1. Introdução
A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado. Assim inicia-se o caput do art. 134 da Constituição Federal, colocando a Defensoria Pública no papel institucional de prestar atendimento gratuito às pessoas carentes, nos âmbitos judicial e extrajudicial.
Neste mister, coube ainda à Defensoria Pública, por força da Lei Complementar n.º 80 de 1994, a curadoria especial como função institucional (art. 3.º, VI).
No âmbito da Legislação Estadual Mineira, a Lei Complementar Estadual n.º 65 de 2003, que organiza a Defensoria Pública no Estado, previu igualmente a função de curadoria especial em seu art 5º, inciso VIII.
O Código de Processo Civil, em seu artigo 9.º, preconiza que o juiz dará curador especial ao revel citado por edital ou com hora certa, bem como ao preso e também ao incapaz quando os seus interesses colidirem com os de seu representante legal.
Aqui reside o problema hermenêutico e que na prática tem trazido inconvenientes. Seria a Defensoria Pública responsável pela curadoria especial em qualquer hipótese? Sempre que houver necessidade de nomear-se curador especial, é à Defensoria Pública que cabe exercer este mister?
Conforme procuraremos demonstrar, entendemos que a curadoria especial que cabe à Defensoria Pública é a curadoria processual!
2. O Defensor Público e a Curadoria Especial
A fim de melhor sustentarmos nosso posicionamento, mister se faz um breve resumo dos pressupostos processuais referente às partes no processo.
São pressupostos processuais referentes às partes a capacidade de ser parte, a capacidade de estar em juízo e a capacidade postulatória.
O primeiro diz respeito à capacidade de direito, ou seja à capacidade que se adquire com o nascimento com vida (não se olvidando a proteção ao nascituro), nos preciso termos dos artigos 1.º e 2.º do Código Civil, verbis:
Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.Art. 1
Art. 2 A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
O segundo se refere à questão de poder estar em juízo, à questão de a pessoa poder pleitear e/ou defender-se perante o Poder Judiciário. Diz-nos o Código de Processo Civil que:
- Toda pessoa que se acha no exercício dos seus direitos tem capacidade para estar em juízo.Art. 7
Art. 8 - Os incapazes serão representados ou assistidos por seus pais, tutores ou curadores, na forma da lei civil.
Já o terceiro pressuposto trata da questão da indispensabilidade do advogado. Exceto quando a Lei o preconiza, alguém somente poderá pleitear em Juízo se representado por advogado legalmente habilitado perante a Ordem dos Advogados do Brasil:
- A parte será representada em juízo por advogado legalmente habilitado. Ser-lhe-á lícito, no entanto, postular em causa própria, quando tiver habilitação legal ou, não a tendo, no caso de falta de advogado no lugar ou recusa ou impedimento dos que houver. (Código de Processo Civil, grifo nosso).Art. 36
A problemática da Curadoria Especial afeta à Defensoria Pública é justamente estabelecer a qual ou a quais destes pressupostos se liga a atuação institucional desta como curadora.
Estando ausente ou defeituosa a representação da parte, em qual daqueles pressupostos é que caberá à Defensoria Pública suprir a lacuna?
Quanto ao primeiro pressuposto elencado (capacidade de ser parte), é óbvio que nem a Defensoria Pública nem qualquer outro Órgão ou mesmo pessoa física ou jurídica poderá suprir a deficiência. Tal impossibilidade liga-se ao fato de que o nascimento se deu sem vida (natimorto), ou ainda que a pessoa física morreu, ou inexistente a pessoa jurídica. Aqui, é impossível a atuação da Defensoria Pública como Curadora Especial.
Quanto ao segundo pressuposto (capacidade de estar em juízo), é cediço que este pressuposto se atém à questão da parte atuar perante o Poder Judiciário. A parte capaz poderá sem qualquer outra formalidade ser parte em juízo e, os incapazes serão representados ou assistidos (Art. 8º. Os incapazes serão representados ou assistidos por seus pais, tutores ou curadores, na forma da lei civil; Código Civil).
O Professor Othon Sidou, analisando esta questão, assim se posicionou:
A legitimidade processual é para qualquer causa; diz com a capacidade da pessoa, autor ou réu, para a condução do processo, e só o pode conduzir quem se achar no exercício de seu direito. O incapaz pode ter legitimação causal, mas lhe falece a processual, a não ser devidamente substituído pelo representante legal [01](grifo nosso).
Eis a pedra de toque do problema. É com relação a este pressuposto processual que se têm vislumbrado os equívocos. A Lei Civil é bastante clara em dizer que a representação dos incapazes será feita por seus pais, tutores ou curadores, mas a quais curadores esta se refere?
Ora, sabemos que as regras de interpretação dizem que, para uma boa exegese, mister se faz uma análise lógico-sistemática. Uma vez que a norma de que ora tratamos encontra-se disciplinada no Código Civil, dentro deste é que devemos buscar em primeiro lugar a solução do problema.
Em seu artigo 1.775, prescreve nossa Lei Civil:
O cônjuge ou companheiro, não separado judicialmente ou de fato, é, de direito, curador do outro, quando interdito.Art. 1775
§1o Na falta do cônjuge ou companheiro, é curador legítimo o pai ou a mãe; na falta destes, o descendente que se demonstrar mais apto.
§ 2o Entre os descendentes, os mais próximos precedem aos mais remotos.
§ 3o Na falta das pessoas mencionadas neste artigo, compete ao juiz a escolha do curador.
Muito bem, encontramos, pois, a resposta à questão acima formulada. O Código Civil comete preferencialmente ao cônjuge e aos parentes o exercício da curadoria.
Posição idêntica encontramos na excelente obra do Prof. Paulo Nader:
A lei permite a qualquer pessoa a titularidade de bens, assim, um recém-nascido ou alguém mentalmente incapaz, poderá ser proprietário de um apartamento, mas falece-lhe condição para administrar o imóvel por si mesmo. Ambos possuem capacidade de direito, todavia são incapazes de fato. Como a capacidade de fato é importante para a participação na vida social, notadamente para quem possui patrimônio a administrar, determina a lei civil o suprimento da incapacidade, seja pelo poder familiar, pela tutela ou curatela [02](grifos nossos).
Voltemos, então, à análise da capacidade de estar em juízo.
Verificando, pois, o juiz que à parte falta representação ou que esta está irregular, mandará supri-la ou regularizá-la (Código de Processo Civil, art 13, verbis: "Verificando a incapacidade processual ou a irregularidade da representação das partes, o juiz, suspendendo o processo, marcará prazo razoável para ser sanado o defeito").
Demonstrado que os incapazes deverão ser assistidos ou representados por seus pais, tutores ou curadores, e que os curadores deverão ser nomeados segundo a hierarquia exposta no art. 1.775 do Código Civil, também aqui não sobra margem à atuação da Defensoria Pública como Curadora Especial.
No entanto, vemos diuturnamente os Defensores Públicos sendo nomeados para funcionarem como curadores especiais a menores, cujos interesses colidem com os de seus representantes legais; para representarem herdeiros incapazes, no sentido de concordarem com partilhas em inventários; para administrarem patrimônio de menores e outras situações análogas.
O fundamento, errôneo, destas nomeações, está justamente em confundir-se capacidade de ser parte e capacidade postulatória – esta sim, afeta à Defensoria Pública.
A capacidade postulatória, que não se confunde com a capacidade de ser parte, consiste na aptidão de praticar atos técnicos dentro do processo (formular a peça inicial, contestação, recursos, petições em geral etc) [03].
O Defensor Público atua como Curador Especial para sanar a ausência de capacidade postulatória; este o fim a que se presta a Defensoria Pública, à tutela jurídica; à prestação de assistência jurídica; jamais suprir a ausência do curador legal para estar ao lado de um incapaz a fim de que este tenha capacidade de estar em juízo.
Nos casos acima exemplificados, a nomeação do curador deve-se ater à regra do art. 1.775 do Código Civil e, se necessário apresentar-se suprir a capacidade postulatória, aí sim a Defensoria Pública virá para regularizar este pressuposto processual, exercendo a capacidade postulatória.
O Defensor Público não tem a missão, o múnus, de administrar interesses pessoais da parte, administrar patrimônio da parte – esta curadoria é dever do cônjuge e dos parentes, diretamente ligados aos fatos e sabedores da real situação dos bens, valores e interesses do curatelado. Entendimento diverso leva à conclusão de que deveriam os Defensores Públicos ser os curadores de todos os interditados, em primeiro lugar, só se deferindo o encargo a outrem caso fosse relevante esta outorga.
À Defensoria Pública, enquanto Instituição essencial à Justiça, cabe exercer a representação processual, a defesa técnica, a capacidade postulatória.
Assim a Jurisprudência: "Exercendo o curador especial atividade advocatícia genuína, considera-se legítima a condenação do vencido nos honorários advocatícios" (JTJ 174/160).
Claro, pois, que a atividade do curador é advocatícia. Portanto, entendemos que à Defensoria Pública cabe a atuação como Curadora em suprimento à capacidade postulatória da parte; para qualquer outra situação a nomeação de curador deverá obedecer à regra da lei civil.
E quando a norma do Código Civil, acima citada, fala que ao juiz competirá a nomeação de outras pessoas na ausência de cônjuge e parentes (art. 1775, § 3.º)? Ora, a própria norma dá a resposta: ´na falta das pessoas compete ao juiz a escolha do curador´, deixando claro que o juiz deverá nomear outra pessoa para suprir a incapacidade da parte, e esta pessoa deverá ser escolhida dentre outros parentes, ou amigos da família ou conhecidos ou ainda terceiros, que se incumbirão de administrar os interesses do incapaz, não à Defensoria Pública que exerce função técnica, jurídica apenas.
3. Conclusão
Sintetizando, a Defensoria Pública exerce a curadoria ad processum, ou seja, supre a capacidade postulatória da parte. A curadoria para suprir a capacidade de estar em juízo é múnus do cônjuge, ascendente, descendente ou outro parente, preferencialmente, nos exatos termos do nosso Código Civil.
Tal entendimento é esposado por Vicente Greco Filho: "O curador especial a que se refere o Código é também chamado curador à lide para distingui-lo do curador representante legal do incapaz nos atos da vida civil" [04].
Concluindo, esperamos contribuir com este pequeno estudo para uma análise mais profunda acerca da tormentosa questão da Curadoria Especial afeta à Defensoria Pública, que na prática tem trazido embates entre os Defensores Públicos e os demais agentes do processo, quando se tenta cometer à Defensoria Pública atribuição que não lhe é afeta, deixando claro que a posição neste sustentada é nossa.
4. Bibliografia
GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002.
OTHON SIDOU, J.M. Processo civil comparado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
NADER, Paulo. Curso de direito civil parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
WAMBIER, Luiz Rodigues et allü. Curso avançado de processo civil. São Paulo: RT, 2002.
BRASIL. Código Civil, código de processo civil, constituição federal. Organizador Yussef Said Cahali. 7. ed. São Paulo: RT:2005.
BRASIL. Lei Complementar nº 80 de 12 de janeiro de 1994. Organiza a Defensoria Pública da União, Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, e dá outras providências.
MINAS GERAIS. Lei Complementar Estadual nº 65 de 16 de janeiro de 2003. Organiza a Defensoria Pública do Estado, define sua competência e dispõe sobre a carreira de Defensor Público e dá outras providências.
Notas
01OTHON SIDOU, J. M. Processo civil comparado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p.189.
02NADER, P. Curso de direito civil parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p.191.
03WAMBIER, L. R. et allü. Curso avançado de processo civil. São Paulo: RT, 2002. v.1. p.199.
04GRECO FILHO, V. Direito processual civil brasileiro. São Paulo:Saraiva, 2002. v.1. p.105.