4 O PROCESSO COMO INSTRUMENTO DE PACIFICAÇÃO SOCIAL
O Estado resolve os conflitos interindividuais objetivando a solução dos conflitos e a pacificação social. Para isso o Estado decide imperativamente e impõe suas decisões.
Nesse sentido:
“A pacificação social é o escopo magno da jurisdição e, por conseqüência, de todo o sistema processual (uma vez que todo ele pode ser definido como a disciplina jurídica da jurisdição e seu exercício). É um escopo social, uma vez que se relaciona com o resultado do exercício da jurisdição perante a sociedade e sobre a vida gregária dos seus membros e felicidade pessoal de cada um.”[12]
O sistema processual é instituído pela União, como norma nacional, ou seja, com abrangência no território brasileiro, visando apaziguar os inúmeros conflitos que surgem no seio da sociedade.
Atua o direito processual como “instrumento a serviço do direito material”[13], cuja função é possibilitar a plena aplicação das normas jurídicas.
O processo caracteriza-se, entre outros aspectos, por sua instrumentalidade. Assim:
“Falar em instrumentalidade do processo, pois, não é falar somente nas suas ligações com a lei material. O Estado é responsável pelo bem-estar social turbado pela existência de conflitos entre pessoas, ele se vale do sistema processual para, eliminando os conflitos, devolver à sociedade a paz desejada. O processo é uma realidade desse mundo social, legitimada por três ordens de objetivos que através dele e mediante o exercício da jurisdição o Estado persegue: sociais, políticos e jurídico. A consciência dos escopos da jurisdição e sobretudo do seu escopo social magno da pacificação social (...) constitui fator importante para a compreensão da instrumentalidade do processo, em sua conceituação e endereçamento social e político.”[14]
Outrossim, o processo também possui o aspecto negativo. Ele ocorre quando utilizado como um fim em si mesmo. O processo não deve frustrar ou contrariar a aplicação do direito material. Com efeito, o princípio da instrumentalidade das formas, propugna que somente serão cumpridas as exigências formais do processo, “na medida em que isso seja indispensável para a consecução dos objetivos desejados”[15].
5 O REGIMENTO INTERNO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O PEDIDO DE VISTA
Pelo disposto no artigo 119, § 3º, da Constituição de 1967, o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal possuía força de lei, competindo-lhe estabelecer regras sobre a competência do Pleno e das turmas. Também o Regimento deveria dispor a respeito das regras processuais pertinentes à competência originária e recursal[16].
Tendo em vista que a Constituição atual não permite que o STF edite normas de natureza processual, até que sejam promulgadas novas leis, aplicar-se-á as regras constantes do Regimento Interno, em homenagem ao princípio da continuidade da ordem jurídica. Alguns aspectos processuais foram disciplinados pela Lei nº 8.038/90, subsistindo, todavia, muitas prescrições regimentais.
Determina o artigo 134 do Regimento Interno do STF que se algum dos Ministros pedir vista dos autos, deverá apresentá-los, para prosseguimento da votação, até a segunda sessão ordinária subseqüente.
O § 1º do artigo 134 determina sejam computados os votos já proferidos na continuação do julgamento.
A antecipação do voto vem prevista no artigo 135, § 1º, do Regimento Interno.
A decisão será proclamada pelo Presidente somente no encerramento da votação.
O artigo 134 do RI/STF foi regulamentado pela Resolução nº 278, de 15 de dezembro de 2003, subscrita pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, redigido nos seguintes termos:
Art. 134. Se algum dos Ministros pedir vista dos autos, deverá apresentá-los, para prosseguimento da votação, até a segunda sessão ordinária subsequente.
§ 1º Ao reencetar-se o julgamento, serão computados os votos já proferidos pelos Ministros, ainda que não compareçam ou hajam deixado o exercício do cargo.
§ 2º Não participarão do julgamento os Ministros que não tenham assistido ao relatório ou aos debates, salvo quando se derem por esclarecidos.
§ 3º Se, para o efeito do quorum ou desempate na votação, for necessário o voto de Ministro nas condições do parágrafo anterior, serão renovados o relatório e a sustentação oral, computando-se os votos anteriormente proferidos.
Dispõe o artigo “caput” do artigo 134 mencionado, que o Ministro ao pedir vista dos autos deverá apresenta-los até a segunda sessão ordinária subsequente.
Nota-se um silêncio sepulcral quanto à situação ocorrida no julgamento da demarcação da Raposa Serra do Sol, decorrente da antecipação dos votos e a configuração fática de oito votos favoráveis à cassação da liminar concedida. Há uma incoerência lógica no desdobramento ocorrido após serem proferidos os votos no mesmo sentido. O contexto apresentado no julgamento demonstrou uma situação peculiar e certo descompasso se considerarmos a execução da decisão e a ausência de apresentação dos votos que não alterarão o desfecho da causa.
Evidencia-se a necessidade de revisão das normas que disciplinam o julgamento para a adequação do procedimento a ser adotado quando delineadas situações em que a causa tenha sido decidida por maioria dos presentes às sessões que irão decidir o processo pautado.
CONCLUSÃO
O Supremo Tribunal Federal harmoniza o ordenamento jurídico nacional, mantendo íntegras as normas constantes do texto constitucional. As decisões tomadas possuem cunho jurídico-político, na medida em que a Corte exerce uma face dos Poderes estatais.
Para a declaração e reconhecimento dos direitos materiais tutelados constitucionalmente, vale-se das normas processuais para a execução dos atos necessários para a execução das suas decisões.
Não obstante, as regras procedimentais deverão manter adequada conexão lógica, visando um dos fins do processo, consubstanciado na celeridade e pacificação dos conflitos sociais
A suspensão do julgamento referente à demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol evidenciou um hiato na legislação processual para uma situação esdrúxula apresentada, ou seja, embora tenha ocorrido a manifestação de oito Ministros – dos onze que compõem o órgão – em decisão contrária à liminar anteriormente concedida, um pedido de vista inviabilizou a propagação dos efeitos do julgamento até posterior reapresentação dos autos para a continuação da sessão plenária e finalização do “decisum”, com o acréscimo dos votos faltantes. As regras constantes do Regimento Interno não delimitam um prazo peremptório para o julgamento iniciado, o que pode gerar a morosidade da execução da decisão, embora, no caso em comento, com resultado irreversível. Além da ausência de regulamentação quanto a esta situação, também não há disposição que tenha considerado o fato ocorrido, o que refoge e engessa a prestação jurisdicional plena e eficaz.
Nessa toada, faz-se necessária a revisão da legislação que disciplina os julgamentos no âmbito do Supremo Tribunal Federal para a sua adequação às novas realidades que porventura possam surgir, competindo à União legislar sobre as normas processuais, nos termos do artigo 22, I, da Constituição Federal[17].
Fica como questionamento o desequilíbrio entre os binômios catalisadores do equilíbrio do ordenamento jurídico: justiça x certeza jurídica. Em muitos casos há uma leve prevalência entre esses dois elementos para a concretização das normas jurídicas. No caso, intensifica-se a impotência do arcabouçou jurídico pela ausência de caracterização de quaisquer dos referidos balizadores, caros para a sustentação, efetivação, legitimação e créditos nos parâmetros normativos garantidores de uma sociedade justa, solidária e plural, como exigidos nas normas iniciais constitucionais, pilares de sustentação da República Federativa do Brasil.
REFERÊNCIAS
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Notas
[1] Prevê o artigo 5º, inciso II, da Constituição: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”
[2] No Brasil, nem sempre a jurisdição foi monopólio do Poder Judiciário, porquanto durante a monarquia havia a jurisdição eclesiástica, destinada às questões envolvendo direito de família, extinguindo-se com o advento da separação entre Estado e Igreja (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31 ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2008. p. 554).
[3] cf. SILVA, José Afonso da. op. Cit. p. 554-555.
[4] O Conselho Nacional de Justiça foi acrescentado por meio da Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004.
[5] SILVA, José Afonso da. Op. Cit. p. 557.
[6] Cf. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional. 7. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1989. p. 681.
[7] FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Direito Constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Barueri, SP: Manole, 2007. p. 405.
[8] Idem. p. 408.
[9] Foram propostas alterações no processo de nomeação dos Ministros por ocasião da Constituinte de 1988.
[10] Nesse sentido pontua Tércio Sampaio Ferraz Jr.: “A demarcação das terras dos índios é uma competência da União (art. 231 da CF). O ADCT, art. 67, deu-lhe um prazo de cinco anos, a contar da promulgação da Constituição, para concluí-la. Esse prazo é assinalado nas disposições transitórias, representando uma meta a ser cumprida, que, por isso mesmo, não exclui a competência dada no corpo constitucional, e eu é permanente. Ademais, a demarcação não engendra nenhum direito às terras, pois tal direito é declarado originário (antecede à demarcação). Mas tem o sentido de conferir certeza e segurança ao exercício do direito, no que se refere ao seu conteúdo (faculdades) e objeto (terras ocupadas tradicionalmente).
A demarcação é ato administrativo e se refere a bens da União (dos quais as comunidades indígenas têm o direito originário de posse), bens nos quais estão incluídas ‘as terras devolutas destinadas à preservação ambiental’. Ademais, a Constituição fala também em terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras (art. 20, II). Tanto umas como outras, bem como as referentes aos índios (que não são devolutas), são descontínuas. Daí a exigência de demarcação.(...) Feita a demarcação, conforme os critérios constitucionais, as linhas divisórias entre terras devolutas e indígenas estarão traçadas. Daí para frente, um eventual conflito entre exercício da soberania e de direitos originários é outro tema. A própria Constituição, art. 231, § 5º, regula o assunto ao proibir a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso, em caso de catástrofe ou epidemia que ponham em risco a sua população, ou no interesse da soberania nacional, após deliberação do Congresso. ( in Direito Constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Barueri, SP: Manole, 2007. p. 508.)
[11] Deverão ser observadas as seguintes determinações:
1 – O usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas pode ser suplantado de maneira genérica sempre que houver como dispõe o artigo 231 (parágrafo 6º, da Constituição Federal) o interesse público da União na forma de Lei Complementar;
2 – O usufruto dos índios não abrange a exploração de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre da autorização do Congresso Nacional;
3 – O usufruto dos índios não abrange a pesquisa e a lavra de recursos naturais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional;
4 – O usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, dependendo-se o caso, ser obtida a permissão da lavra garimpeira;
5 – O usufruto dos índios fica condicionado ao interesse da Política de Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai;
6 – A atuação das Forças Armadas da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica garantida e se dará independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai;
7 – O usufruto dos índios não impede a instalação pela União Federal de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além de construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e de educação;
8 – O usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica restrito ao ingresso, trânsito e permanência, bem como caça, pesca e extrativismo vegetal, tudo nos períodos, temporadas e condições estipuladas pela administração da unidade de conservação, que ficará sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade;
9 – O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área de unidade de conservação, também afetada pela terra indígena, com a participação das comunidades indígenas da área, em caráter apenas opinativo, levando em conta as tradições e costumes dos indígenas, podendo, para tanto, contar com a consultoria da Funai;
10 – O trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pela administração;
11 – Deve ser admitido o ingresso, o trânsito, a permanência de não-índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela Funai;
12 – O ingresso, trânsito e a permanência de não-índios não pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas;
13 – A cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza também não poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocadas a serviço do público tenham sido excluídos expressamente da homologação ou não;
14 – As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico, que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade jurídica ou pelos silvícolas;
15 – É vedada, nas terras indígenas, qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas a prática da caça, pesca ou coleta de frutas, assim como de atividade agropecuária extrativa;
16 - Os bens do patrimônio indígena, isto é, as terras pertencentes ao domínio dos grupos e comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto no artigo 49, XVI, e 231, parágrafo 3º, da Constituição da República, bem como a renda indígena, gozam de plena isenção tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos taxas ou contribuições sobre uns e outros;
17 – É vedada a ampliação da terra indígena já demarcada;
18 – Os direitos dos índios relacionados as suas terras são imprescritíveis e estas são inalienáveis e indisponíveis.
[12] CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 17. ed. São Paulo: Malheiros. 2001.
[13] Idem. p. 40.
[14] Ibidem. p. 41.
[15] Ibidem. p. 42.
[16] Cf. MENDES, Gilmar Ferreira Mendes. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 21.
[17] Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho