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A relevância do relato da vítima com a Lei Maria da Penha

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Agenda 09/05/2019 às 16:38

3 O RITO PROCESSUAL DOS CRIMES COM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

A violência doméstica e familiar atinge mulheres de todas as classes sociais, origens, graus de instrução, cores e idades. A agressão contínua, oculta e praticada por pessoas próximas afeta a autoestima e saúde da vítima, fazendo-a resistir e ser conduzida ao silêncio, o que dificulta a persecução penal. Desse modo, este capítulo terá como objetivo principal descrever o rito processual a partir do deferimento das medidas de proteção em favor da vítima de violência doméstica e familiar, examinando as consequências da confirmação da representação criminal e a relevância dos meios de prova existentes no curso da ação penal.

3.1 A competência para o julgamento das causas decorrentes de violência doméstica e familiar

Conforme explicado no capítulo anterior, a Lei Maria da Penha, em seu art. 14, criou os Juizados da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFMs), embora não tenha imposto a sua instalação. Desse modo, nos termos do art. 33 da Lei n.º 11.340/06, enquanto não estruturados os referidos Juizados, “foi atribuída competência cível e criminal às Varas Criminais, para onde devem migrar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher” (DIAS, 2013, p. 67). Para Bianchini (2014), os JVDFMs representaram um grande avanço à Lei Maria da Penha, uma vez que, por meio deles, foi possível centralizar em um único procedimento judicial todos os meios para garantir os direitos da mulher que se encontra em situação de violência doméstica e familiar.

Art. 14.  Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente.

Entende Dias (2013) que, a fim de que a Lei Maria da Penha fosse plenamente eficaz, o ideal seria que cada Comarca contasse com ao menos um Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, ou ao menos de forma cumulada com outra vara. No entanto, diante da realidade brasileira, sabe-se que não há condições de promover o funcionamento de JVDFMs em todos os lugares, justamente devido ao suporte imprescindível e necessário ao seu funcionamento, qual seja, a necessidade de uma equipe de atendimento multidisciplinar integrada por profissionais especializados na área da saúde (conforme prevê o art. 29 da Lei n.º 11.340/06), bem como curadorias e serviço de assistência judiciária (dispostas no art. 34 da legislação supracitada).

Conforme Bastos (2013), a partir da previsão do art. 1º da Lei Maria da Penha, que dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, o artigo 14 acima colacionado determina que os juizados, com competência cível e criminal, serão órgãos da justiça comum, sendo que podem ser criados no âmbito de cada ente federativo e conforme suas próprias necessidades, de modo que a sua criação seguirá regras de conveniência e possibilidade orçamentária. Outrossim, prevê o art. 33 uma regra de transição caso não haja a criação imediata do juizado: o acúmulo da competência cível e crime às varas criminais no conhecimento e julgamento dos crimes cometidos mediante violência no âmbito doméstico e familiar.

A Lei Maria da Penha não estabelece qualquer correspondência com qualquer infração penal específica tipificada no Código Penal e na Legislação Especial. Assim, toda infração penal praticada no contexto de violência doméstica ou familiar poderá ser julgada pelo Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. (ALFERES et al., 2016, p. 54).

Até o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19, tópico que será esmiuçado no último item deste capítulo, parte da doutrina questionava a constitucionalidade do art. 33 da Lei n.º 11.340/06, evocando ofensa aos arts. 125, § 1º, e 96, ambos da Constituição Federal de 1988. Segundo a oposição, o dispositivo questionado e retro citado tratava de matéria afeta à organização judiciária, cuja competência seria da justiça estadual. De acordo com Bastos (2013), com o fim de sanar as discussões doutrinárias e jurisprudenciais sobre a validade constitucional da Lei Maria da Penha, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, através Do Advogado-Geral da União, ajuizou a ADC n.º 19, tendo por objeto a discussão dos artigos 1º, 33 e 41 da Lei n.º 11.340/06):

A ação esboça um histórico de diversas decisões de Tribunais Estaduais – TJ/MS, TJ/RS, TJ/RJ e TJ/MG – que contestam a validade da Lei Maria da Penha, além de alguns enunciados aprovados no III encontro de Juízes de Juizados Especiais Criminais e de Turmas Recursais que contrariam a aplicação da lei (BASTOS, 2013, p. 89).

Dessa forma, para dirimir qualquer controvérsia acerca do assunto, por votação de procedência por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a constitucionalidade dos artigos 1º, 33 e 41 da Lei Maria da Penha. Para a ministra Rosa Weber[8], a Lei n.º 11.340/06 “inaugurou uma nova fase de ações afirmativa em favor da mulher e da sociedade brasileira”, ao passo que o ministro Luiz Fux sustentou que a Lei Maria da Penha está em consonância com a proteção que compete ao Estado dar a cada membro da família, conforme previsto na Constituição Federal. Assim se manifestou o ministro Relator Marco Aurélio, na votação ocorrida em 09 de fevereiro de 2012:

Não há ofensa aos artigos 96, inciso I, alínea “a”, e 125, § 1º, da Carta da República, mediante os quais se confere aos estados a competência para disciplinar a organização judiciária local. A Lei Maria da Penha não implicou a obrigação, mas a faculdade de criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. A cabeça do respectivo artigo 14 prevê que os citados juizados “poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.” De igual maneira, o artigo 29 dispõe que os juizados eventualmente instituídos “poderão contar com uma equipe de atendimento multidisciplinar, a ser integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde”.

Em síntese, Bianchini (2014, p. 223) argumenta que o STF decidiu corretamente, pois “o dispositivo legal não impõe aos Tribunais Estaduais o dever de criar Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, ou seja, não há intromissão na competência dos Estados”. Outrossim, salienta-se que, na hipótese de haver mais de um Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher na Comarca, o inquérito policial deverá ser distribuído ao mesmo juiz que apreciou o requerimento de medidas protetivas, eis que se tornou prevento, nos termos do art. 83 do CPP[9].

A importância dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar reside no fato de que eles possuem competência criminal e cível para o processo, julgamento e execução de causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 14 da Lei n.º 11.340/06). Segundo o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça, consubstanciado no REsp nº 1475006/MT, julgado na data de 14/10/2014, como a Lei Maria da Penha não especificou as causas que não se enquadrariam na competência cível, nas hipóteses de medidas protetivas decorrentes de violência doméstica, é possível extrair que se compreendem toda e qualquer causa relacionada a fato que configure violência doméstica ou familiar.

Em outras palavras, se houver pedido de fixação de alimentos provisórios, por exemplo, estes deverão ser apreciados e fixados perante os Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar, em razão da natureza protetiva da Lei Maria da Penha. Faz-se imperioso destacar, contudo, que conforme salientado no voto do ministro relator Moura Ribeiro, na hipótese de se tratarem de Comarcas que não contam com as Varas Especializadas (mas somente criminais), aí sim elas teriam competência apenas para o julgamento de causas criminais, cabendo às Varas Cíveis ou de Família a fixação e julgamento dos alimentos.

Desta forma, além de competência para julgar o agressor criminalmente e determinar a aplicação de medidas protetivas de urgência, os JVDFMs também têm competência para julgar demandas cíveis eventualmente interpostas pela vítima, desde que tenham como fundamento a violência doméstica e familiar sofridas, como por exemplo uma ação de divórcio ou guarda dos filhos. Entretanto, impende salientar que tal posicionamento não é inteiramente aceito, havendo entendimentos divergentes, a exemplo do enunciado 03 do Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher (FONAVID), que assim dispõe:

A competência cível dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher é restrita às medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, devendo as ações cíveis e as de Direito de Família ser processadas e julgadas pelas varas cíveis e de família, respectivamente.

Especificamente sobre o pedido de medidas protetivas, embora a Lei n.º 11.340/06 não mencione os requisitos para o seu deferimento, pressupõe-se que deva haver risco iminente à integridade física das vítimas de crimes domésticos. Cunha e Batista (2008, p. 121) asseveram que as medidas protetivas “(...) devem preencher os dois pressupostos tradicionalmente apontados pela doutrina, para concessão das medidas cautelares, consistentes no periculum in mora (perigo da demora) e fumus bonis iuris (aparência do bom direito). Assim, possui o Juiz o prazo de até 48 horas para decidir acerca do pleito protetivo, aplicando ao agressor, em caso de deferimento, uma ou mais medidas previstas no art. 22 da Lei Maria da Penha:

Art. 22.  Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:

I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003;

II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;

c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;

IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.           

Quanto à dificuldade da produção de prova na tutela cautelar, explicam Marioni e Arenhart (2013) que em determinados casos, a urgência da tutela impede que o autor produza a prova das suas alegações, de modo que o juiz deverá decidir com base unicamente em suas alegações. Logo, a impossibilidade de produção de provas, desde que justificada, não constitui óbice para que a jurisdição preste a devida tutela jurisdicional. Neste mesmo sentido, de acordo com Pires (2011, p. 162):

O deferimento das medidas protetivas não depende do interesse da vítima na persecução penal e, uma vez deferidas as medidas, a manutenção de sua vigência, embora transitória, não depende da propositura de eventual ação cível ou penal. As medidas protetivas têm demonstrado que se afiguram eficazes em termos penais de prevenção especial, ao diminuir a probabilidade de reincidência do agressor destinatário da medida e contribuir para a interrupção do ciclo da violência de gênero, trazendo alívio e segurança à vítima.

Especificamente sobre a retirada do agressor do lar, Bianchini (2014) ensina que a mulher agredida nem sempre busca a punição do agressor, mas, sim, a cessação da violência, de modo que o afastamento pode ser uma medida válida, à medida que quebra hábitos cotidianos. Dessa forma, para Dias (2013, p. 84):

Para garantir o fim da violência é possível a saída de qualquer deles da residência comum. Determinado o afastamento do ofensor do domicilio ou do local de convivência com a ofendida (art. 22, II), ela e seus dependentes podem ser reconduzidos ao lar (art. 23, II). Também pode ser autorizada a saída dá mulher da residência comum, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda de filhos e alimentos (art. 23, III).

Outrossim, quanto à relevância das aludidas medidas cautelares, Batista (2009) entende que nelas estão previstas providências que visam a assegurar níveis suportáveis na busca pela solução dos conflitos domésticos e patrimoniais. Além disso, complementando as disposições da Lei, o Código de Processo Civil, em seu art. 497, também dispõe sobre algumas medidas que o magistrado, temendo por algum mal futuro, poderá conceder às vítimas de crimes domésticos, concedendo tutela específica ou determinando providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.

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Caso o agressor possua foro privilegiado, no entendimento de Dias (2013), o julgamento da ação será deslocado para o órgão que deverá julgá-lo, haja vista que tal circunstância se sobrepõe à competência do JVDFM. Por fim, acerca da possibilidade de indeferimento das medidas protetivas, a doutrinadora supracitada (2013, p. 83) ensina que “indeferida a medida protetiva pleiteada pela vítima, por meio do procedimento enviado a juízo pela autoridade policial, tal medida não obsta a que a vítima promova ação no âmbito da jurisdição civil, com o mesmo propósito”.

3.2 A audiência de conciliação e a confirmação da representação

Na própria Lei n.º 11.340/06, estão descritos alguns aspectos do processo por violência doméstica, como o art. 16, por exemplo, que prevê a designação de audiência preliminar para a oitiva da vítima que expressamente manifeste o desejo de renunciar ao direito de representação:

Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

Embora a legislação traga a expressão “renúncia à representação”, para Dias (2013), o correto seria “retratação à representação”, já que renúncia só poderia ocorrer antes do exercício do direito de representação, pois renunciar seria não exercer o direito de representação, ao passo que sem representação, não haverá inquérito policial - nem tampouco o Ministério Publico oferecerá denúncia. Segundo explica Alferes et al. (2016), em que pese o dispositivo fale em renúncia à representação, trata-se de hipótese de retratação à representação, pois se a Lei Maria da Penha fala em audiência a ser designada antes do recebimento da denúncia, significa dizer que a vítima já teria oferecido a representação (já que esta é condição de procedibilidade para o oferecimento da denúncia).

A renúncia consiste em ato unilateral no qual há uma desistência, abdicação do ofendido ou de seu representante legal em relação ao direito de originar uma ação penal privada ou mesmo uma ação penal pública condicionada à representação da vítima. [...] A representação se constitui em autorização indispensável para fins de persecução penal, nas ações penais públicas condicionadas a este instituto processual. Não depende de forma especial, sendo necessária apenas a apuração da vontade da vítima em relação à apuração dos fatos em juízo criminal, tendo ela natureza jurídica objetiva. (CARVALHO, 2014, p. 19).

Cesário (2013, p. 146) ressalta que, desde o advento da Lei Maria da Penha, “muitos embates vêm ocorrendo [...] acerca da necessidade ou não de prévia designação de audiência especial para recebimento da denúncia nos crimes de ação penal pública condicionada a representação que envolva violência doméstica e familiar contra a mulher”. O entendimento de Bianchini (2014, p. 231) é de que o art. 16 exige que a retratação, erroneamente chamada de renúncia, siga um trâmite especial: “: 1º) ser realizada perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, 2º) ocorrer antes do recebimento da denúncia (o prazo normal do CPP, art. 25, é até o oferecimento da denúncia) e 3º ser ouvido o Ministério Público”.

Além disso, segundo Dias (2013, p. 144), “deferida ou não a medida protetiva, apesar de não previsto em Lei, é cabível - e até recomendável que o juiz designe audiência conciliatória, até porque decidiu sem ter ouvido o agressor e o Ministério Público”. Neste sentido, a autora entende que:

A retratação pode ocorrer na audiência realizada no procedimento da medida protetiva. Feito acordo sobre as questões familiares, revelando a vítima que não tem mais interesse na representação, será conduzida a out.ro local, ou o agressor deve ser afastado do recinto. Além do juiz estará presente a vítima, seu defensor e o representando do Ministério Público. Homologada a desistência, será comunicada a autoridade policial para que arquive o inquérito, eis ter ocorrido a extinção da punibilidade (CP, art. 107, VI). Se o inquérito policial já tiver sido remetido a juízo, a renúncia só pode ser aceita até o recebimento da denúncia (DIAS, 2013, p. 115).

Lima (2011) discorda da aplicação do artigo supracitado, aduzindo que ele foi pensado para abolir as chamadas retratações extrajudiciais e tácitas, embora alguns tenham-no utilizado para obrigar a vítima a ratificar a representação já oferecida perante a autoridade policial anteriormente. Além disso, de acordo com Karam (2006), que considera tal audiência desnecessária, ao designá-la, a mulher passa a ser objetivamente inferiorizada, ocupando então uma posição passiva e vitimizadora de alguém incapaz de tomar, por si própria, as decisões.

No que tange à necessidade de obrigatoriamente designar a aludida audiência antes do recebimento da denúncia, parte da Jurisprudência entende que, em se tratando de crimes cuja ação penal pública é condicionada à representação (como o delito de ameaça, por exemplo), bem como considerando a complexidade das relações domésticas e familiares, a prévia realização da solenidade tem por objetivo possibilitar à ofendida retratar-se da representação apresentada contra o ofensor após solvida a controvérsia que mantinha o conflito, sendo a sua não observância causa de eventual nulidade do feito. Neste sentido se manifestou o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, em julgamento ocorrido no ano de 2014:

APELAÇÃO CRIMINAL - AMEAÇA - CRIME DE AÇÃO PENAL PUPLICA CONDICIONADA A REPRESENTAÇÃO - AUDIÊNCIA DO ART. 16, DA LEI MARIA DA PENHA - INOCORRÊNCIA - NULIDADE. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata a lei 11.340/2006, é imprescindível a realização da audiência de retratação da vítima, antes do recebimento da denúncia, cabendo ao juiz garantir a sua realização, sob pena de ferir de morte o devido processo legal (art. 5º, LIV, da CR/1988). V.V.: A realização da audiência prevista no art. 16 da Lei Maria da Penha não é ato obrigatório, devendo a mesma ser designada apenas quando houver alguma manifestação da vítima no sentido de desistir no prosseguimento do feito. (TJ-MG - APR: 10378110014776001 MG, Relator: Cássio Salomé, Data de Julgamento: 12/12/2013, Câmaras Criminais / 7ª CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 10/01/2014).

Em que pese a divergência acerca da necessidade de designação de audiência preliminar nos casos de crimes que dependam da representação da ofendida, não há quaisquer controvérsias na hipótese de se tratar de ação penal pública incondicionada (como, por exemplo, o crime de lesão praticado contra a mulher no ambiente doméstico), situação em que será desnecessária e prescindível a representação da ofendida, bem como a solenidade em comento. Neste sentido, nos termos do voto do relator Desembargado Ícaro Carvalho de Bem Osório, no julgamento da Apelação Crime n.º 70062731054, ocorrida em 08/10/2015, “a representação da vítima e mesmo a audiência de que trata o artigo 16 da Lei n.º 11.340/2006 são consideradas despiciendas, já que a ação penal pública incondicionada independe da anuência da ofendida para persecução penal”.

Conforme pontua Cesário (2013), aos que atuam diariamente nos Juizados Especiais Criminais e da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, tornou-se costumeira a manifestação das vítimas no sentido de que não desejam dar prosseguimento ao feito, por já terem se conciliado com o agressor ou reatado o relacionamento conjugal. Entretanto, tal manifestação decorre, muitas vezes, da situação de dependência econômico-financeira e emocional da vítima para com o companheiro, o que a faz se sujeitar às agressões sofridas por não possuir condições de obter sua própria independência pessoal.

Por outro lado, a partir do entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), firmado no julgamento do HC n.º 109176, a audiência prevista no art. 16 da Lei n.º 11.340/06 não é obrigatória, devendo ser provocada pela vítima, caso assim deseje, antes de recebida a denúncia. Consoante o RMS n.º 34774 do Superior Tribunal de Justiça, “a designação de ofício da referida audiência, sem qualquer manifestação anterior da vítima, contraria o texto legal e impõe à vítima a necessidade de ratificar uma representação já realizada”. 

Carvalho (2014) aduz que o juiz não deve designar a audiência em todos os procedimentos em que couber ação penal privada ou condicionada à representação, mas somente quando o magistrado verificar que a ofendida renunciou ao seu direito de queixa ou representação, ou ainda quando ela se retratar da representação anteriormente ofertada. Ainda, no entender de Souza (2007), ao exigir audiência prévia e específica para confirmar o desejo de representar pela ofendida, o rito processual perde a celeridade processual, sendo demasiadamente burocratizado.

Para a audiência são intimados a vítima e o agressor que podem ou não vir acompanhados de advogado, uma vez que não é exigida pela Lei Maria da Penha a presença de advogado ou defensor na audiência. A juíza avalia e certifica-se do interesse da vítima de permanecer com a medida protetiva, concedida quando do registro da ocorrência policial. A medida protetiva pode ser renovada ou extinta na audiência se a vítima não mais se sentir ameaçada. (THOMÉ, PANICHI, MÄDCHE, SPHOR e VARGAS, 2013, p. 271).

Para Dias (2013), a audiência de conciliação difere da audiência de justificação, que por sua vez, será designada caso não seja formada a convicção da necessidade ou pertinência da medida pleiteada pela mulher perante a autoridade policial. Assim, faculta-se ao juiz que, em vez de indeferir o pleito protetivo e extinguir o procedimento, designe uma audiência de justificação para que a vítima, intimada pessoalmente, compareça, sendo facultada inclusive a oitiva de testemunhas. Nesta audiência[10], designada em momento anterior ao deferimento liminar das medidas protetivas, de acordo com a autora, “o agressor não é nem citado e nem intimado, eis que a audiência é realizada inaudita altera parte”.

Em suma, durante a audiência especial de conciliação, o papel do juiz será assegurar à mulher as condições para preservar sua integridade física e psicológica, de modo que sua manifestação de vontade seja despida de qualquer coação ou ameaça por parte de seu agressor. Na oportunidade, a ofendida poderá dar sua versão dos fatos, manifestando-se quanto ao interesse no prosseguimento do feito, podendo inclusive se conciliar com o agressor e renunciar ao direito de representação, respeitado o prazo decadencial de 06 meses a contar da data do fato ou de quando a vítima tomar conhecimento do autor do crime. 

Na hipótese de se verificar, prima facie, a desnecessidade das medidas protetivas, serão elas revogadas e o expediente será arquivado, conforme o entendimento do relator Desembargador Manuel José Martinez Lucas, quando do julgamento do Habeas Corpus n.º 70050468735, na data de 12/09/2012, pela Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

Assim, entendo que deva haver um equilíbrio na atuação do Poder Judiciário no âmbito das relações domésticas, atuando quando realmente for necessário e não tachando todos os casos como iguais, desde, é lógico, que existam elementos para demonstrar que aquele perigo iminente não mais subsiste. Por fim, não está se dizendo que novas medidas não poderão ser decretadas. Em caso de reiteração das condutas, basta a paciente procurar novamente as autoridades competentes.

Por fim, ao abordar a finalidade da audiência prevista na Lei Maria da Penha, Carvalho (2014) salienta que sua natureza jurídica se equipara a uma justificação com o escopo de ratificação da vontade anteriormente exercida perante a autoridade policial. Consoante explica Dias (2012), isso não significa que a finalidade da audiência de conciliação seja induzir a vítima a desistir da representação, tampouco forçar uma reconciliação do casal; em verdade, o que se busca é, além da preservação da união familiar, a solução de temas como a guarda dos filhos, a regulamentação das visitas, a definição dos alimentos, etc.

3.3 A ação penal e os meios de prova da autoria e materialidade

Para Fernandes (2015, p. 236), “o processo penal criminal, por si só, não é capaz de romper a violência, mas constitui um instrumento de transformação na vida da vítima, do agressor e da conscientização social”. Assim, após o encaminhamento do inquérito ao juízo, desde que haja manifestação da vítima pela representação criminal (nos crimes que dependam da sua vontade, conforme dito, seja em audiência ou diretamente junto à delegacia, ao confeccionar o boletim de ocorrência), o Ministério Público poderá oferecer a denúncia. Conforme Costa Júnior (2011, p. 07):

Recebendo o inquérito policial, e desde que não tenha havido a retratação, o promotor de justiça, avaliando, pelos elementos constantes dos autos, a viabilidade da ação penal, e diante do conceito amplo de representação, firmado pela Lei Maria da Penha, está autorizado a oferecer a denúncia, independentemente de ratificação expressa por parte da ofendida, isto porque entendemos que o seu silêncio implica uma concordância tácita de representação com as medidas até então adotadas contra o seu agressor. Havendo a retratação expressa documentada ou reduzida a termo, cumpre ao órgão ministerial requerer a designação de competente audiência, para os fins do artigo 16 da Lei Maria da Penha.

É importante salientar que o não oferecimento de representação não implica imediatamente em decadência do direito da vítima, conforme prevê o parágrafo único do art. 75 da Lei n.º 9.099/95, que assim dispõe: “O não oferecimento da representação na audiência preliminar não implica decadência do direito, que poderá ser exercido no prazo previsto em lei”. Em outras palavras, caso a vítima não represente criminalmente contra o réu no prazo decadencial de 06 meses (nos termos do art. 38 do CPP[11]), manifestando o seu desejo pela instauração da ação criminal, será julgada extinta a punibilidade do agressor.

A Lei Maria da Penha não aponta expressamente qual será o rito procedimental a ser seguido nos processos criminais de sua competência. Nesse sentido, o art. 13 da Lei n.º 11.340/06 determina a aplicação subsidiária do Código de Processo Penal, de modo que deverá ser verificado, em cada caso, o tipo de procedimento aplicável ao processo envolvendo a prática de violência doméstica e familiar. De acordo com Alferes et al. (2016, p. 53), tratando-se de crime que se configure nas circunstâncias para as quais exista procedimento especial previsto no CPP, observa-se esse procedimento. Sobre o tema em comento, Cunha e Pinto (2008, p. 102) sustentam que:

Ante a omissão legal, há que se concluir que a determinação do procedimento dependerá do crime cometido.  São eles:  o procedimento ordinário, quando tiver por objeto crime cuja sanção máxima cominada for igual ou superior a quatro anos e o sumário, para penas inferiores a quatro anos, na atual dicção do artigo 394, incs. I e II, alterado pela Lei 11.719, de 20 de junho de 2008. E o procedimento sumaríssimo, reservado, nos termos do inciso III do mesmo dispositivo, ‘para as infrações penais de menor potencial ofensivo’. A aplicação da Lei 9.099/95 foi afastada pelo artigo 41 da Lei 11.340/2006.  E por último, o ‘procedimento especial’ que, como o nome indica, tem rito especial.

Em suma, Bianchini (2016) entende que pode ser aplicado tanto o procedimento comum quanto o especial. No procedimento comum, utilizar-se-á o procedimento ordinário quando a sanção máxima do crime praticado for igual ou superior a quatro anos, ao passe que o procedimento sumário será destinado aos delitos cuja sanção máxima seja inferior ao aludido patamar. Já o procedimento especial seguirá regras específicas previstas no Código de Processo Penal, como os crimes contra a honra (calúnia, injúria, difamação, etc.), por exemplo, que obedecem à norma prevista no art. 519 do CPP[12].

Para Muccio (2011, p. 835), “tudo que serve, de forma direta ou indireta, para se comprovar a verdade almejada no processo, é meio de prova”. Assim, no que diz respeito aos meios probatórios em âmbito penal, Manzano (2012) refere que a sua finalidade é a formação da convicção do magistrado, criando a certeza suficiente para atingir o convencimento necessário e o maior grau da verdade possível. Os meios de prova, por sua vez, são o modo pelo qual os elementos de prova são obtidos, ou seja, as “provas em espécie”. Eles estão previstos em nosso ordenamento jurídico de forma meramente exemplificativa, e dentre os principais, podem-se elencar: a perícia, a oitiva de testemunhas, documentos, laudo de exame de corpo de delito, etc.

O art. 202 do Código de Processo Penal prevê que “toda pessoa poderá ser testemunha”. Assim, nas palavras de Capez (2007, p. 268), a prova testemunhal consiste “em uma reprodução oral   do   que   se   encontra   na   memória   daqueles que, não sendo parte, presenciaram ou tiveram notícia dos fatos da demanda”. No que diz respeito a quem poderá ser testemunha, preceitua Lopes Jr.. (2016) que não há qualquer restrição ao depoimento dos policiais, que poderão depor sobre fatos que já presenciaram ou de que têm conhecimento, sem nenhum impedimento, desde que tenham participado da operação e elaboração do inquérito policial.

Além disso, prevê o art. 201 do CPP que a ofendida será ouvida sempre que possível, pois conforme aduz Lopes Jr. (2016, p. 115), “é uma importante fonte de informação para o esclarecimento do fato e da autoria”. Outrossim, também prevê o § 1º do aludido artigo que a vítima não poderá se negar a comparecer à solenidade aprazada, sob pena de ser conduzida coercitivamente. Ainda conforme o autor supracitado (2016, p. 376), a ofendida “tampouco pode invocar “direito de silêncio”, pois essa é uma garantia que apenas o imputado possui”. Embora a vítima não seja equiparada à testemunha e tampouco precise prestar compromisso, autores como Nucci (2012, p. 455) defendem que a sua oitiva é obrigatória:

É obrigatória a oitiva da vítima, não só porque o art. 201 do CPP, expressamente, menciona que ela será ouvida sempre que possível, mas também porque, no processo penal, como se sabe, vige o princípio da verdade real. (...) A reforma implantada pelas Leis 11.689/2008 e 11.719/2008 tornou nítida a obrigatoriedade da inquisição do ofendido, em audiência, o que se pode conferir nos arts. 400, 411, 473 e 531 do CPP.

Conforme se depreende da leitura do art. 217 do CPP[13], caso a vítima – ou qualquer outra testemunha – demonstre justificado constrangimento ou temor em depor na frente do réu, o Juiz poderá determinar a sua retirada, a fim de não prejudicar a produção probatória. Mister salientar que neste caso, a inquirição prosseguirá na presença do seu defensor (público ou constituído) que acompanhou todos os atos instrutórios do processo. Neste sentido, além da expressa determinação legal, a matéria encontra precedentes nos Tribunais Superiores:

CRIMINAL. HC. NULIDADES. INÉPCIA DA DENÚNCIA. INCOMPETÊNCIA RATIONELOCI DO JUÍZO. NULIDADE RELATIVA. PRECLUSÃO. DEVOLUÇÃO DO PRAZO PARADEFESA-PRÉVIA. DEFENSOR INTIMADO. INDEFERIMENTO DE DILIGÊNCIAS.POSSIBILIDADE. RETIRADA DO RÉU DA SALA DE AUDIÊNCIAS. ASSISTÊNCIA DEDATIVO. SURSIS E LEI Nº 9.714/98. OMISSÃO DO ACÓRDÃO. ORDEMPARCIALMENTE CONCEDIDA. I. Não se acolhe alegação de inépcia da denúncia, se a mesma se mostra clara, descrevendo satisfatoriamente o delito e suas circunstâncias. II. A incompetência territorial constitui-se em nulidade relativa, sendo impróprio o reconhecimento de qualquer vício, se não suscitado em tempo oportuno - antes de proferida a sentença - e se ausente a demonstração de prejuízo à defesa. III. Inexiste cerceamento de defesa, pela não-devolução do prazo para a defesa prévia, se, para a sua apresentação, houve a devida intimação do defensor constituído, que deixou transcorrer in albis o prazo. IV. No prazo do art. 499, do CPP, o Julgador pode indeferir, de maneira fundamentada, diligências que considere protelatórias ou desnecessárias. V. Nos termos do art. 217, do CPP, o réu pode ser retirado da sala de audiências, quando constranger o depoimento de testemunhas, sendo irrelevante a circunstância de o réu atuar em causa própria, se o Juiz providenciou a assistência de dativo para o ato. VI. É omisso o acórdão que não examina a possibilidade de suspensão condicional da pena e da incidência da Lei nº 9.714/98, já em vigor quando do julgamento. VII. Ordem concedida em parte para determinar que o Tribunal a quo complemente o julgamento, manifestando-se acerca do sursis e da substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos, na forma da Lei nº 9.714/98. (STJ - HC: 11550 SP 1999/0117531-3, Relator: Ministro GILSON DIPP, Data de Julgamento: 15/08/2000, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJ 25/09/2000 p. 117)

Além disso, é importante mencionar as alterações que a Lei n.º 13.505/17 ocasionou na Lei Maria da Penha, sobretudo no que diz respeito à vedação da chamada “revitimização” da vítima em diferentes fases do processo. Segundo ensina o programa “Mulher, viver sem violência”, em suas diretrizes gerais e protocolos de atendimento, “a revitimização no atendimento às mulheres em situação de violência, por vezes, tem sido associada à repetição do relato de violência [...] que pode gerar um processo de traumatização secundária na medida em que, a cada relato, a vivência da violência é reeditada”.

Em síntese, conforme prevê o inciso III do § 1º do art. 10-A, além de serem evitados questionamentos sobre a sua vida privada, não se deve permitir que a ofendida em situação de violência doméstica seja sucessivas vezes ouvida sobre o mesmo fato, uma vez que isso ocasionaria em sofrimento continuado ou repetido:

Art. 10-A. É direito da mulher em situação de violência doméstica e familiar o atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado por servidores - preferencialmente do sexo feminino - previamente capacitados.

§ 1º A inquirição de mulher em situação de violência doméstica e familiar ou de testemunha de violência doméstica, quando se tratar de crime contra a mulher, obedecerá às seguintes diretrizes:

I - salvaguarda da integridade física, psíquica e emocional da depoente, considerada a sua condição peculiar de pessoa em situação de violência doméstica e familiar;

II - garantia de que, em nenhuma hipótese, a mulher em situação de violência doméstica e familiar, familiares e testemunhas terão contato direto com investigados ou suspeitos e pessoas a eles relacionadas;

III - não revitimização da depoente, evitando sucessivas inquirições sobre o mesmo fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo, bem como questionamentos sobre a vida privada.

Por sua vez, a prova pericial consiste na “diligência realizada ou executada por peritos, a fim   de   que   se   esclareçam   ou   se   evidenciem   certos   fatos” (SILVA, 2002, p. 602). Significa, em outras palavras, a pesquisa, o exame e a verificação da veracidade ou realidade dos pontos controvertidos no processo, podendo ser requisitada tanto pela autoridade policial quanto pelas partes ou pelo juiz, de ofício. Segundo Marques (1997, p. 121), “alguns exames feitos pelos técnicos poderão ser de natureza diversa, tais como exames laboratoriais, grafotécnicos, de insanidade mental, dos instrumentos utilizados no crime, do local do crime etc.”.

Já conforme ensina Nucci (2012, p. 326), o exame de corpo de delito “é a verificação da prova da existência do crime, feita por peritos, diretamente, ou por intermédio de outras evidências, quando os vestígios, ainda que materiais, desapareceram. O corpo de delito é a materialidade do crime, isto é, a prova da sua existência”. Para Lopes Jr. (2016, p. 357), “somente em situações excepcionais, em que o exame direto é impossível de ser realizado, por haverem desaparecido os vestígios, é que se pode lançar mão do exame indireto (prova testemunhal, filmagens, gravações etc.) nos termos do art. 167 do CPP”.

Contudo, em se tratando de crimes cometidos em âmbito doméstico e familiar, o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul é unânime no sentido de que ele é prescindível. Ademais, Lima (2015) argumenta que o exame de corpo de delito também não é condição sine qua non para o oferecimento da denúncia, com exceção de algumas hipóteses (tais como em crimes envolvendo drogas, por exemplo).

APELAÇÃO. CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO. ROUBO SIMPLES TENTADO. INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA DO ANIMUS FURANDI DO AGENTE. DESCLASSIFICAÇÃO DO FATO PARA O DELITO DE LESÂO CORPORAL LEVE MANTIDA. AUSÊNCIA DE PROCEDIBILIDADE POR FALTA DE REPRESENTAÇÃO. DECADÊNCIA. DESCABIMENTO. SENTENÇA MANTIDA. I. Inexistindo prova inconcussa e estreme de dúvidas acerca do animus furandi do acusado, imperiosa a manutenção da sentença que desclassificou o fato para lesão corporal leve praticada contra uma das vítimas, que confirmou em juízo ter sido agredida pelo acusado. Ofensa à integridade física que por sua natureza (leve) pode não deixar vestígios, sendo, no caso, prescindível o exame de corpo de delito, uma vez que a materialidade do crime restou amplamente comprovada pela prova oral produzida durante a instrução judicial, que dá conta de que a ofendida desmaiou após ser atingida por um chute na cabeça, desferido pelo denunciado. II. É sabido que a ação penal decorrente do crime de lesões corporais leves é condicionada à representação do ofendido, a teor do art. 88 da Lei n° 9.099/95, contudo tal condição de procedibilidade da ação penal pública condicionada - dispensa rigor formal, bastando que a parte demonstre seu interesse de que seja apurada e processada a infração penal. In casu, a vítima logo após o fato, acompanhou a autoridade que deteve o acusado à delegacia de polícia, onde efetuou o registro da ocorrência de tentativa de roubo e prestou depoimento. De conseqüência, restou plenamente evidenciada a manifestação de vontade, no prazo legal, de ver instaurada a persecução penal. APELO DO MP DESPROVIDO. APELO DA DEFESA DESPROVIDO. (Apelação Crime Nº 70060666609, Quinta Câmara Criminal - Regime de Exceção, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Luiz John dos Santos, Julgado em 08/06/2016).

A justificativa reside no fato de que muitos crimes dos crimes regidos pela Lei n.º 11.340/06 não deixam vestígios, como é o caso da ameaça (art. 147, caput, do Código Penal), por exemplo, de modo que a sua materialidade delitiva será comprovada por outros meios de prova, sobretudo pela prova oral produzida em juízo, por vezes lastreada unicamente no relato da ofendida. Outrossim, prevê o § 3º do art. 22 da Lei n.º 11.340/06 que “serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde”, o que significa dizer que a materialidade delitiva será consubstanciada, na ausência do exame de corpo de delito, por boletins de atendimento ambulatoriais e fichas de atendimento médico hospitalares.

A título exemplificativo, pode-se elencar a decisão monocrática do Superior Tribunal de Justiça, proferida pelo ministro relator Nefi Cordeiro no HC n.º 295.979/RS, na qual frisou que “mitiga-se a indispensabilidade do exame de corpo de delito direto, prevista no art. 158 do CPP[14]”. No entanto, Cunha e Pinto (2008) discordam de tal entendimento, registrando que embora os laudos ou prontuários médicos bastem para o ferimento das medidas protetivas de urgência ou instauração do inquérito policial, é necessário que se atenda ao disposto no artigo supracitado para embasar e justificar uma condenação, ou seja, deve-se elaborar o respectivo exame de corpo de delito.

3.4 A ADI n.º 4.424/DF e a vedação da aplicação da Lei n.º 9.099/95

A Lei Maria da Penha trouxe uma grande mudança no ordenamento jurídico ao criar mecanismos que coibiram a violência doméstica e familiar contra a mulher. Em seu art. 41, a legislação expressamente afasta a incidência da Lei dos Juizados Especiais ao dispor que “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995”. Alferes et al. (2016) explica que, em tese, a restrição da aplicação da Lei dos Juizados Especiais Criminais aplicar-se-ia somente aos crimes, ficando excluídas as contravenções penais, de modo que a própria constitucionalidade do artigo supracitado veio a ser posteriormente debatida pelo STF, por ocasião do julgamento da ADC n.º 19.

No entanto, os arts. 12, inciso I, e 16, da Lei n.º 11.340/06, que versam sobre o procedimento da representação e renúncia, geraram incertezas, uma vez que, conforme Souza (2007), a legislação era omissa no tocante à natureza da ação penal para processar o crime de lesões corporais leves, esculpido no §9º do art. 129 do Código Penal. Dessa forma, a discussão acerca da incidência ou não da Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei n.º 9.099/95), com o consequente afastamento dos institutos despenalizadores, culminou no surgimento de duas correntes de pensamento distintas: alguns autores acreditavam que a ação penal era pública condicionada à representação da vítima, ao passo que outros defendiam a natureza incondicionada da ação, ou seja, a possibilidade de o Ministério Público dar início à ação penal independentemente da manifestação de vontade da ofendida.

[...] A prevalecer o entendimento de que o art. 41 da LMP afasta completamente a aplicação dos Juizados Especiais Criminais (Lei n. 9.099/95) e, via de consequência, faz desaparecer a necessidade de representação para os crimes de lesão corporal leve (cuja exigência encontra‐se insculpida no seu art. 89), a Lei Maria da Penha não deveria fazer qualquer menção ao instituto da representação (que é o que ocorre nos dois outros dispositivos impugnados: art. 12, I, e 16). Daí, a confusão (BIANCHINI, 2014, p. 255).

De um lado, doutrinadores como Cavalcanti (2007) se posicionavam justificando que, com o advento da Lei n.º 11.340/06, foi vedada a aplicação da Lei dos Juizados Especiais Criminais aos crimes perpetrados contra a mulher no âmbito familiar e doméstico, de modo que, desde que praticados neste contexto, a ação penal do crime de lesões corporais leves volta a ser pública incondicionada à representação da vítima quando do registro de ocorrência policial. “Para quem sustenta essa posição, as referências legais sobre a representação e a possibilidade de renúncia dizem tão-só aos delitos que exigem a iniciativa da vítima para o desencadeamento da ação penal, como nos delitos contra a liberdade sexual [...]” (DIAS, 2012, p. 118). A título exemplificativo, Lima explica (2011, p. 279):

Para que não sobrassem dúvidas, a LMP aumentou a pena do crime de lesão qualificado pela violência doméstica (art. 129, §9º, CP). Dessa forma, mesmo que o art. 88 não tivesse sido revogado – e foi – não pode ser considerada “leve” uma lesão qualificada pela violência doméstica, pois o critério médico-legal original do Código Penal só se refere às denominadas lesões graves dos parágrafos anteriores (§1º, §2º e §3º). Assim, em nenhuma hipótese deve ser exigida representação das vítimas do sexo feminino.

Ao seu turno, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), através do REsp 1097042/DF, julgado em 24 de fevereiro de 2011, havia firmado entendimento contrário, no sentido de que a Lei Maria da Penha não alteraria a ação penal nos crimes de lesões corporais leves, que por sua vez, continuava sendo pública e condicionada à representação, tal qual previsto no art. 88 da Lei n.º 9.099/95. A inaplicabilidade da Lei n.º 9.099/95, conforme a decisão, somente diria respeito aos institutos despenalizadores da legislação, tais quais a composição civil, a transação penal e a suspensão condicional do processo.

Ao encontro de tal posicionamento ia o entendimento de Dias (2013), que sustentava que o desencadeamento das providenciais policiais e judiciais, nos delitos de ação pública condicionada à representação, mesmo que cometidos em âmbito doméstico, dependeriam da representação da ofendida perante a autoridade policial, por ocasião do registro de ocorrência. Segundo a autora, considerando que por ocasião da lavratura do boletim da ocorrência, a autoridade policial toma a representação da ofendida a termo, bem como sabendo que é admitida, antes do recebimento da denúncia, a “renúncia à representação”, não teria sentido se a ação penal fosse pública incondicionada. Da mesma forma, para Souza (2007, p. 95):

O crime de lesão corporal leve seria de ação pública condicionada à representação, ou seja, para a efetiva punição desse crime era necessária a representação da vítima, conforme os ditames do artigo 16 da referida lei, sendo essa uma condição específica para a futura ação penal e para instauração do inquérito, sem essa representação a polícia e o Ministério Público não estão autorizados a agir.

De qualquer forma, a partir do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.424/DF, ajuizada pelo Procurador Geral da República em 07 de junho de 2010, o entendimento da redação do art. 41 da Lei n.º 11.340/06 foi pacificado. O objetivo da aludida ADI era buscar uma interpretação conforme a Constituição Federal dos arts. 12, inciso I, 16 e 41 da Lei n.º 11.340/06, corroborando a não aplicação da Lei n.º 9.099/95 a nenhum crime que tenha sido cometido no âmbito da Lei Maria da Penha, incluindo o de lesões corporais leves e culposas. Veja-se excerto extraído do voto do Ministro Luiz Fux:

Do mesmo modo, os delitos de lesão corporal leve e culposa domésticos contra a mulher independem de representação da ofendida, processando-se mediante ação penal pública incondicionada. O condicionamento da ação penal à representação da mulher se revela um obstáculo à efetivação do direito fundamental à proteção da sua inviolabilidade física e moral, atingindo, em última análise, a dignidade humana feminina. Tenha-se em mente que a Carta Magna dirige a atuação do legislador na matéria, por incidência do art. 5º, XLI (“a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”) e do art. 226, § 8º (“O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”).

Conforme ensina Bastos (2013), a corrente majoritária da Corte acompanhou o voto do relator, ministro Marco Aurélio, no sentido de que aos artigos 12 (inciso I), 16 e 41, da Lei Maria da Penha, deve ser afastada a aplicação de qualquer dos dispositivos da Lei n.º 9.099/95. Basicamente, não se aplica a aludida legislação aos casos de violência doméstica e familiar, razão pela qual, nos crimes de lesões corporais leves contra a mulher, no âmbito de suas relações domésticas, familiares e afetivas, a ação penal será pública incondicionada, ressalvada a necessidade de representação aos crimes versados em leis diversas à n.º 9.099/95.

Bianchini (2014) explica que, para o STF, a confusão em torno dos artigos questionados era apenas aparente, pois embora eles façam referência ao termo “representação”, continuam válidos aos crimes que a exigem (a exemplo do crime de estupro), de modo que aos crimes cuja ação penal dependa da representação da vítima continuam válidos os artigos acima aludidos. Entretanto, a autora também refere que deve ser tomado um cuidado especial, uma vez que a decisão diz respeito à natureza incondicionada da ação nos casos de lesões corporais leves de crimes que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher (conforme arts. 5º e 7º da Lei n.º 11.340/06), permanecendo a exigência da representação às demais situações.

Neste sentido se manifesta a recente Jurisprudência do Tribunal de Justiça Gaúcho, ao efetivamente enfatizar que a as agressões físicas praticadas no âmbito doméstico são processadas mediante ação penal pública incondicionada, pouco importando a extensão da lesão e abarcando inclusive as vias de fato:

APELAÇÃO. CONTRAVENÇÃO PENAL. VIAS DE FATO. MARIA DA PENHA. AUSÊNCIA DE REPRESENTAÇÃO. EXTINÇÃO DA PÚNIBILIDADE. IMPOSSIBILIDADE. PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO PENAL. Em se tratando de ação penal pública incondicionada, irrelevante a ausência de representação ou eventual desinteresse da vítima na responsabilização criminal do réu. Além disso, o plenário do STF, no julgamento da ADI nº 4.424 e da ADC nº 19, afastou a incidência do art. 16 da Lei 11.340/2006 e assentou a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão, praticado contra a mulher no ambiente doméstico, desimportando a extensão da agressão, o que evidentemente inclui as vias de fato. Recurso provido. (Apelação Crime Nº 70072534548, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jucelana Lurdes Pereira dos Santos, Julgado em 05/04/2017)

Em síntese, de acordo com o Supremo Tribunal Federal, o art. 41 da Lei n.º 11.340/06 deixa clara a vedação da aplicação da Lei n.º 9.099/95, in totum, às hipóteses de violência doméstica e familiar contra a mulher, alcançando qualquer prática delituosa contra a mulher, inclusive as vias de fato. Assim, tal qual pontuou a ministra Rosa Weber “admitir   o   condicionamento   da   ação   pública   à   representação da ofendida, nos casos de lesões corporais leves, nega o espírito da Lei Maria da Penha”, de modo que em se tratando de crime de lesões corporais praticadas no âmbito doméstico (qualquer que seja a sua extensão), a ação penal será sempre pública incondicionada, sem possibilidade de retratação da vítima, nos termos da Súmula 542 do Superior Tribunal de Justiça[15].

Dessa feita, conclui-se que, caso a vítima manifeste interesse em representar criminalmente contra o agressor, instaurar-se-á a ação penal pública condicionada, movida pelo Ministério Público, dando-se início à instrução processual, momento em que serão angariadas as devidas provas a fim de comprovar a autoria e materialidade delitiva. Resta, portanto, averiguar o grau de relevância que será conferido ao relato da própria ofendida, bem como se o seu depoimento, por si só, pode constituir meio de prova hábil para embasar uma condenação criminal, ainda que esteja desacompanhado de outras provas.

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Luísa. A relevância do relato da vítima com a Lei Maria da Penha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5790, 9 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67992. Acesso em: 25 nov. 2024.

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