Considerações Finais
Nos últimos 70 anos, inegável é consagração político-jurídica dos direitos humanos, mas não menos irrefutável a persistente violação real aos direitos humanos de grande parcela da humanidade.
Segundo Hannah Arendt, os direitos humanos não se tornaram um tema político prático – o que, em grande medida, perdura até os dias atuais -, antes repousaram em concepção teórica, abstrata e ineficaz, produzida pelo pensamento contratualista moderno.
Arendt, assim, denuncia que a igualdade, tal como preconizada pela doutrina dos direitos do homem, trata-se, não raro, de uniformidade, que restringe a pluralidade e a singularidade.
Se Arendt recusa a uniformidade travestida de igualdade, é para defender a verdadeira igualdade, que consagra a pluralidade, a singularidade, a alteridade. É para defender uma esfera pública política, na qual os homens exercem a liberdade de pensar, falar e agir, onde o nascimento de novas indivíduos e gerações renova a esperança do imprevisto e do inédito.
Essa verdadeira igualdade não está inscrita na natureza humana, mas é uma conquista histórica e política do homem. Conquista que deve ser diária e sempre mais ampla, a incluir sempre mais os que não tem os seus direitos humanos respeitados. Afinal, um indivíduo excluído da cidadania perde sua humanidade, não usufrui do direito a ter direitos.
A proposta arendtiana para a reconstrução dos direitos humanos baseia-se, assim, no reconhecimento do direito a ter direitos. Inspirada no cosmopolita kantiana, Arendt sustenta ser esse direito o fundamento para a constituição de um espaço público, em que a política e o direito se efetivem, tanto no cenário nacional quanto internacional.
A criação, inicialmente, da Liga das Nações (1919) e, posteriormente, da Organização das Nações Unidas (1945), bem como aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) constituem marcos fundamentais para a constituição desse espaço publico mundial, que pretende promover e proteger a paz e os direitos humanos.
Afirma Arendt:
A humanidade, que para o século XVIII, na terminologia kantiana, não passava de uma ideia reguladora, tornou-se hoje de fato inelutável. esta nova situação, na qual a humanidade assumiu antes um papel atribuído à natureza, ou à história, significaria nesse contexto que o direito a ter direito, ou o direito de cada indivíduo pertencer à humanidade, deveria ser garantido pela própria humanidade.[35]
A proteção jurídica ao ser humano, onde quer que se encontre, pressupõe a condição de cidadão em seu país de origem, mas também o respeito aos direitos humanos do estrangeiro, como cidadão do mundo e membro da espécie humana, no país de destino.
Arendt admite que o mero pertencimento à humanidade não seria suficiente para reconhecer e garantir esses direitos ao estrangeiro, sendo preciso que a comunidade internacional constituísse um espaço público político que a contemplasse, dando a todos os seres humanos, nacionais e estrangeiros, as condições de isonomia, liberdade e pluralidade para ter direito a ter direitos, onde quer que estejam.
Assim, afirma Brito:
A humanidade não é nem o resultado final da história, como em Kant, nem a manifestação do espírito absoluto, como em Hegel, mas o resultado da ação humana. Um espaço político internacional não significa a ilusão totalitária de um estado internacional subordinando as diferentes nações. Pelo contrário, é um artifício que garante a tutela dos direitos humanos independente dos estados nacionais, onde a “humanitas” do homem possa se desvelar como mero resultado da natalidade.[36]
A proteção efetiva aos direitos humanos, reconhecia Arendt, dependia da sua incorporação à legislação nacional de cada país. Assim, assevera Brito:
Cada estado arroga o direito de legitimar e o de controlar, dentro das suas fronteiras, os movimentos populacionais internacionais e a concessão de nacionalidade. Ambos se constituem em fundamentos de sua própria soberania. Desse modo, as decisões internacionais, como a Declaração de 1948, de fato, significam mais um ideal comum a ser alcançado, sem a força política necessária a se sobrepor à soberania de cada estado (...) A ideia de Hannah Arendt de um espaço político internacional que garanta a tutela dos direitos humanos independente dos estados nacionais não se efetivou mesmo com os progressos após a Segunda Grande Guerra.[37]
Para Arendt, a condição de possibilidade para usufruir direitos é o direito a ter direitos, o direito a ter um lugar no mundo, cujas leis protejam a liberdade e os direitos de todos. Sua proposta de reconstrução dos direitos humanos pode ser, portanto, considerada como a negação do totalitarismo nazista e stalinista, mas também como recusa aos resíduos totalitários persistentes em regimes liberais e democráticos contemporâneos.
Futuras conquistas políticas no processo de reconstrução dos direitos humanos exigem o exercício de uma cidadania democrática, cuja luta requer avanços jurídicos, mas, sobretudo, políticos, econômicos, sociais e culturais, que se enraízem no pensamento, no sentimento, no falar, e no agir dos homens e mulheres do presente e do futuro, assegurando a todos o direito a ter direitos, o respeito efetivo dos seus direitos humanos e um espaço público político democrático, onde sempre possa brotar o novo, para o bem e o progresso da humanidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. ARENDT, Hannah. Da Revolução. São Paulo: Ática, 1988
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo - Antissemitismo, Imperialismo, Totalitarismo. Companhia das Letras, 1990.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 5ª ed., Rio de Janeiro: Campus. 1992.
BRITO, Fausto. A ruptura dos direitos humanos na filosofia política de Hannah Arendt. Kriterion, Belo Horizonte, nº 127, Jun./2013, p. 177-196
CARVALHO, Júlio Marino de. Os direitos humanos no tempo e no espaço. Brasília: Brasília jurídica, 1998.
DUARTE, André. Hannah Arendt: repensar o direito à luz da política democrática radical. Revista Estudos Políticos. Niterói, UFF. N. 2010/01. p. 45-63.
FELÍCIO, Carmelita. Direitos Humanos ou O Direito a ter Direitos?: Um diálogo com o pensamento político de Hannah Arendt. Dissertação de Mestrado. UFG, Goiânia. 2000.
HABERMAS, Jürgen - A Inclusão do Outro, Estudos de Teoria Política, editora Loyola, São Paulo, 2002.
KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. Edições 70. Lisboa, 1988. p. 119-124.
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos – Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Cia das Letras, 1991.
LAFER, Celso. Desafios: ética e política. São Paulo: Siciliano, 1995. p. 204-6.
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. “O processo preparatório da conferência mundial de direitos humanos”. In: Revista Brasileira de Política Internacional. 36(1): 37-66, 1993.
Notas
[2] CARVALHO, Júlio Marino de. Os direitos humanos no tempo e no espaço. Brasília: Brasília jurídica, 1998. p. 47-8
[3] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 5ª ed., Rio de Janeiro: Campus. 1992. p. 34-7
[4] LAFER, Celso. Desafios: ética e política. São Paulo: Siciliano, 1995. p. 204-6.
[5] TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. “O processo preparatório da conferência mundial de direitos humanos”. In: Revista Brasileira de Política Internacional. 36(1): 37-66, 1993.
[6]BRITO, Fausto. A ruptura dos direitos humanos na filosofia política de Hannah Arendt. Kriterion, Belo Horizonte, nº 127, Jun./2013, p. 177-196
[7] LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. Companhia das Letras São Paulo, 1988. p. 15
[8] ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 300. Os seres humanos sem direito algum são os apátridas. Após a Segunda Guerra, enquanto existia 1 milhão de apátridas “reconhecidos”, havia mais de 10 milhões de apátridas de facto . (Ver ARENDT. Idem, p. 312 e 313)
[9] As minorias “são os grupos numericamente inferiores ao resto da população de um Estado e numa posição não-dominante num país, que possuem objetivamente características étnicas, religiosas ou linguísticas distintas do resto da população, e que subjetivamente desejam preservar a sua cultura, as suas tradições, a sua religião e a sua língua”. (Cf. LAFER. A reconstrução dos direitos humanos..., p. 156)
[10] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo - Antissemitismo, Imperialismo, Totalitarismo. Companhia das Letras, 1990. p.327.
[11] Ibid. p. 335-336.
[12] FELÍCIO, Carmelita. Direitos Humanos ou O Direito a ter Direitos?: Um diálogo com o pensamento político de Hannah Arendt. Dissertação de Mestrado. UFG, Goiânia. 2000. p. 39
[13] BRITO, Fausto. A ruptura dos direitos humanos na filosofia política de Hannah Arendt. Kriterion, Belo Horizonte, nº 127, Jun./2013, p. 177-196
[14] FELÍCIO, Carmelita. Direitos Humanos ou O Direito a ter Direitos?: Um diálogo com o pensamento político de Hannah Arendt. Dissertação de Mestrado. UFG, Goiânia. 2000. p. 32.
[15] ARENDT, Hannah. Da Revolução. São Paulo: Ática, 1988. p. 119
[16] KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. Edições 70. Lisboa, 1988. p. 119-124.
[17] BRITO, Fausto. A ruptura dos direitos humanos na filosofia política de Hannah Arendt. Kriterion, Belo Horizonte, nº 127, Jun./2013, p. 177-196
[18] HABERMAS, Jürgen - A Inclusão do Outro, Estudos de Teoria Política, editora Loyola, São Paulo, 2002. p. 162.
[19] DUARTE, André. Hannah Arendt: repensar o direito à luz da política democrática radical. Revista Estudos Políticos. Niterói, UFF. N. 2010/01. p. 45-63.
[20] Ibid.
[21] ARENDT, Hannah. Da Revolução. São Paulo: Ática, 1988. p. 175
[22] BRITO, Fausto. A ruptura dos direitos humanos na filosofia política de Hannah Arendt. Kriterion, Belo Horizonte, nº 127, Jun./2013, p. 177-196
[23] Ibid.
[24] ARENDT, Hannah. Da Revolução. São Paulo: Ática, 1988. p. 189
[25] ARENDT, Hannah. A condição humana. 5ª. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. p. 59-60.
[26] Ibid. p. 62
[27] Ibid. p. 64
[28] LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos – Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo : Cia das Letras, 1991. p. 254.
[29] ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. p. 191.
[30] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo - Antissemitismo, Imperialismo, Totalitarismo. Companhia das Letras, 1990. p. 517.
[31] ARENDT, Hannah. A condição humana.Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. p. 56.
[32] Ibid. p. 52
[33] FELÍCIO, Carmelita. Direitos Humanos ou O Direito a ter Direitos? : Um diálogo com o pensamento político de Hannah Arendt. Dissertação de Mestrado. UFG, Goiânia.2000. p. 73-74.
[34] Ibid. p. 83.
[35] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo - Antissemitismo, Imperialismo, Totalitarismo. Companhia das Letras, 1990. p. 332.
[36] BRITO, Fausto. A ruptura dos direitos humanos na filosofia política de Hannah Arendt. Kriterion, Belo Horizonte, nº 127, Jun./2013, p. 177-196
[37] Ibid.