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A utopia da gratuidade da Justiça

Agenda 19/07/2018 às 13:30

Uma análise sobre a efetividade da gratuidade da Justiça. Existe mesmo Justiça gratuita?

Existe Justiça gratuita?

A Justiça no Brasil, em muitas situações, nunca foi barata e de fácil acesso, na prática. O carente de recursos que a ela recorre sempre teve que se esforçar para vencer as “cláusulas de barreiras” impostas pela lei, relacionadas a exigências de comprovação de ausência de condições de pagamento de custas e despesas processuais, como requisito prévio de acesso.

Ao contrário do que ocorre em muitíssimos casos, o Estado deveria ampliar e efetivamente facilitar a busca de direitos pelos particulares, considerando que há tempos avocou para si o monopólio do exercício de resolução de conflitos de interesses que surgem por decorrência do viver em sociedade, proibindo, por consequência, a justiça feita pelas próprias mãos dos envolvidos nos referidos conflitos. Ora, se o Estado é o único legitimado a dizer de que lado está o direito, deveria abrir as portas especialmente àqueles com menos recursos financeiros para tanto.

Cumpre esclarecer que a gratuidade de justiça é um instituto processual que permite isenção no pagamento de custas processuais, e está expressamente prevista no art. 98, § 1º, do Código de Processo Civil, e pode ser pleiteada ao juiz tanto no momento inicial da ação quanto no curso da demanda, entretanto, condicionada à existência e manutenção do estado de hipossuficiência do postulante, podendo, aliás, ser revogada a concessão a qualquer tempo, caso não se mantenha a citada condição.

É muito ampla e discrepante a faixa de valores de custas processuais, tanto no que se refere aos diferentes atos processuais a serem praticados, quanto no que diz respeito à tabela de valores que os tribunais de cada estado fixam.

Fato é que muitos têm seu pedido de gratuidade da justiça indeferido de plano pelo juiz, porque não conseguem comprovar que não possuem recursos suficientes para pagar as referidas custas processuais, o que, em princípio, não se coaduna com o que estabelece o art. 99, § 2º, do Código de Processo Civil, dispositivo que determina que o juiz da causa precisa fundamentar a decisão que eventualmente indefira o pedido de gratuidade, o que somente pode ocorrer na falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade.

Com o rigor, não raras vezes, excessivo por parte de alguns magistrados, o qual não se harmoniza com a exigência de simples declaração do postulante, prevista no art. 99, § 3º, do CPC, para muitas pessoas de baixa renda fica inviabilizado o acesso ao Judiciário.

Infelizmente, para fazer valer seus direitos, essas pessoas mais carentes de recursos financeiros são as que mais precisam da tutela do Poder Judiciário, por incrível paradoxo do sistema. E neste contexto, elas têm deixado de recorrer à Justiça, ou adiado essa possiblidade, pois, para um juiz com pouca experiência de vida ou reduzido conhecimento da realidade fora de seu gabinete, pode parecer que tais pessoas possam ter condições de pagar as custas, mas isso somente seria viável com o risco de sacrifício de sua própria subsistência, especialmente em tempos de desemprego em massa e de crise para todo lado.

Em síntese, não dá para sacrificar os dedos com a finalidade de salvar os anéis! Eis o claro paradoxo já mencionado.

A realidade das pessoas desempregadas ou com renda mensal próxima de um salário mínimo de fome (pouco mais de R$ 900,00), muito diversa dos que recebem remuneração mensal entre R$ 27.500,00 e RS 33.700,00 (faixa aproximada de subsídio de juiz de primeiro grau e ministro), é de esmagar sonhos (e também a própria realidade), pois essa “renda” fica praticamente toda comprometida com pagamento das despesas com itens básicos para sobrevivência, ou seja, alimentos, remédios, transporte, aluguel etc, sem falar de outras despesas, quando eventualmente há sobra no orçamento, como  materiais para a escola dos filhos, empréstimos (para correr atrás de outras dívidas).

Então, de maneira genérica e mais clara, funciona mais ou menos assim: se você tem como pagar as custas do processo a Justiça está ao seu alcance; do contrário não. Isso, evidentemente, não se coaduna com o postulado constitucional de acesso amplo ao Poder Judiciário (CF, art. 5º, inc. XXXV).

Nem se pode aventar a hipótese de exigência de procura da Defensoria Pública (não se deve confundir justiça gratuita com assistência judiciária gratuita – essa última prevista nos arts. 134 e 5º, inc. LXXIV, da Constituição), porque uma coisa não está ligada obrigatoriamente à outra. Ou seja, para obter a gratuidade da Justiça não há impedimento de contratação de advogado privado.

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Numa leitura rápida da situação, parece que a lei dá com uma mão e o rigor excessivo de alguns juízes retiram com a outra, especialmente aquele menos consciente das condições de vida de boa parcela dos brasileiros, pois aplicar com rigor a norma alusiva à prova de ausência de condições para pagar as custas e despesas do processo significa vendar seus próprios olhos à condição de penúria dos necessitados.

Para que não se faça da previsão constitucional e legal de proteção aos mais carentes mera letra morta, dispositivos legais que, na prática, procuram dar efetividade ao princípio da isonomia, há necessidade de uma visão mais humanística (e realista) por parte do magistrado, que precisa sair de sua costumeira posição privilegiada, no tocante ao valor mensal de seu subsídio, para num gesto quase de humildade e compaixão, colocar-se no lugar do outro, pois somente a alteridade permite alcançar o ponto de vista alheio (é literalmente a vista de um outro ponto, análise da situação concreta sob outro prisma).

Em tese, qualquer um que participe de um processo judicial, tanto como autor quanto réu, ou mesmo interveniente, pode se beneficiar da gratuidade de justiça, após passar pela formalidade inicial de comprovação de que não tem como pagar as custas.

Com a entrada em vigor do atual Código de Processo Civil, ao que tudo indica, ficou menos subjetiva a análise judicial da alegação de insuficiência de recursos para o fim aqui tratado, mas, ainda assim, alguns magistrados não têm se mostrado sensíveis à penúria que ainda grassa sobre a população brasileira, situação notória já há alguns anos.   

Para alguns necessitados da tutela, desprovidos de conhecimento, soa como se o Estado-Juiz, no caso o Judiciário, estivesse ainda menos preocupados com a efetividade da prestação jurisdicional, previsto na Carta da República art. 5º, LXXIV, da Constituição da República que assegura que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.

A negativa de concessão da gratuidade, infelizmente, não pode servir para fechá-la! Daí a inadiável necessidade de bom senso e ponderação quando da apreciação do pedido de concessão do referido benefício processual.

Ora, apesar da competência específica da Defensoria Pública, a que se refere esse dispositivo constitucional tão importante, não se pode olvidar o propósito teleológico e a interpretação sistemática da expressão “assistência jurídica gratuita”, que precisa englobar também a gratuidade da justiça, que obviamente pode ser concedida também àqueles que contratam advogado particular.

O que se vê, infelizmente, na contramão da história e em confronto com os aspectos sociológicos atuais, é um Judiciário cada vez mais rigoroso e menos preocupado com a realidade do povo, eis que se torna mais difícil o cidadão conseguir ser agraciado com a concessão do benefício da gratuidade da justiça.

O artigo 99, § 3°, do CPC, que presume “verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoal natural”, está bem longe de se tornar realidade em boa parte das lides forenses, pois não basta alegar, sendo necessário uma verdadeira exposição da vida financeira do demandante/demandado no intuito de tentar sensibilizar um judiciário que parece estar vestido com togas de aço e martelo de ferro.

Não se cuida de defender qualquer tipo de burla ao importante instituto processual aqui referido, até porque é lícito ao juiz indeferir o pedido quando dos autos restar demonstrada a inverdade da alegação de insuficiência de recursos, e pode fazê-lo de ofício ou mediante provas trazidas pela parte processual contrária.

Não é absolutamente isso o que se defende aqui, mas uma postura menos dura e inflexível do juiz, mais humana e “pé no chão”.

Para concluir, a meu ver é necessário que haja uma mudança na mentalidade dos operadores do direito, em especial do juiz que frequentemente dificulta ou denega a concessão dos benefícios da gratuidade de justiça, muitas vezes baseado em parâmetros de renda que na maioria das vezes não correspondem à realidade socioeconômica do postulante. Não se trata propriamente de provar a hipossuficiência em termos numéricos absolutos, mas de valorar a condição financeira do peticionante, relativamente às suas necessidades de primeira ordem.

O objetivo deste artigo, ainda que de forma tímida, é reivindicar aos cidadãos em dificuldade financeira o efetivo aceso à Justiça, de forma gratuita, isentando-os do pagamento de custas processuais como prévio requisito para ingresso ao Judiciário, visto que essa exigência, tomada em seu mais elevado rigor, distancia-se da atual realidade brasileira e inibe a concretização da real função da Justiça, distante, portanto, da necessária isonomia.

Sobre a autora
Gisele Nascimento

Advogada em Mato Grosso, Especialista em Direito Civil e Processo Civil, pela Cândido Mendes, pós-graduada em Direito do Consumidor, pela Verbo Jurídico e pós-graduanda em Direito Previdenciário, pela EBRADI e MBA Marketing Digital Para Negócios pela PUC.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO, Gisele. A utopia da gratuidade da Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5496, 19 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67570. Acesso em: 22 nov. 2024.

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