário do que é divulgado pelos órgãos oficiais, o Brasil tem uma grande diversidade de terras regidas por normas comunitárias de uso comum, como é o caso das “terras de índio”, “terras de santo”, “terras de preto”, “terras de ausente”, entre outras. O modelo de conservação ambiental adotado pelo Brasil desconsidera a existência desses regimes agrários, passando por cima de toda uma história existente.
A legislação conservacionista, além de representar uma usurpação do direito das comunidades que habitam as localidades onde são implantadas unidades de conservação, é uma contradição. Isto porque estes espaços públicos são criados com a finalidade de entreter as populações urbanas em detrimento do bem estar dos povos e comunidades tradicionais em seus respectivos territórios. Há uma preconização do direito ao lazer de alguns em prejuízo dos direitos territoriais, sociais, culturais, econômicos, à propriedade, ao meio ambiente e à paz de outros.