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Ruptura e reconstrução dos direitos humanos em Hannah Arendt

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Agenda 10/01/2019 às 10:00

II - A Reconstrução dos Direitos Humanos em Hannah Arendt

Hannah Arendt, após recusar uma fundamentação metafísica dos Direitos Humanos, porquanto abstrata e ineficiente, apoia-se no exercício da liberdade e na busca do novo, no espaço público político, para propor uma reconstrução dos Direitos Humanos.

Essa recusa à fundamentação metafísica, porém, não se confunde com um repúdio a qualquer fundamentação dos direitos humanos enquanto tais, mas ao falso pressuposto, segundo o qual – como afirma Duarte:

 tais direitos encontrariam seu fundamento na natureza do homem, implicando-se assim uma redução da política à natureza. Uma vez efetivada a ruptura totalitária, é a própria estrutura da moralidade tradicional, bem como as ideias de justiça e de liberdade, que a ela se relacionam, que têm de ser repensadas, em vez de ser simplesmente restabelecidas. Para a autora, é preciso reconhecer a realidade desta ruptura e evitar a tendência reconfortante de “pensar que algum acidente aconteceu, após o qual nossa tarefa é a de restaurar a velha ordem, de apelar à velha sabedoria do certo e do errado” a fim de garantir a ordem e a segurança.[19]

Assim, no intuito de propor a reconstrução dos direitos humanos, Hannah Arendt irá repensar a política, buscando-lhes as origens na Grécia Antiga.

Embora Arendt, por um lado, reconhecesse o conceito limitado de cidadania surgido em Atenas democrática do século V a. C., pelo qual apenas homens livres e iguais, atenienses proprietários e senhores de escravos, eram cidadãos, por outro, ela admirava, nesse período histórico, o exercício de uma democracia direta num espaço público, como a ekklesia e a agora, onde os cidadãos, diretamente, fazendo uso da palavra, buscavam estabelecer os rumos da polis. Arendt considerava, afirma Duarte, que

A liberdade como fenômeno político surgiu e se enraizou na polis grega democrática, caracterizando-se pelo fato de que naquele espaço público inexistiam governantes e governados, ou quaisquer relações fundadas no binômio mando-obediência, já que os cidadãos desfrutavam da condição da igualdade. (...) Liberdade e a igualdade coincidiam no âmbito da polis grega não apenas porque certas condições prévias eram necessárias para que se pudesse aceder ao espaço público, como a posse de escravos e de uma casa, de um espaço privado próprio, mas também e sobretudo na medida em que a isonomia, por meio de suas normas (nomos), instaurava uma igualdade artificial entre homens desiguais por natureza (physei). A igualdade era, portanto, uma característica especificamente política, um atributo da polis isonômica, e não uma qualidade natural dos homens. Liberdade e igualdade coincidiam, ainda, porque os gregos acreditavam que só se era livre quando as ações humanas davam-se entre os próprios pares, na exclusão de toda forma de desigualdade e de coerção e, portanto, na ausência de qualquer forma de governo definida a partir da dominação e da violência entre os cidadãos. Por esse motivo, a tirania significava o enclausuramento de todos os homens no espaço privado, a perda total daquela esfera onde eles podiam mostrar-se e onde a realidade enquanto tal podia constituir-se em suas várias perspectivas.[20]

Segundo Arendt, as revoluções burguesas modernas, em especial, a Revolução Francesa, não proporcionaram um espaço onde a liberdade política pudesse ser, diretamente, exercida, porquanto, na modernidade se separam os governantes dos governados, a despeito da ideia rousseauniana de soberania popular, que, na verdade, não ensejou uma prática democrática direita, por parte dos cidadãos. Na Revolução Francesa, promoveu-se a confusão entre libertação e liberdade. Como ressalta Felício,

Na França, a queda da monarquia não mudou o relacionamento entre governantes e governados, entre governo e nação, e nenhuma mudança de governo parecia capaz de sanar as divergências entre eles. O fato indiscutível, para Arendt, é que a libertação da tirania só significou liberdade para poucos, e quase não atingiu a maioria, que permaneceu esmagada pela sua miséria.

Para Arendt, enquanto liberdade significa participação nas coisas públicas ou admissão ao mundo político, libertação significava libertar-se da opressão. [21]

Brito destaca que

Arendt utiliza dois significados da palavra liberdade em inglês para frisar as diferenças: liberty e freedom. Liberty seria liberdade que se segue à libertação, uma liberdade negativa, definida pelas restrições da lei. Freedom seria a liberdade em sentido positivo, derivada da fundação de um espaço público em que o seu exercício ativo significa participação no mundo da política. os direitos civis, garantido pela liberty, não são positivos no sentido de que não conferem poder aos indivíduos, mas simplesmente garantem a proteção contra os abusos do poder do estado.[22]   

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Se, por um lado, o advento da modernidade promoveu a confusão entre a liberdade e libertação e a consolidação da separação entre governados e governantes, deixando no passado a igualdade isonômica democrática ateniense, por outro lado, permitiu o acesso à cidadania número maior de pessoas, incluindo aqueles que se preocupavam com as necessidades materiais básicas de sobrevivência, algo com o que o cidadão ateniense não se preocupava.

Nesse sentido, ressalta Brito:

para responder a essa questão social, a necessidade se sobrepôs à liberdade como a principal categoria do pensamento político revolucionário. A satisfação das necessidades humanas invadiu o espaço político e os direitos do homem transformaram-se nos direitos civis garantidos pelos estados-nacionais.[23]

Arendt aborda, criticamente, outro aspecto da modernidade, que a distingue da antiguidade, a questão da representatividade política. Para a pensadora, a representação significa, em última instância, que “os eleitores abdicam, ainda que voluntariamente, de seu próprio poder, e que a antiga máxima de ‘todo o poder está no povo’ é verdadeira apenas nos dias de eleição”.[24]

Para Arendt, o governo representativo moderno acabou por resumir-se à administração pública, o que ensejou o fim da esfera pública política, como espaço do diálogo e da ação dos cidadãos.

A esfera ou o espaço público, em Arendt, remete ao ambiente no qual tudo se revela a público. Para a autora, “a aparência – aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos – constitui a realidade”. Isto porque, “a presença de outros que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos”.[25]

Esse ambiente no qual tudo se revela a público é também, em distinção à interioridade de cada indivíduo e a sua vida privada, o mundo exterior em que vivemos e compartilhamos a nossa existência. Para Arendt, 

conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens.[26]

Esse mundo é comum a todos nós e difere do lugar da nossa interioridade. É fruto do trabalho humano e dos negócios que se realizam entre os homens. Esse mundo nos precede, nos é simultâneo e nos transcende. Nas palavras da autora,  

se o mundo deve conter um espaço público, não pode ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os que estão vivos: deve transcender a duração da vida de homens mortais. Sem essa transcendência para uma potencial imortalidade terrena, nenhuma política, no sentido restrito do termo, nenhum mundo comum e nenhuma esfera pública são possíveis.[27]

Esse mundo é, ainda, o espaço no qual os homens dialogam e agem, em especial, na dimensão política. Assim, enfatiza Lafer:

no campo da política (do agir conjunto), a linguagem precisa ser pública, pois a linguagem é memória do passado e fonte que possibilita o presente e o futuro. Por isso cabe à esfera do público determinar o que é comum e comunicável através da publicidade e da visibilidade[28].

O diálogo e as ações humanas conjuntas constroem o mundo comum, que não se resume, portanto, às coisas materiais estáticas, mas, sobretudo é marcado pelo dinamismo e pela pluralidade decorrentes da comunicação e ação humana coletiva. Os seres humanos se manifestam uns aos outros por meio de atos e palavras, revelando-se ativamente em suas identidades singulares.  Cada homem é ele próprio e único, em confronto com o outro, de modo que a alteridade pressupõe a pluralidade. O indivíduo, gozando de liberdade, constitui a sua identidade própria, distinguindo-se do outro, mas também absorvendo e recusando elementos do outro e do mundo que compartilham.

Assim, ressalta Felício:

Daí a importância da existência de um espaço, onde essa liberdade possa ser exercida e onde essa pluralidade possa aparecer. Um espaço no qual a política possa sentir-se em casa, o espaço do não-domínio, ou seja, o espaço da liberdade. Em termos da pluralidade humana, existem, pois, esses dois modos básicos de estar junto: estar junto de si mesmo, que corresponde à atividade de pensar e estar junto com outros homens e com seus iguais, de onde surge a ação.

Arendt sustenta que a ação é a mais elevada das atividades humanas, quais sejam o labor, o trabalho (fabricação) e a ação O labor é a atividade correspondente ao processo biológico do corpo humano e a que assegura a sobrevivência do indivíduo e da espécie. O trabalho, impulsionado pela busca da utilidade, conduz à transformação da natureza e à criação de objetos, proporcionando habitat humano, distinto ao dos seres vivos. A ação revela-se no fato de que ao agir o homem manifesta a sua liberdade em buscar o novo, o inesperado. Com o nascimento de um indivíduo, nasce também a expectativa do inédito, que brota do agir humano. Esse agir é um segundo nascimento, vez que conduz à erupção de algo imprevisto. É por meio da ação que o homem se depara com o outro, valendo-se, especialmente, da ação comunicativa, estabelecendo uma teia de relações intersubjetivas, adentrando assim no autêntico espaço público político.[29]

Uma dimensão desse espaço público, destacada por Arendt, é o seu ordenamento jurídico, que o organiza politicamente e confere-lhe estabilidade. A lei, para a autora, é a estrutura de estabilidade e o espaço de liberdade, dentro do qual podem ocorrer os atos humanos. As leis, nos termos de Arendt,

circunscrevem cada novo começo e, ao mesmo tempo, asseguram a sua liberdade de movimento, a potencialidade de algo inteiramente novo e imprevisível; os limites das leis positivas são para a existência política do homem o que a memória é para a sua existência histórica: garantem a preexistência de um mundo comum, a realidade de certa continuidade que transcende a duração individual de cada geração, absorve todas as novas origens e delas se alimenta.[30]

A lei, portanto, é garantia do exercício da liberdade, mas quando a sua obediência cega é adotada, então a liberdade do pensar, do falar e do agir é tolhida. O cerceamento dessa liberdade, alerta Arendt, decorre também da colonização do espaço público pela sociedade ou pela esfera social, que padroniza pensamentos e condutas, anulando a pluralidade, a espontaneidade e a reflexão e o diálogo críticos.

Por isso, Arendt afirma que, 

a sociedade é a forma na qual o fato da dependência mútua em prol da subsistência, e de nada mais, adquire importância pública, e na qual as atividades que dizem respeito à mera sobrevivência são admitidas em praça pública.[31]

É nesse contexto que “os homens se tornaram seres sociais e passaram a seguir unanimemente certas normas de conduta, de sorte que aqueles que não seguissem as regras podiam ser considerados associais ou anormais”.[32] Esse processo de colonização da esfera pública pela sociedade uniformizadora e alienante produziu um cidadão apático, conformista e apolítico.

A proposta arendtiana de reconstrução dos direitos humanos passa por uma revitalização da esfera pública política e pela retomada de uma cidadania, pelo estímulo ao pensamento crítico e plural, à ação inovadora e ao diálogo entre divergências.

Como ressalta Felício, a propósito da posição arendtiana

Diferentes leis, diferentes hábitos e costumes, incontáveis lembranças do passado, multiplicidade de tradições constituem referências a partir das quais se pode pensar uma comunidade, tal como Arendt a postula. São nas comunidades políticas que os homens podem transcender a sua condição original de “membros da espécie” (...) e fundar a “comunidade do mundo”. Essa é sua posição.[33]

Essa revitalização requer um processo pelo qual temas, questões e problemas, antes enclausurados nas esferas privada ou social, se tornem públicos, por meio da participação política organizada dos interessados, porque comuns ao mundo compartilhado (a “comunidade do mundo”), constituindo-se, assim, em temas genuinamente políticos.

Segundo Felício,

Ao contestar, então, a moderna subordinação do político ao econômico, o objetivo de Arendt foi o de restaurar o vínculo que liga a participação política à própria liberdade, no sentido forte, positivo, qual seja, como a capacidade de criação de um espaço que só pode ser produzido por muitos, onde cada qual se move entre iguais.[34]

Essa contestação mesma e o próprio ato de contestar é agir politicamente. Contestar é exemplo legítimo do exercício de liberdade, por meio do qual o direito a ter direitos se efetiva, por meio do qual os direitos humanos se reconstroem.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANTAS, João Marcelo B. R.. Ruptura e reconstrução dos direitos humanos em Hannah Arendt. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5671, 10 jan. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67883. Acesso em: 24 nov. 2024.

Mais informações

Trabalho resultante de pesquisa elaborada no âmbito do Doutorado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB)

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