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Ruptura e reconstrução dos direitos humanos em Hannah Arendt

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Agenda 10/01/2019 às 10:00

Reflexões sobre a concepção de Hannah Arendt acerca dos direitos humanos, e da proposta de sua ruptura e reconstrução, com vistas à afirmação concreta e efetiva dos direitos.

Introdução

Aos setenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, a humanidade encontra-se em situação paradoxal. Se, por um lado, a afirmação formal, político-jurídica, dos direitos humanos tem alcançado adesão, sem precedentes, tanto em nível global e regional, quanto no ordenamento constitucional de diversos países; por outro, persiste a necessidade da afirmação mais concreta e efetiva dos direitos humanos para a maioria da população mundial.

A comunidade internacional tem conseguido aprovar diplomas de proteção aos direitos humanos. Desses diplomas, além da Declaração acima mencionada, destacam-se, a título ilustrativo: o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Protocolo Facultativo Referente ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, todos de 1966; a Declaração e Programa de Ação de Viena, de 1993 e a Declaração sobre o Direito e a Responsabilidade dos Indivíduos, Grupos ou Órgãos da Sociedade de Promover e Proteger os Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais Universalmente Reconhecidos (Defensores de Direitos Humanos) de 1998.

A afirmação concreta e efetiva dos direitos humanos para grande parcela da população mundial, todavia, ainda se revela uma promessa, em grande medida, não cumprida. Haja vista que violações aos mais diversos direitos humanos são perpetradas, diariamente, em inúmeros países, seja por indivíduos, grupos ou mesmo pelo poder estatal, desde a discriminação por raça, etnia, credo, opinião política e orientação sexual até a negação do direito à paz, à moradia, à educação, à saúde, ao trabalho e ao meio ambiente saudável.

Hannah Arendt, pensadora judia-alemã, deparou-se, refletiu e condenou o fenômeno do totalitarismo e as violações bestiais aos direitos humanos, promovidas pelos regimes nazista e stalinista.

Neste artigo, pretende-se examinar a concepção de Hannah Arendt acerca dos direitos humanos, em especial, a sua análise da ruptura dos direitos humanos e a sua proposta de reconstrução desses direitos, com vistas à afirmação concreta e efetiva dos direitos humanos na sociedade contemporânea. 


I – A afirmação histórica e política dos Direitos Humanos

A afirmação dos direitos humanos encontra, no cenário político-jurídico internacional contemporâneo, consagração sem precedentes. Esse reconhecimento, porém, pode ser considerado como o corolário de contribuições intelectuais e experiências factuais - a serem analisadas no capítulo segundo - advindas desde a Antiguidade. Hoje, portanto, colhem-se os frutos do universalismo ético ocidental, propugnado, muitas vezes, ao longo da história. Assim, no contexto mundial vigente, a maioria dos Estados comprometeu-se, em diversos fóruns internacionais, com a defesa da universalidade dos direitos humanos, como veremos abaixo. A despeito da ausência de uma proteção universal efetiva desses direitos, o fato é que, pelo menos no plano teórico e formal, a sua universalidade recebe, em intensidade e abrangência, aceitação inédita.

A atual afirmação dos direitos humanos decorre do amplo consenso, alcançado na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, acerca da definição dos direitos humanos, estabelecidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos

A mencionada Declaração definiu, pela primeira vez em nível internacional, os direitos humanos como “um padrão comum de realização para todos os povos e nações” (Declaração Universal dos Direitos Humanos). Pode-se defini-los também da seguinte forma:

"dizem-se humanos os direitos de que o indivíduo é titular só pela razão de pertencer ao gênero humano. (...) Direitos humanos são substratos da própria contextura humana, como protetores supralegais da sua estrutura física, moral, psicológica e espiritual." [2]

Ao considerar os direitos humanos numa perspectiva histórica,  Bobbio os classifica segundo as seguintes fases: a primeira fase refere-se aos direitos de liberdade, que tendem a limitar o poder do Estado; a segunda fase concerne aos direitos políticos, que afirmam a liberdade positivamente, como autonomia, e a terceira fase diz respeito aos direitos sociais, que atendem a demandas específicas da sociedade, como as trabalhistas.[3]

Celso Lafer, também baseado numa abordagem histórica,  refere-se a três gerações de Direitos Humanos: a primeira geração – de herança liberal e baseada numa nítida demarcação entre Estado e sociedade –  afirma direitos de garantia de cunho individualista, como as liberdades de expressão e de pensamento, as quais procuram proteger o indivíduo perante uma possível arbitrariedade do Estado, e ainda direitos individuais exercidos coletivamente, como a liberdade de associação; a segunda geração – de herança socialista -  contempla direitos concebidos como conquistas histórico-sociais dos homens, como o direito ao trabalho, à saúde, à educação e a terceira geração – proveniente de reivindicações de países do Terceiro Mundo, durante o período Guerra Fria – consagrou direitos de titularidade coletiva, como o direito ao desenvolvimento.[4]

Antônio A. Cançado Trindade ressalta, todavia, que, no mundo  pós-Guerra Fria, já não faz sentido “separar” os direitos humanos em vertente civil-política e a econômico-social, pois o novo contexto mundial globalizado exige uma visão global dos direitos humanos, que os considera indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados entre si e  necessariamente vinculados, à democracia e ao desenvolvimento.[5]

A defesa dos direitos humanos e de sua universalidade, conquanto hoje encontre a adesão de grande maioria dos Estados, especialmente os ocidentais, nem sempre obteve esse apoio político e jurídico internacional. É só a partir da criação da ONU, em 1945, com a assinatura da Carta das Nações Unidas, em São Francisco, em 26 de junho de 1945 e, sobretudo, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 10 de dezembro de 1948, que, pela primeira vez em nível internacional, os direitos humanos foram, de modo explícito e homogêneo, afirmados na sua universalidade.

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Antes da criação da ONU, o Direito Internacional não tinha jurisdição sobre o tratamento que um Estado dava a seus nacionais, o qual era considerado assunto de competência nacional exclusiva. Mesmo após a Carta de São Francisco, houve, contudo, resistência, por parte de alguns países, em reconhecer os direitos humanos como universais, de modo que a Arábia Saudita e a África do Sul e países do antigo bloco socialista, como a ex-União Soviética, decidiram pela abstenção quando da aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. De fato, até os países signatários da Declaração se comprometeram a se deixar constranger apenas moralmente, no caso de uma eventual violação dos direitos humanos. Haja vista que as declarações, diferentemente dos tratados, convenções, pactos e acordos, não dispõem de força jurídica compulsória.

Mesmo em se tratando desses últimos tipos de documentos, o instituto da sanção não é admitido senão para os casos previstos no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, isto é, para os casos de ameaça à paz mundial.

 A despeito de seu caráter não-coercitivo e tolerante, a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU tem exercido sua influência. Em primeiro lugar, as decisões e resoluções da ONU ficaram, em tese, obrigadas, desde a aprovação da Declaração, a não a contradizerem. Em segundo lugar, tratados diversos procuram tornar a declaração, ou elementos dela, um direito internacional convencional. Por fim, muitas constituições nacionais e legislações internas dos países tomam a Declaração como base jurídica, como é o caso da Constituição Brasileira. A adesão a instrumentos jurídicos relativos aos direitos humanos traduz-se em apoio interno e externo.


II – A Ruptura dos Direitos Humanos em Hannah Arendt

Em que pese o esforço intelectual, político e diplomático em afirmar, no plano internacional e nacional, os direitos humanos, o impacto trágico do totalitarismo, seja no nazismo, seja no stalinismo, produziu uma ruptura – ainda persistente - entre o passado e o futuro dos direitos humanos, a exigir a reconstrução efetiva desses direitos, para além da sua consagração político-jurídica.

Essa é a tese central defendida por Hannah Arendt em sua obra, em especial, nos livros Origens do Totalitarismo e Da Revolução. Para Arendt, a ruptura dos direitos humanos inicia-se, em verdade, no período do imperialismo, principalmente, entre 1884 e 1914, quando se disseminam as ideologias racistas, que se transformaram, não raro, em políticas de Estado, nas duas décadas seguintes.

Segundo Fausto Brito,

A cristalização histórica da ruptura dos direitos humanos ocorre de um modo contundente entre as duas Grandes Guerras, com a barbárie totalitária do nazismo e do stalinismo. Essa tragédia sem precedentes cria uma massa de homens supérfluos, excluídos socialmente, despidos de qualquer direito, postos em sua cruel naturalidade nos campos de concentração e de trabalho.[6]

Para Lafer,

com essa ruptura, as pessoas passaram a serem tratadas, de jure e de facto, como supérfluas e descartáveis, esfacelando, assim, os valores consagrados da Justiça e do Direito, padrões e categorias que, com base na ideia de um Direito Natural, constituíam o conjunto da tradição ocidental a qual havia historicamente feito da pessoa humana um valor-fonte da experiência ético-jurídica.[7]

A ruptura dos direitos humanos manifesta-se, inicialmente, com a crise de fundamentação dos direitos humanos na natureza humana, como proposto pelos contratualistas, como Locke e Rousseau, e como consignado nas Declarações de 1776 e de 1789, e torna-se evidente com o surgimento e o crescimento do número das chamadas “displaced persons”, homens sem lugar na sociedade e na política, compreendidos como os apátridas[8] e minorias[9] ou refugiados, cujos direitos humanos não foram e ainda não são, em grande medida, devidamente protegidos.

O esfacelamento de diversos estados nacionais entre as duas guerras mundiais e no período imediatamente seguinte à Segunda deu origem a grande deslocamento espacial de massas humanas, reunidas em dois grandes grupos: os apátridas e as minorias, fenômeno examinado por Hannah Arendt.

No referido período histórico, os chamados apátridas, tais como armênios, os romenos e húngaros perderam a sua nacionalidade por ato dos governos vitoriosos nos conflitos bélicos da época e expulsos de suas respectivos pátrias. Assim, os apátridas perderam sua nacionalidade de origem, e, consequentemente, a proteção dada aos cidadãos do seu Estado natal, e não readquiriram, nem uma nem outra, no Estado de destino, para o qual eram pessoas supérfluas, descartáveis, sem cidadania e sem lugar no mundo social.

No mesmo período histórico, destacam-se as minorias, compostas por grupos humanos, dotados das mesmas características culturais, como idioma e religião, mas que, no Estado de destino, sofriam discriminações e parca proteção local e internacional. Essas minorias, embora não tenham perdido a sua nacionalidade de origem, não recebiam de seu Estado natal o respeito e a proteção devida.

Os apátridas, porém, constituíam o grupo humano de maior interesse por parte de Arendt. São eles, afirmava a pensadora, que haviam perdido, em maior medida, os direitos que até então eram considerados inalienáveis, isto é, os direitos humanos.

A situação dos apátridas pode ser considerada pior que a dos criminosos. Ao passo que os delinquentes possuem uma lei nacional que os contemple, ainda que para puni-los, os apátridas não são considerados pelo arcabouço legal do Estado nacional em que vivem, encontrando-se, assim, num limbo jurídico incapaz de lhes garantir o mínimo de direitos (incluindo o direito à própria vida), pois, conforme Arendt: 

Sua situação angustiante não resulta do fato de não serem iguais perante a lei, mas sim de não existirem mais leis para eles; não de serem oprimidos, mas de não haver ninguém mais que se interesse por eles, nem que seja para oprimi-los.[10]

Os apátridas, portanto, ao serem privados dos seus direitos humanos, expõem um paradoxo, afirma Arendt:

o paradoxo da perda dos direitos humanos coincide com o instante em que a pessoa se torna um ser humano em geral -  sem uma profissão, sem uma cidadania, sem uma opinião, sem uma ação pela qual se identifique e se especifique -  e diferente em geral, representando nada além da sua individualidade absoluta e singular, que, privada da expressão e da ação sobre um mundo comum, perde todo o seu significado.[11] 

Felício observa que

ao ser privado da ação, o homem perde o direito básico de exprimir seus pensamentos, de expressar suas opiniões, de ser ouvido pelos outros e de ser identificado na sua singularidade, no quem ele é. Desse modo, o desenraizamento é a condição preliminar da superfluidade. Foi esse desenraizamento, essa falta de lugar no mundo que, na visão de Arendt, possibilitou o totalitarismo. O primeiro passo essencial dado no caminho de um domínio total é a destruição da pessoa jurídica do homem e de sua personalidade legal e moral. O passo seguinte é a anulação da individualidade e da espontaneidade, de forma que seja eliminada a capacidade humana de iniciar algo novo.[12]

Ao ser expulso de sua comunidade de pertencimento, o homem sente-se isolado, o que acarreta a perda da relevância da fala e a perda de todo relacionamento humano. A consequência mais nefasta desse isolamento, é que o ser humano se vê destituído da sua humanidade. 

De acordo com Arendt, os pensadores iluministas e contratualistas tiveram o mérito de fazer do homem a fonte direitos humanos e de torná-los inalienáveis. Entretanto, as displaced persons afrontam a fundamentação desses direitos ancorada na natureza humana. Para a pensadora, a igualdade e a liberdade humanas só têm, efetivamente, possibilidade de serem geradas e desfrutadas na política, no espaço público, historicamente, construído pelos próprios seres humanos, baseados no princípio da isonomia. Os direitos humanos não se fundamentam, verdadeiramente, na natureza humana, mas são, de fato, constituídos nesse espaço público, na política.[13]

Para Arendt, a doutrina metafísica e contratualista dos direitos do homem revelou-se ineficaz em face da tragédia que se abateu sobre milhares de displaced persons, que viram que o maior risco que corriam era precisamente o de serem unicamente humanos.

Assim, afirma Felício:

O problema com esses direitos é que eles não se transformaram em um tema político prático. Essa é a posição de Arendt. Os princípios da igualdade, da liberdade e da fraternidade, que formam a base doutrinária desses direitos, permaneceram abstratos e as dificuldades empíricas de aplicação prática dos direitos humanos podem ser atestadas à luz da lamentável ineficácia das declarações que, na história recente da civilização ocidental, proclamaram, reconheceram, mas não se transformaram em instrumento efetivo de proteção dos direitos humanos e essa é a realidade em que vivemos há dois séculos.[14]

Arendt considera, portanto, que

Não precisamos insistir nas dificuldades inerentes ao próprio conceito de direitos humanos, nem na lamentável ineficácia de todas as declarações, proclamações ou enumerações de direitos humanos que não foram imediatamente incorporados à lei positiva, à lei local, e aplicadas a todos os que lá viviam. O problema com esses direitos sempre foi que eles não podiam ser mais do que os direitos dos nacionais, e que só eram invocados, como último recurso, por aqueles que haviam perdido seus direitos normais de cidadãos.[15]

Para Arendt, a reconstrução dos direitos humanos requer o reconhecimento do direito que cada ser humano tem a ter direitos, independentemente das fronteiras nacionais.

Sob inspiração kantiana, Arendt sustenta a ideia do “direito a ter direitos” na concepção kantiana presente na obra A Paz Perpétua.

Para Kant, após a saída dos indivíduos do estado de natureza hobbesiano, restaria ainda, como ideal maior das gerações futuras, a saída das nações desse estado de natureza, por meio da constituição de uma sociedade jurídica universal.

A vigência de uma tal sociedade só pode ser assegurada pela paz mundial. Inspirado em Rousseau, Kant irá escrever sobre a paz perpétua. Sua teoria da paz perpétua baseia-se, em quatro teses: 1) Os Estados mantêm-se em estado de natureza. 2) O estado de natureza caracteriza-se como beligerante, por isso é injusto. 3) Por ser injusto o estado de natureza deve ser superado, mediante a formação consensual de uma federação de Estados. 4) Essa federação assume a forma de uma associação de Estados igualmente soberanos. Não institui, portanto, nenhum superestado ou Estado federal, mas, na verdade, uma confederação de Estados.

Em A Paz Perpétua, Kant propõe uma série de artigos como num hipotético tratado de paz. Os artigos definitivos representam uma defesa da forma republicana de governo  (Artigo 1), do Direito Internacional como fundamento da federação de Estados (Artigo 2), do Direito Cosmopolita como base jurídica reguladora das relações entre nacionais e estrangeiros   (Artigo 3).

Para Kant, a república, além de ser o melhor regime político no que concerne às relações entre o Estado e seus cidadãos, constitui também a melhor forma de governo no que se refere às relações internacionais. Só a república permite aos cidadãos decidirem pela paz, com base na reflexão das atrocidades de uma guerra. A república não é, porém, condição suficiente - ainda que necessária - para a paz perpétua. Todos os Estados republicanos devem formar uma federação, a fim de assegurar não uma trégua nem um armistício, mas a paz perpétua.[16]

Além de defender, portanto, a forma republicana de governo e o direito internacional, como caminhos para a paz perpétua, Kant sustenta também que a paz mundial e o respeito aos direitos do homem dependem da consagração do direito cosmopolita, pelo qual se afirmam o princípio da hospitalidade ao estrangeiro e o seu direito a ter direitos.

Esse direito o estrangeiro o possui, não por ser um cidadão a um determinado Estado nacional, mas por ser um cidadão do mundo, por pertencer à humanidade.

 Um dos maiores desafios da humanidade, reconhece Arendt, é, nas palavras de Brito:

conciliar uma proposta de tutela internacional dos direitos humanos com a soberania de cada país, considerando que as democracias liberais contemporâneas, com seus resíduos totalitários, cada vez mais reduzem os direitos dos homens aos direitos dos cidadãos em seus respectivos países.[17]

A cidadania mundial, porém, revelou-se uma promessa não cumprida. Haja vista que, desde a Revolução Francesa, foi estabelecida uma relação de subordinação entre os direitos humanos e a soberania nacional. De modo que, tais direitos só são usufruídos, plenamente, pelos nacionais de determinado Estado soberano, sendo tais direitos negados, integral ou parcialmente, aos que não possuam a nacionalidade ou a cidadania do Estado soberano no qual se encontrem.

A restrição dos direitos humanos aos nacionais de uma Estado soberano conduz ao falso pressuposto de uma homogeneidade do seu povo.

Habermas aponta para esse falso pressuposto, pois a homogeneidade cultural distingue-se da identidade étnica de um povo, que se caracteriza como um dado pré-político, ao passo que, na perspectiva política, o povo se forma como um conjunto de cidadãos ao celebrarem, voluntariamente, um contrato social, sem precondição étnica ou de homogeneidade cultural, pelo contrário, na sua ampla diversidade cultural.[18]

Em concordância com Habermas e Arendt, Brito alerta para os riscos oriundos dessa falsa pressuposição:

A concepção de homogeneidade étnica como base do estado-nação consagra a ruptura dos direitos humanos, que passa a ser um privilégio dos nacionais e, mais radicalmente, dos nacionais de etnias semelhantes. Trata-se, historicamente, da antessala de um regime totalitário quando se rompe radicalmente com toda a tradição ocidental e o homem deixa de ser a fonte do direito. Uma sociedade de campos de concentração e de trabalho é precedida pela geração de enormes contingentes de homens supérfluos, social e politicamente.

Ciente e temorosa dos riscos desvelados, Arendt, porém, vislumbra a possibilidade de reconstrução dos direitos humanos, considerando que a ruptura dos direitos humanos não conduz, necessariamente, a uma situação de regresso inevitável à plenitude do totalitarismo. Haja vista que novas gerações de seres humanos estão a nascer todos os dias e a história e a política que irão constituir não estão fadadas ao determinismo inexorável e ao fracasso inelutável.

A proposta de reconstrução dos direitos humanos, em Arendt, verifica-se, segundo Lafer:

na retomada crítica do pensamento ocidental, que almeja o exame das condições políticas e jurídicas que permitam assegurar um mundo comum. Um mundo marcado pela pluralidade e pela diversidade e vivificado pela criatividade do novo, o qual, através do exercício da liberdade inerente à visão arendtiana de natalidade, impediria o ressurgimento de um novo estado totalitário de natureza.

Eis que desponta a seguir a concepção arendtiana de reconstrução dos direitos humanos.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANTAS, João Marcelo B. R.. Ruptura e reconstrução dos direitos humanos em Hannah Arendt. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5671, 10 jan. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67883. Acesso em: 24 nov. 2024.

Mais informações

Trabalho resultante de pesquisa elaborada no âmbito do Doutorado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB)

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